Realizador: Alejandro González Iñárritu
Actores principais: Michael Keaton, Zach Galifianakis, Edward Norton
Duração: 119 min
Crítica: A história do cinema possui uma série de obras-primas passadas nos bastidores do teatro, onde actores dão tudo o que têm (e por vezes o que não têm) para produzir a sua derradeira peça, para interpretar o seu derradeiro papel, obtendo assim reconhecimento (do público mas também pessoal) e saciar os seus demónios interiores. Filmes onde, facilmente, a história da peça de teatro se começa a confundir com a história do próprio filme, e o mesmo paralelismo ocorre entre o actor principal e a personagem que está a interpretar na peça dentro do filme, levando muitas vezes a uma tragédia no, passe o trocadilho, acto final. Estou a falar de filmes como ‘A Double Life’ (1947) onde Ronald Colman ganhou o seu Óscar de Melhor Actor; ‘Opening Night’ (1977) de John Cassavetes; o fantástico ‘The Dresser’ (1983) com Albert Finney ou, se passarmos para o mundo do ballet, ‘The Red Shoes’ (1948) e mais recentemente ‘Black Swan’ (2011).
‘Birdman’, o novo filme do mexicano Alejandro González Iñárritu, entra facilmente, mas muito facilmente, para esta pequena lista de grandes obras passadas nos bastidores do teatro. Com um argumento fluído e bem escrito, uma realização íntima e a salientar o trabalho dos actores (que é de primeira água), ‘Birdman’, que ostenta o subtítulo de ‘The Unexpected Virtue of Ignorance’ (a inesperada virtude da ignorância), tem virtude e não é nada ignorante do ponto de vista cinematográfico, mas isso, conhecendo o trabalho anterior de Iñarritu, não é inesperado. O que é inesperado é a forma como ele consegue ser tão focado, negando o comercialismo excessivamente dramático que tem caracterizado as suas obras. O que é inesperado, é que ‘Birdman’ não só reflecte com interesse e dinâmica a semana na vida destas personagens (a semana antes da estreia da sua peça), dando ainda por cima a ilusão de que o filme está todo a ser filmado num único take, como ainda consegue ser uma semi-sátira bastante interessante à cultura moderna e ao comercialismo cinematográfico. Porquê semi? Já vamos perceber.
Confesso que nunca fui grande fã do trabalho de Iñarritu. A prova é que tenho o DVD de ‘Biutiful’ (2010), o seu filme anterior, na estante já há uns bons dois anos, e ainda não o vi. Os seus outros três filmes: ‘Amores Perros’ (2000), ’21 Grams’ (2003) e ‘Babel’ (2006), na minha opinião foram ficando cada vez mais comerciais, e cada vez piores. Se em ‘Amores Perros’ ainda ficamos envolvidos na estrutura Tarantinesca em mosaico, nas personagens peculiares, e no pathos trágico da história, já ’21 Grams’ tem um excessivo dramatismo, completamente artificial, forçado pela goela abaixo do espectador, e ‘Babel’ pega em tudo o que de bom havia no trabalho de Iñarritu e mastiga-o muito bem mastigadinho, troca-o por miúdos, para ‘chocar comodamente’ e seduzir as massas. Nunca critiquei a sua capacidade técnica como realizador. Essa é inegável. Mas sempre achei que os seus argumentos eram pretensiosamente ambiciosos, como telenovelas excessivamente bem filmadas ao estilo de um Douglas Sirk da era moderna. Por isso sempre gostei mais de ‘Amores Perros’, porque ainda tinha aquela inocência do realizador estreante. Mas agora, com ‘Birdman’, encontro um novo filme preferido de Iñarritu. E a mudança de tom, a focagem mais nas personalidades e menos no drama que estão a viver, seduz e é bastante bem vinda no trabalho deste realizador.
‘Birdman’ foca-se na personagem de Riggan Thomas (destramente protagonizado por Michael Keaton), um actor que 20 anos antes havia alcançado fama mundial ao interpretar o super-herói Birdman em blockbusters de Hollywood, mas que agora é só uma celebridade já quase esquecida. O filme, que se passa todo dentro de um teatro da Broadway, e nos passeios da própria Broadway, retrata a preparação de uma peça dramática ‘séria’, escrita, produzida, realizada e protagonizada pelo próprio Riggan – a sua última tentativa desesperada de ser aceite como actor verdadeiro, de voltar à fama e de cair nas boas graças dos críticos.
