Realizador: Emir Kusturica
Actores principais: Predrag Manojlovic, Lazar Ristovski, Mirjana Jokovic
Duração: 170 min
Crítica: Era uma vez um país… e esse país chamava-se Jugoslávia. E era uma vez um fabuloso realizador… e esse realizador chamava-se (e chama-se!) Emir Kusturica. E entre ambos desenrolou-se uma gigantesca história de amor que se reflecte, de filme em filme, na tela, para o deleite do espectador.
O país mudou. Teve uma guerra civil. Dividiu-se. E Kusturica acompanhou, julgou, comentou, através dos seus filmes. Mas não necessitou de fazê-lo abertamente, não necessitou de forçar claras mensagens geo-politicas. Manteve a sua integridade artística, a sua qualidade visual, e subtilmente obteve um efeito muito mais poderoso a contar sempre a história de personagens, de pessoas, de um povo. Surgindo fora dos principais países de produção cinematográfica (e nos anos 1980 mais difícil era do que agora), Kusturica pode orgulhar-se de ser um mestre realizador, explorando a fundo a herança e as tradições peculiares do seu pais para criar épicos surreais e obras primas do cinema. Filmes que obtêm a sua força não das metáforas escondidas, das mensagens embutidas, mas sim dos fabulosos estudos de personagem (que têm sempre prioridade em relação à “mensagem”), da atenção ao detalhe cinematográfico, do uso de música tradicional (que dá uma vivacidade acrescida as peças, por mais trágicas que possam ser), e do equilíbrio perfeito que Kusturica consegue sempre encontrar entre a poderosa relevância social da história dos seus filmes e o humor e o surrealismo com que as conta.
Em 1995, a Jugoslávia tinha acabado de passar pelo pior período da sua história recente, a guerra civil. ‘Underground’ (em português ‘Era uma vez um País’, um título acertado), é um gigantesco tributo de Kusturica ao seu país, um país que claramente ama. Se não se acredita nisso em provas dadas pelo próprio realizador no seu espólio anterior, é só ver ‘Underground’ para o saber, para sentir essa paixão. Com este filme, Kusturica venceu a sua segunda Palma D’Ouro em Cannes, um feito do qual poucos realizadores se podem gabar. A sua primeira havia surgido cedo na carreira, em 1985 com apenas o seu segundo filme, ‘O Pai foi em Viagem de Negócios’, um filme que revela o seu estilo de contar o todo a partir do íntimo, que em ‘Underground’ estaria ainda mais refinado. Seguiu-se ‘O Tempo dos ciganos’ (1988) e a sua odisseia americana, ‘Arizona Dream’ (1993), com Johhny Depp e Jerry Lewis.
Mas um realizador tão apaixonado pelo seu país não poderia ficar impávido aos acontecimentos recentes, nem poderia estar tanto tempo afastado. Kusturica podia ter julgado à distância e ter continuado a fazer filmes no conforto da América. Não o fez. Kusturica podia facilmente ter feito de ‘Underground’ um batido épico político, com o mesmo tipo de mensagem, e o mesmo olhar cru e estereotipado da guerra e dos conflitos entre indivíduos que simbolizam nações que já vimos um milhão de vezes no cinema, americano e sem ser americano. Também não o fez. São essas escolhas que fazem dele Kusturica, e que tornam o seu cinema especial. Negando todo o lugar comum do filme sobre a guerra, e evitando julgar o que se tinha acabado de passar no seu país, Kusturica apresenta um conto de fadas. Um conto de fadas de 50 anos do seu país.
