Realizador: Brian De Palma
Actores principais: Rachel McAdams, Noomi Rapace, Karoline Herfurth
Duração: 102 min
Crítica: Quando um velho mestre, agora praticamente no esquecimento, realiza um novo filme a tentar recuperar o estilo clássico pelo qual ficou conhecido, mas sem encontrar a velha chama, devemos aplaudir o esforço ou olhar com nostalgia para o seu antigo trabalho e abanar a cabeça pesarosamente? Em ‘Passion’ (em português ‘Paixão’), o último filme até hoje de Brian De Palma, o espectador é obrigado a debater-se entre estes dois estados, e o resultado final não é o mais satisfatório.
Hoje em dia, quando Brian De Palma lança um novo filme, isso já não constitui propriamente um evento. Tal como outros realizadores outrora apelidados de génios, como Coppola, De Palma vive muito da reputação, e os seus filmes, feitos fora dos grandes estúdios e muitas vezes em co-produções com companhias europeias, circulam pelos festivais mas não têm propriamente uma grande distribuição mundial nem muito destaque na crítica e na imprensa. Em quantos locais deste país passou ‘Twixt’ (2011) o último filme de Coppola? De acordo com o imdb, o filme nem sequer chegou a passar nas salas de cinema, tendo sido exibido pela primeira vez em Portugal numa televisão por cabo precisamente há um ano, em Maio de 2014. E quase o mesmo ocorreu com ‘Passion’. Datado de Setembro de 2012, chegou a Portugal apenas em Julho de 2013 e lembro-me que pouco mais de uma semana ficou nas salas de cinema. Quando tive disponibilidade para o ir ver, já tinha saído de exibição. Portanto só ontem é que finalmente lhe pus a vista em cima. Não é completamente injusto, porque o filme não merece uma gigantesca ovação, mas mesmo assim é um pouco irónico como o mercado do cinema por vezes trata os seus velhos senhores, a quem outrora fez enormes vénias.
Se Coppola pouco me importa (discutiremos isso noutra crítica) em relação a De Palma já fico um pouco mais sentido. Estamos a falar do realizador que na década de 1970 re-inventou o thriller psicológico americano, trazendo as influências europeias de Truffaut ou Clouzot para filmes como ‘Sisters’ (1973), ‘Obcession’ (1976), ‘Carrie’ (1976) ou ‘Dressed to Kill’ (1980). Estamos a falar do homem que criou o lendário ‘Scarface’ (1983), para muitos o seu filme mais icónico, mas que sinceramente considero muito inferior ao soberbo ‘Carlito’s Way’ (1993), esse sim o meu filme preferido de De Palma. E depois também temos as suas comédias negras, o fabuloso e hilariante ‘Wise Guys’ (1986), o pungente ‘The Bonfire of Vanities’ (1990), ou então os seus filmes de guerra (‘Casualities of War’, 1989).
Mas depois do imensamente incompreendido ‘Carlito’s Way’ (como é que é possível uma obra prima como esta não ter uma única nomeação para Óscar?!) De Palma, que já tinha namorado os blockbusters com ‘Untouchables’ (1987), mergulhou neles a fundo nos anos 1990, praticamente esquecendo a irónica subtileza dos seus filmes, e a sua imensa capacidade em gerir suspense e tensão. Com filmes comerciais não muito bem aceites pela crítica como o intrincado ‘Mission: Impossible’ (1996), ‘Snake Eyes’ (1998) ou ‘Mission to Mars’ (2000) De Palma deixou de estar nas boas graças do público. Com ‘Femme Fatale’ (2002) e mais tarde ‘The Black Dahlia’ (2006) De Palma parece ter tomado a decisão consciente de regressar ao seu lendário estilo de thriller com pitadas de erotismo, mas o primeiro é uma aventura espalhafatosa sem grande substância e o segundo é um noir ambiciosamente artístico e intrincado, um estudo de forma sem função. Em ambos, a Hollywoodisse da produção e do rol de actores famosos pareceu sobrepor-se ao estilo do mestre.
Muto embora pelo meio De Palma tenha ainda feito ‘Redacted’ (2007), um filme da guerra do Iraque que foi o maior fiasco de bilheteira da sua carreira, ‘Passion’ parece ser o take 3 na sua tentativa de regressar ao género que o tornou famoso, agora com a maturidade dos seus 72 anos de idade. E à terceira finalmente foi de vez. Em ‘Passion’ vemos De Palma realmente regressar às suas origens dos anos 1970, e o filme é muito mais interessante que os dois anteriores, primeiro porque é mais humilde e mais honesto, segundo porque é mais dedicado, esforçado e trabalhado. Não será portanto por acaso que De Palma se tenha afastado dos mercados americanos, das tentações estilísticas de Hollywood, para encontrar a maior liberdade do financiamento europeu. Apesar de ser falado em inglês e de ter uma conhecia estrela de Hollywood (Rachel McAdams), ‘Passion’ é uma co-produção franco-alemã e foi principalmente rodado em Berlim. Para além do mais, também não será por acaso que para re-encontrar o seu estilo, De Palma tenha decido jogar pelo seguro em termos de história. O argumento é da sua autoria, mas é “apenas” um remake do filme francês ‘Crime d'amour’ (2010), que nunca vi.