Os críticos do filme, e a própria publicidade do filme, foram céleres a formar os paralelismos desta personagem com o próprio Michael Keaton, que foi o primeiro Batman da era moderna nos filmes de Tim Burton, assinalando ‘Birdman’ como o seu comeback. Mas estes são os críticos que nunca olharam para Keaton como um actor, e sempre o viram e negligenciaram como “um cómico”. Eu sempre gostei de Keaton, acho que ele é incrivelmente engraçado, ainda é o melhor Batman até hoje, e fui um acérrimo defensor de que lhe roubaram rudemente um Óscar de Melhor Secundário em 1993, pela sua interpretação do guarda Dogberry em ‘Much Ado About Nothing’ de Kenneth Branagh.
Como Riggan, Michael Keaton não demonstra muito mais daquilo que já tinha provado que conseguia fazer, em filme dramáticos anteriores. A sua intensidade e versatilidade facial, o seu leque de emoções, a incrível naturalidade, tudo já foi visto antes. A diferença, realmente, é que agora está a fazê-lo num filme “sério”, e portanto, como consequência, já é levado a sério. E o paralelismo de Birdman para Batman é mais que óbvio, mas é apenas um aparte, quase nada importante, em termos da linha emocional do argumento. O forçado paralelismo está mais na publicidade ao filme (tal como fizeram com Mickey Rourke em ‘Wrestler’, embora ele tenha sido boxeur e não wrestler, e já tivesse regressado ao cinema há mais de uma década), e realmente não interessa quando o começamos a ver. Keaton está brutal e merece o Globo de Ouro que recebeu ontem e é um sério candidato ao Óscar, mas é preciso assinalar que está a actuar no mesmo comprimento de onde em que sempre esteve.
Em enormes planos sem cortes, Iñarritu mostra os bastidores da preparação da peça a poucos dias da estreia. Obviamente é um ambiente caótico que Riggan sustém a cuspo. Ele próprio está por um fio, amaldiçoado pelas memórias de quando era rico e famoso, ouvindo a voz do seu alter-ego Birdman em momentos de insanidade e imaginado que tem superpoderes, perdido na sua busca por alguma verdade de interpretação, procurando ser mais do que uma estrela esquecida. O elenco da sua peça de teatro inclui uma jovem estreante interpretada por Naomi Watts, um arrogante actor famoso do teatro interpretado por Edward Norton (fantástico), cujo ego choca com o de Riggan, e outra actriz ingénua interpretada por Merritt Wever, que poderá estar grávida de Riggan. Orbitam ainda pelo teatro a sua rebelde filha, que acabou de sair de uma clínica de reabilitação por dependência de drogas e sofre da síndrome clássica dos filhos das celebridades (finalmente um papel em que vemos Emma Stone a Actuar com A maiúsculo), a mãe desta e sua ex-mulher (Amy Ryan), o seu nervoso agente (Zach Galifianakis), e finalmente uma poderosa crítica de teatro (Lindsay Duncan) que odeia estas estrelas de Hollywood que vêm para a Broadway brincar aos teatros e que ameaça seriamente destruir a peça na sua crítica.
O filme é uma poderosa tour de force de actuação e de organização cénica, onde vamos compreendendo, através de monólogos extremamente bem escritos, o íntimo destas personagens (talvez o melhor argumento do ano a par do de ‘Grand Budapest Hotel’). Claro que Iñarritu não consegue resistir à tentação de apimentar estes monólogos com tácticas cinematográficas para parecerem melhores do que são. Com tão bons actores secundários neste filme, vemos constantemente as nomeações nas cerimónias de prémios a irem apenas para Emma Stone. Porquê? Porque no seu monólogo fulcral a câmara está a dez centímetros do seu rosto e não há um único corte em mais de dois minutos! Mas porque quer monólogos quer actores são bons, perdoamos a ofensa.
Interagindo com as várias personagens à vez, Riggan vai-se afundando cada vez mais emocional e psicologicamente, à medida que nos aproximamos do dia da estreia. O seu arco emocional é soberbo e a forma como a sua personalidade Birdman (que obviamente representa a ilusão da celebridade) começa a tomar conta dele é magnífica, provocando algumas sequências fantasiosas. Ao mesmo tempo, o filme vai-se desviando apenas levemente para uma ou outra história secundária, como por exemplo a relação que começa a surgir entre Emma Stone e Edward Norton. Mas numa manobra de mestre, e com incrível subtileza, o filme reverte isso para o ponto de vista de Riggan, tal como faz com todos os restantes eventos. Tudo contribui para o clímax da personagem (e do filme), em acções que se vão acumulando lentamente, até o copo inevitavelmente transbordar, com um estrondo. Em que altura? Obviamente, na noite de estreia.
