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The Imitation Game

Ano: 2014

Realizador: Morten Tyldum

Actores principais: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode

Duração: 114 min

Crítica: Se ‘The Imitation Game’ (O Jogo da Imitação) tivesse saído a meio do ano, era daqueles filmes que, por definição, eu nunca teria ido ver ao cinema. Nem eu nem muita gente. Talvez visse um dia em casa, mais tarde. Talvez. Mas é por isso que os filmes que são nomeados para os Óscares (‘The Imitation Game’ tem nada menos que 8 nomeações!) saem precisamente nesta altura do ano. Uma pessoa pensa “bem, ok, vamos lá dar-lhe uma hipótese”, mesmo sabendo à partida que não irá gostar muito. Bem, ok, eu dei-lhe uma hipótese, e caí que nem um patinho na esparrela de marketing que são os Óscares modernos. E, surpresa, surpresa, não gostei muito.

Caro leitor, alguma vez se interrogou porque nunca se fez um grande filme de Hollywood sobre a vida de Albert Einstein? Eu interroguei-me, várias vezes, ao longo de ‘Imitation Game’, ontem à tarde numa sala de cinema portuense. A resposta parece-me bastante simples. Einstein tinha as peculiaridades e as excentricidades que costumam apimentar estes génios quando são retratados no cinema, mas isso todos temos, verdade verdadinha, quer sejamos génios quer não. Mas faltaram-lhe duas coisas muito importantes na sua vida. Primeiro não tinha um ‘segredo’ socialmente relevante; não tinha uma dependência de drogas nem era homossexual. Segundo não teve uma morte trágica; morreu tranquilamente num hospital americano com 76 anos de idade. O facto de ter sido um dos maiores génios mundiais, de ter avançado a investigação anos no campo da relatividade e de ter feito um enorme contributo para o final da Segunda Guerra Mundial, ao liderar o projecto Manhattan que desembocou na descoberta da bomba atómica, nada disso é mediático e impactante o suficiente para um filme.

Mas os dois factos que mencionei anteriormente são. E com eles: o segredo socialmente relevante e a morte trágica, já se consegue construir um filme digno de vencer, ou pelo menos ser nomeado, para os Óscares, e capaz de seduzir, com uma perna atrás das costas, audiências mundiais que procuram um filme-telenovela, um “drama de vida”, de “época”, baseado em, chamemos-lhe, “factos reais”, tocando aspectos “sociais”, que “choque comodamente” e que deifique um homem comum como um mártir, num papel feito à medida das cerimónias de prémios. Usei muitas aspas na frase anterior. E ‘The Imitation Game’ tem-nas todas. Mas todas. Se o filme tem ou não qualidade, como obra cinematográfica, é uma questão que surge apenas depois de estas aspas estarem todas comodamente assentes no filme e no espectador. Ou seja, é uma questão que é completamente relegada para segundo plano. 

Dirigido por Morten Tyldum, um realizador norueguês no seu primeiro filme em língua inglesa, este filme é uma daquelas biografias de época inglesas que se fazem às dúzias por ano. Ainda o ano passado, por exemplo, Ralph Fiennes realizou e protagonizou o filme ‘The Invisible Woman’ (2013) sobre os últimos anos de vida de Charles Dickens e ninguém lhe ligou nenhuma fora de Inglaterra. Mas antes de ‘The Imitation Game’ começar vemos o logotipo da Weinstein Company, a distribuidora americana que havia distribuído ‘The King’s Speech’ em 2010 e percebemos a marosca. Todos os anos há um drama de época inglês em que eles apostam para distribuir no mercado americano. Este ano foi este. E isso não implica que ‘The Imitation Game’ seja bom ou mau. Nem implica que seja melhor ou pior que as restantes biografias que se costumam fazer com os patrocínios da BBC e com os actores ingleses da moda. Implica simplesmente que o marketing foi todo direccionado para este filme e que os favores cobrados para obter votos foram todos em prol deste filme. E voilá.

‘The Imitation Game’ conta a história de Alan Turing, interpretado com rigor e dedicação, mas pouco carisma (“apenas” a personagem é carismática) por Benedict Cumberbatch, o actor inglês mais popular do momento. Que Turing foi um brilhante matemático é inquestionável. Que Turing teve um contributo decisivo para o desfecho da Segunda Grande Guerra também. Que Turing lançou as bases para os primeiros computadores também. E por isso deve ser louvado e homenageado. Mas em todas estas coisas não foi o único a contribuir, embora ‘The Imitation Game’ pareça dedicado em fazer parecer que sim, com uma arrogância que não lhe cai bem. Tudo o que Turing faz neste filme é brilhante. Ele sabe desde o início o que quer, o que vai construir, como o vai fazer. Ele sabe que tem razão, sempre razão, e nunca duvida de si próprio. Por outro lado, todos os que o rodeiam estão contra ele, constantemente, por uma panóplia de motivos. É o clássico enquadramento do génio incompreendido, do herói trágico contra tudo e contra todos. E o facto de o filme saber à cabeça (embora o espectador só saiba mais tarde) que Turing se suicidou tragicamente aos 42 anos, depois de ser condenado por ser homossexual e forçado a fazer um tratamento hormonal que inibiu as suas capacidades mentais, ainda mais faz aumentar esta aura de herói/ mártir/ incompreendido que o cinema tão bem sabe criar, e que este filme oferece desde o início.