A primeira coisa que chama logo à atenção em ‘Passion’ é a sua fotografia. As cores saturadas e cristalinas da filmagem, exacerbadas pelos interiores geralmente iluminados com fartura (pelo menos na primeira parte do filme) e dos adereços cénicos e de guarda-roupa de cores garridas, dão uma sensação ilusória a toda a peça, como se estivéssemos dentro de um grande sonho. Aliás, como nos melhores thrillers de De Palma ou Lynch, até ao final não ficamos inteiramente convencidos se aquilo que vimos foi a verdade, ou pelo menos se tudo realmente acontece como descrito.
O filme abre com o plano de duas mulheres sentadas num sofá, Christine (McAdams) e Isabelle (Noomi Rapace, a original Lisbeth Salander dos filme da saga Millenium). Como estão filmadas, e com a magnífica química que existe entre ambas, o espectador que conhece De Palma e a sua obra anterior fica imediatamente a pensar que estão numa relação. Mas pouco depois descobrimos que ‘simplesmente’ trabalham juntas numa agência publicitária em Berlim. Christine é a chefe ambiciosa e Isabelle a diligente subordinada com uma clara adoração pela sua superiora. Quando o namorado de Isabelle, Dirk (Paul Anderson) chega a casa, Isabelle retira-se demasiado embaraçada, mas mais tarde saberemos que Dirk é apenas um ocasional hóspede de Christine, e que a sua verdadeira relação amorosa se está a desenrolar em segredo precisamente com Isabelle.
Nessa noite, enquanto Christine e Dirk têm uma noite de sexo sadomasoquista, Isabelle tem uma ideia genial para a campanha publicitária. Os superiores em Nova Iorque adoram, mas é Christine que fica com os créditos. Ao início Isabelle resigna-se, mas mais tarde, instigada por uma colega de trabalho, Dani (Karoline Herfurth), também ela com uma fixação lésbica por Isabelle, esta coloca o seu vídeo no youtube para que todos saibam que a ideia foi dela. Com as visualizações a disparar, e os contractos publicitários a surgir, os chefes de Nova Iorque cancelam a promoção de Christine (o que implicaria o seu regresso aos Estados Unidos) e decidem em vez de isso dar uma oportunidade a Isabelle. Este é o momento de viragem do filme.
Até aqui tivemos a construção com personagens extremamente bem delineadas e com um excelente ritmo. A Christine de McAdams é ambiciosa, sem escrúpulos, e usa a sua beleza e o seu charme para manipular as pessoas, quer no trabalho quer na sua vida pessoal, onde tem um enorme gosto pelo sexo ‘kinky’. Já a Isabelle de Rapace é oferecida ao espectador mais lentamente (o filme é contado na sua perspectiva) e vemo-la gradualmente a evoluir e ganhar confiança em si própria, à medida que a sua devoção por Christine se dissipa e se transforma em ódio. A partir do momento em que se dá o choque entre ambas, o filme envereda numa teia de enganos e conspirações, em que claramente cada uma parece ter uma agenda escondida para destruir a outra. E neste ponto o filme prende imenso o espectador, mas a verdade é que também não faz nada de transcendental, e toda e qualquer coisa que acontece parece encaixar-se no padrão exacto daquilo que esperaríamos que acontecesse num thriller deste género.
E à medida que cada uma tenta denigrir a imagem da outra na empresa começam a tomar atitudes misteriosas. Porque motivo Christine escreve um email a partir do computador de Isabelle? Porque motivo Isabelle começa a fingir que está a tomar ani-depressivos? E qual é o papel da misteriosa irmã gémea de Christine no meio disto tudo? Construindo a sua teia e enrolando o espectador nela (inclusive recorrendo ao split-screen para mostrar acções simultâneas, um artifício usual de De Palma) o filme vai tendo uma série de climaxes que incluem grandes momentos de surpresa (daqueles em que a música surgindo de repente nos dá um sobressalto), vários twists e claro, os indispensáveis momentos sangrentos.
O pior de ‘Passion’ está precisamente aqui, no seu final frouxo. As revelações finais são previsíveis e dadas com muito pouco impacto e com bastante preguiça por parte de De Palma. O recurso ao esquema ‘personagem conta tudo enquanto vemos imagens em flashback’ não é digno de um manipulador de emoções como é este realizador. Da mesma forma, há algumas incongruências e infantilidades nos planos supostamente bem urdidos das personagens e é surpreendente como elas não pensaram nessas falhas. As coisas só correm bem, exactamente como planeadas, porque estamos num filme. Mas para o filme poder dizer que tem tensão e suspense de vez em quando há coisas que correm mal, e aí dá-se como explicação a tal ‘incongruência’. Mas o espectador já a tinha topado a milhas o que tira muito do dinamismo ao terceiro acto desta película.