O filme mistura este retrato credível e profundo das personagens, esta fantástica edificação argumental, com momentos de comédia negra e uma crítica acutilante, mas nunca azeda, aos lugares comuns da indústria cinematográfica, das suas estrelas e da fama instantânea dos dias de hoje através da internet. No início chamei a ‘Birdman’ uma semi-sátira, precisamente porque esta vertente crítica está pouco explorada. Iñarritu não consegue, mesmo perante um drama muito bem construído, lagar o inerente comercialismo nem morder a mão que o alimenta. A crítica é sempre soft, bem como as bocas diversas a George Clooney ou Robert Downey Jr, por exemplo. São piadas inofensivas para o público sorrir. A paródia ao twitter, ao facebook e ao youtube (por exemplo na cena hilariante em que Riggan fica preso, em cuecas, na rua e tem que dar a volta ao quarteirão para voltar a entrar no teatro), é também muito superficial e ironicamente (ou não) foram coisas como estas que ajudaram a alimentar o sucesso do próprio filme. Quando a crítica de teatro faz um longo monólogo a acusar as estrelas dos blockbusters de Hollywood de não serem actores verdadeiros, até podia parecer que o filme estava a tocar um ponto muito sensível. Mas como resposta, Michael Keaton debita um longo monólogo, muito mais espectacular (ou filmado para o ser), a denunciar todos os críticos, de cinema e de teatro, como artistas falhados, convencidos e amargurados. No final da cena, quem sai por cima é o actor, e não o crítico, e o público aplaude (e alguns críticos mais auto-conscientes também!).
Do mesmo modo, o final do filme, mais dramático à primeira vista do que acaba por ser, é totalmente comercial, afastando-se dos finais pungentes de ‘A Double Life’, ‘The Dresser ou ‘Black Swan’, para atingir uma moral que está taco a taco com a de ‘Scream 4’ (2011). Ou seja, a fama de tablóide poderá ser suficiente para curar um espírito quebrado e obter a redenção. Acho que nem o final aberto consegue afastar esta moral dúbia, o que poderá ser uma crítica simpática à indústria, mas não abona muito em favor da personagem de Riggan e da soberba construção de que foi alvo ao longo de todo o filme.
Pessoalmente, não gostei mesmo nada do final, nem da sua moral. Por outro lado, exceptuando o final, pouco encontrei que pudesse criticar em ‘Birdman’. Filme ‘musical ou comédia’ (como estava inscrito nos Globos de Ouro) é que não é de certeza, mas para um drama humano e íntimo sobre os bastidores do teatro, é um filme extremamente bem conseguido. E mais, nesta era moderna, ‘Birdman’ destaca-se por ser diferente. Diferente da estrutura clássica que têm os usuais filmes nomeados para estas cerimónias de prémios. E isso é óptimo, pois ao ver o filme, sente-se o sabor desse ar fresco, dessa irreverência, que apesar de truncada pelas convenções, realmente existe.
Talvez haja mais filmes como ‘Birdman’ por aí, mas estão do lado dos ‘filmes independentes’, e não têm uma distribuição alargada nem um exacerbado mediatismo. ‘Birdman’ convence e é um justo vencedor das actuais cerimónias de prémios pois consegue apontar para ambos os públicos; o mais comercial, com os seus momentos de sátira e com as suas piadas à indústria e às estrelas que todos podem perceber; e o mais cinéfilo, com a sua forte mestria técnica, a sua estrutura bem erguida e as suas fortes actuações. Que venham os Óscares e que Michael Keaton ganhe finalmente o reconhecimento que merece. E que Iñarritu faça mais filmes como este, e menos como ‘Babel’.
Ah, e quase me esquecia. Aquela banda sonora quase toda em bateria… chega a ser pesada, chega a ser enervante, chega a ser dinâmica, mas parece sempre, propositadamente, descompassada em relação à imagem. Uma opção estranha e ousada, que parece ser o equivalente ao drumroll antes de uma piada, e o bater de pratos na punchline…
Caro Mike, acho que tens de ver o Biutiful embora também acho que não te fará mudar a opinião sobre o Iñarritu. Em Biutiful e Birdman os argumentos já não são escritos por Guillermo Arriaga e essa parece-me a grande diferença. Acho os solos de bateria acompanhados dos guião do Câmara (para fazer o take unico) geniais e a inquietação que transmitem colocam o espectador no centro da narrativa. Convidar o Michael Keaton para este filme e mostrar do que ele é capaz, para mim, é a grande critica que o filme faz. Eu só alterava uma cena, no final aparecia o Antonio Sanchez a tocar um solo de bateria com os créditos no plano principal. Bom Trabalho! Continua.Abraço.
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