À primeira vista, o filme parece ser a história de dois amigos, Marko (interpretado por Miki Manojlovic) e Blacky (uma interpretação do outro mundo de Lazar Ristovski), e da mulher, Natalija, cujo amor se divide entre ambos (Mirjana Jokovic), ao longo de três momentos fulcrais da história bélica da Jugoslávia. São eles a Segunda Guerra Mundial (a primeira parte passa-se em 1941), a Guerra Fria dos anos 1960 (sob o regime de Tito) e a Guerra Civil do início dos anos 1990. Mas isto é só à primeira vista. O filme, obviamente, é muito mais do que isso. Estas três personagens são a força motriz do filme, e é a forma como as relações entre eles se desenrolam e evoluem ao longo dos anos que subtilmente formam a alegoria do todo, ou seja, a história deste país. Este estilo argumental não é propriamente uma novidade, mas talvez só apenas Bertolucci com o seu ‘Novecento’ (1976), que retrata a primeira metade do século XX italiano através dos olhos das personagens de Robert DeNiro e Gerard Depardieu, tenha chegado tão perto da perfeição cinematográfica que Kusturica apresenta. E se ‘Novecento’ envereda pela tragédia dramática e humana, ‘Underground’, ao longo das suas três longas horas, desemboca em completo surrealismo, uma ilusão sonhada de esperança para o futuro desta nação e deste povo.
Os segmentos do filme estão enquadrados pelo estilo que apenas um ano antes havia provado ser extremamente popular em ‘Forest Gump’, em que as personagens surgem no meio de marcantes imagens reais graças à ajuda das novas tecnologias cinematográficas. Por entre estas cenas chave, que definem os momentos históricos cruciais da película, a história do filme vai-se desenrolando. Na primeira parte assistimos à invasão Nazi da Jugoslávia, em plena Segunda Guerra Mundial, e como isso afecta as vidas do triângulo amoroso que constitui o cerne humano do filme. Marko é um empresário astuto que é também um traficante de armas. Deixando que outros façam o seu trabalho sujo, Marko é o ‘político’ que irá lenta mas seguramente subir na vida. Blackie, o brilhante Blackie, tem muito menos classe que o amigo, é retratado como um homem no limiar da sanidade, um guerreiro devotado, um pau de toda a obra sem grande inteligência que ama mulheres, a bebida e que se sacrifica quando é preciso pelo bem da pátria, sem fazer perguntas. Precisamente o homem ideal que Marko pode usar para seu beneficio. Já Natalija é retratada como uma mulher superficial, uma popular atriz de teatro que quando a guerra rebenta não tem estofo para trabalhos forçados e portanto procura o conforto de um homem que cuide dela e que também lhe dê dinheiro para o tratamento do seu irmão doente. Inicialmente ela relaciona-se com Blackie, que lhe dá joias roubadas, mas quando este é procurado pelos nazis, Natalija procura outras vias; um oficial alemão chamado Franz, e mais tarde, um Marko em ascensão no partido.
Marko e Blacky tornam-se importantes membros da resistência e assaltam um comboio de armas e munições. Marko cria um esconderijo secreto na cave do seu avô, e é lá que escondem o saque e montam uma fábrica de armamento, e é lá igualmente que se escondem quando o cerco nazi aperta. À medida que nos aproximamos do fim do primeiro segmento as coisas já mudaram. Marko já ascendeu no Partido para a posição de secretário e Blacky continua a antagonizar, com a sua peculiar fanfarronice, quer nazis quer os membros do próprio partido quer Marko, quando este se começa a fazer a Natalija. Quando os Nazis, incluindo Franz, se aproximam perigosamente, dá-se um confronto inevitável, em que Blacky supostamente morre. Pouco depois a guerra termina. Blacky é um mártir e Marko é uma força em ascensão… com Natalija ao seu lado.