Admitamos que ‘Passion’ está bastante bem construído em termos de personagens (excelentes actuações de Rapace e, surpreendentemente, de McAdams), em termos de ambiente (a fotografia garrida e idílica que vai escurecendo ao longo do filme) e em termos de psicologia, muito embora a meio me tenha posto a pensar "caramba, estamos a falar simplesmente de um lugar numa empresa publicitária na Alemanha". Mas claro, levadas ao limite, movidas pela ambição, as pessoas em qualquer situação, por mais trivial que pareça o objecto da disputa, começam a fazer coisas incredíveis. E para além do mais, há a clara subcorrente lésbica por todo o filme na relação entre as três mulheres, Christine, Isabelle e Dani, pelo que o que está por detrás desta intriga é mais profundo que uma mera posição numa empresa. Estamos a falar de correntes de desejo, paixão (o título do filme não é por acaso), masoquismo, submissão, domínio. São esses os grandes factores impulsionadores das atitudes das personagens, que De Palma sabe gerir e mostrar como ninguém.
Todos estes elementos dão interesse ao filme, mas a grande energia de um thriller, inevitavelmente, está no seu desfecho. É disso que nos lembramos quando acabamos de ver o filme; quem fez o quê, como e porquê, e quais as consequências. Destas questões, o porquê poderá ser o menos importante (é sempre aquele elemento que poderá depender da interpretação do espectador), mas os outros têm de pelo menos fazer jus à construção a que assistimos durante uma hora e meia. Mas no caso de ‘Passion’ é a construção que é o elemento mais forte, enquanto o desfecho da história é bastante desinspirado. Também o seria em ‘Crime d'amour’ (2010)? Se sim, De Palma teria obrigação de ter tirado um coelho da cartola. Infelizmente, em ‘Passion’ o espectador já sabe, ou pelo menos já está à espera, do que irá sair da cartola. E o próprio filme parece derrotista nesse sentido. A forma preguiçosa como dá o seu twist já parece admitir que está consciente que irá contar algo que o espectador já sabe, portanto para quê ter o trabalho de fazer a coisa decentemente?! Ainda há uns pozinhos de ambiguidade (a misteriosa irmã gémea de Christine, por exemplo), mas mesmo esses, pelo menos para mim, são facilmente explicáveis. Contudo tenho que admitir uma coisa. Eu interpretei o final de uma maneira e a minha esposa de outra. Isso não significará que o objectivo do filme foi cumprido? Talvez.
Retomo a minha questão inicial. Com ‘Passion’ De Palma regressa ao estilo inicial da sua carreira, algo raramente visto após o seu sucesso com o épico de gangsters ‘Scarface’ (1983), mas não foi totalmente bem-sucedido. Recuperou a chama, mas não com a intensidade de outrora. Consegue aquecer, mas não queimar. Portanto devemos aplaudir ou lamentar? Bem, devemos fazer um pouco de cada coisa. Devemos aplaudir primeiramente, porque neste mundo moderno os thrillers sem efeitos especiais, somente assentes em personagem e na sua psicologia já não são assim tão comuns. E mesmo os que existem muitas vezes estão tão mal construídos que até metem dó. Por esses motivos ‘Passion’ é cinema interessante. Mas por outro lado já vimos thrillers psicológicos sobre lutas de poder misturadas com sexualidade muito melhores que este filmezito (se me permitem o diminutivo), inclusive do próprio De Palma.
Inevitavelmente muitos realizadores que já estiveram no topo, com o avançar dos anos revertem para um estilo mais modesto, de mais baixo orçamento e mais próximo das origens, e De Palma não é excepção. ‘Passion’ é opulento visualmente, como só o trabalho de um mestre pode ser, com uma ilusória e artificial fotografia e alguma teatralidade na representação que fazem lembrar Truffaut ou Hitchcock, mas é muito pouco ambicioso estruturalmente. Ou pelo menos, se o pretende ser, não consegue. A história promete mas depois não satisfaz e o desfecho é frouxo e pouco imaginativo, o que nos leva a pensar se o tempo de De Palma já não terá passado, como muitos assumem. ‘Passion’ tem excelentes interpretações, excelente design de produção, excelente construção. Mas não se lhe pode chamar um excelente thriller. Serve para um serão interessante e até diferente de cinema, mas não será de todo memorável. Mesmo assim, merecia ter sido muito mais visto do que foi. Por amor de Deus, veja-se a quantidade de pessoas que foram a correr ver ’50 Shades of Grey’. Ao menos este é um filme feito por quem sabe fazer um filme. Mas devia ter acabado com um ‘bang’ e não acabou. A sua mornice desinspirada deitou (quase) tudo a perder.
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