O segundo segmento passa-se quase vinte anos depois, no início da década de 1960. Marko, agora casado com Natalija, tem poder politico no regime de Tito, mas esconde um enorme segredo. Ele nunca disse aos trabalhadores que se esconderam na cave (liderados por Blacky que afinal não morreu), que a guerra acabou. Vinte anos volvidos, de quando em quando Marko desce à cave e com uma série de inteligentes artifícios continua a convencê-los que os nazis ainda estão à superfície, e portanto eles não podem sair e devem continuar a produzir armas. Armas essas, obviamente, que são uma enorme fonte de lucro para Marko. Só que um dia Blacky, instigado por uma série de eventos, não aguenta mais e decide ir à superfície dar o seu contributo à resistência. E é aí que a porca torce o rabo, principalmente porque Blackie ascende em pleno cenário de guerra, pois vai parar precisamente às filmagens de um filme sobre a vida de Marko… Depois do clímax, o filme entre no reino da surrealidade, com o seu terceiro segmento, passado nos anos 1990. As personagens encontram-se, como se de um sonho de tratasse, na Bósnia, para um final ilusório (quase) de conto de fadas…
‘Underground’ é um filme poderoso. Ponto final. Mas a sua riqueza não vem, como se poderá erroneamente pensar, da sua inerente mensagem politica. Pode ler-se na internet que o filme foi fortemente criticado internamente por tentar promover a (re)união das províncias da ex-Jugoslávia. Mas honestamente, se existe esse objectivo, não é o que se retém do filme, nem me parece que era (apenas) isso que Kusturica tinha em mente. O filme é acima de tudo uma enorme ode ao passado do país, um tributo à forma como ele se conseguiu erguer no século XX, mesmo que amaldiçoado por vários conflitos. É um tributo ao passado para que se possa compreender o futuro, não uma crítica a esse futuro, nem o tomar de uma posição sobre a forma de como esse futuro deve ser vivido.
Mas mais importante que o país é o povo. É o povo que forma o país. Passem as guerras, passem os ditadores, o povo permanece. Através das relações emocionais e de amizade entre o seu trio de personagens principais ao longo de 50 anos (quase uma vida), Kusturica forma as metáforas, os paralelismos, para tudo o resto, para tudo o que quer exprimir. Marko, Blackie e Natalija são a alma da Jugoslávia, são a própria Jugoslávia, e o seu destino é o destino do país. Por isso mesmo, se o final fantasioso não faz sentido, ou pelo menos possa possuir tantos significados diferentes quanto espectadores, não interessa. Não interessa pois Kusturica deu o sopro de vida (de uma vida quase real) às suas três personagens principais, e às várias personagens secundárias (a quem, diga-se, é dado tempo suficiente para se tornarem interessantes, relevantes e credíveis), de forma a que todas se tornem apelativas e apropriadas para o papel, o principal papel, que estão a desempenhar: o do próprio país.
Acredito que esse é o grande segredo da mestria de ‘Underground’. Se não percebermos nada de geo-política e virmos o filme completamente fora de contexto, vamos continuar a ver um filme que mantém o seu interesse, pela história das suas personagens, pelo carisma que delas emana, pelo inventivo argumento cheio de surpresas e revelações surpreendentes, pelo humor sempre presente (vintage Kusturica), pelas cenas de música e dança que dão ao filme uma enorme energia. E de repente, está aqui o retrato de um povo.
Logo após ‘Underground’, Kusturica teria o seu maior sucesso internacional com ‘Gato Preto, Gato Branco’ (1998), genialmente engraçado e irreverente, mas muito mais leve em termos de mensagem, e voltaria a misturar guerra com fabulosos retratos de personagem em ‘A Vida é um Milagre’ (2004). Mas continuo a achar que ‘Underground’ é o seu filme mais humano, provavelmente porque é o que os ingleses chamam um ‘labour of love’. As suas três horas de duração são talvez demasiado excessivas (épico que se preze tem que ser longo), mas a forma como tudo se equilibra no ecrã cena após cena torna sempre o filme apelativo. Os próprios actores assumem que estão dentro de um conto de fadas, o que pode ser um senão para quem procura coerência e veracidade histórica. Mas não é a própria vida um conto de fadas? É essa a veracidade de Kusturica e, nesse sentido, ‘Underground’ é um dos maiores contos de fadas jamais filmados. E se não é uma obra prima… bem, anda lá muito perto.
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