Felizmente o filme nega muitos dos clichés das biografias, pelo menos inicialmente, o que é uma mais valia. O filme abre no início dos anos 1950, em Manchester. Turing está numa esquadra da polícia, prestes a ser interrogado. Engraçado que o segredo do seu contributo fulcral na Guerra foi mantido durante décadas, mas aqui está ele, nem dez anos depois, a contar tudo a um policia vulgar. Enfim… Tinham de contar a história ao público de qualquer maneira e a voz off é o meio preguiçoso mais popular. Guiados então por esta voz off de Cumberbatch regressamos ao início da década de 1940, a uma pequena vila anónima da Grã-Bretanha, onde o MI6 pretende criar uma equipa de elite dos maiores criptólogos do país, de forma a quebrar o código que os nazis usam em todas as suas comunicações de guerra: o Enigma.

Turing, como os outros matemáticos da equipa, foi recrutado directamente a partir da Universidade. Mas ao contrário dos outros, logo se distingue pelo seu anti-socialismo e pela arrogância. Para ele é apenas uma questão de tempo para quebrar o código e trabalha sozinho, negligenciando os outros. A sua abordagem é a correcta. A dos outros errada. Ele é inteligente. Os outros são burros. É uma arrogância extremamente exagerada, apenas minimizada por aquilo que o Sr. Mourinha, do Jornal Publico, salientou como um paralelismo a Sheldon de ‘The Big Bang Theory’. Turing, tal como retratado neste filme, não percebe o sarcasmo nem piadas. Só trabalha. Não tem outra vida. Não mistura comidas de cores diferentes. Etc, etc. Estes momentos humanizam-no e pretendem retratar as suas ‘peculiaridades’ sob uma luz simpática e humorística. Muitas das suas ‘peculiaridades’ são na realidade os traços de uma personalidade mesquinha, mas o filme recusa-se a dizer isso.

E para pôr o público do lado de Turing, o filme recorre ainda a outro artificio forçado. Até aqui até se pode dizer que estamos a ver um filme de época/espionagem, com umas pinceladas de drama pessoal, com o mínimo de interesse. Os diálogos podem ser 'inventados' mas ao menos o desenrolar das situações é, realmente, “baseado em factos reais”, como dizem no inicio do filme, e há aquela tensão de se vão ou não quebrar o código, e de como o vão fazer. Mas os flashbacks para a infância de Turing são uma completa invenção e estragam tudo. Vêmo-lo na escola a ser vítima de bullying, apenas por ser diferente, e com isto o filme justifica toda a personalidade arrogante e introvertida de Turing. A culpa é dos outros. Nunca dele. Depois vemos a sua amizade crescente com outro rapaz da escola, Christopher, a sua primeira paixão homossexual. É dado de uma forma delicada, sim, (e o jovem actor, Alex Lawther, há que dizer, é bom), mas isto é pura especulação. O facto de Turing ter dado à sua máquina de descodificação o nome de Christopher pode apenas querer dizer que quis fazer uma homenagem ao seu amigo de infância, não necessariamente que ele foi o seu primeiro amor…

De destacar pela positiva, no entanto, a personagem de Keira Knightley. Muito melhor do que no seu último filme, ‘Jack Ryan Shadow Recruit’ (2014), em que parecia sedada, Knightley interpreta uma matemática, Joan, que Turing contrata e que se torna a sua amiga mais íntima, e que o ajuda a melhorar as suas social skills. Ao mesmo tempo, a introdução desta personagem também permite mandar umas bocas sociais à descriminação do sexo feminino (acham sempre que ela é uma secretária, não acreditam que ela possa fazer o "trabalho de um homem", etc, etc). Mais tarde, Joan também se torna fachada para a homossexualidade de Turing. E é no final, em dois ou três monólogos algo lamechas, que Knightley mais brilha, revelando uma personalidade que até então a sua personagem não tinha tido, e procurando provar ao público mais um cliché: que por detrás de um grande homem está uma grande mulher…

O filme oscila então entre o período da infância; o tempo de Guerra onde a equipa trabalha non-stop para quebrar o código Nazi; e os anos 1950, em que o tal polícia de Manchester procura descortinar o passado secreto de Turing. E é enervante como aparece sempre a legenda a dizer em que ano e em que cidade estamos. Seria de imaginar que passado uma hora de filme o espectador já teria percebido quais os tempos da acção. Mas é daqueles filmes em que nos gostam de fazer a papa. Do mesmo modo como explicam umas cinco vezes o que é a criptografia. Não há uma única palavra sobre como funciona a máquina que Turing constrói para quebrar o código Nazi. Nem uma frase técnica (isso seria demasiado). Mas repetem vezes sem conta que a criptografia é quando se substitui uma letra por outra baseada numa chave, formando-se um código secreto. Só para quem ainda não percebeu…

O filme converge assim para a previsibilidade nos seus três tempos. Na infância Turing descobre que tem que guardar segredo da sua homossexualidade. Nos anos 1950 a investigação policial descobre essa homossexualidade e condena-a, destruindo assim, com tratamentos químicos, um cérebro que poderia ter dado imenso à ciência. E nos anos 1940 quebra-se o código Nazi mas sofre-se as consequências: o segredo de estado, o não contar a ninguém, o mentir para sempre sobre o que se fez na guerra. Tudo isto tem a consequência de Turing viver o resto dos seus dias no anonimato, solitário,  ostracizado, e sem poder contar a ninguém o quão importante foi. Isto é, se exceptuarmos o polícia que convenientemente ouve toda a história, décadas antes de ela se tornar pública.

No final se me perguntarem se o filme é uma homenagem digna a Alan Turing, não tenho nenhum problema em dizer que sim. A sua história, que a maior parte do público desconhece, merece ser contada. Foi um matemático importantíssimo, e é condenável ter sido perseguido pela sua orientação sexual. Mas podemos assistir à sua história num documentário do Canal História (vi um há vários anos, foi assim que a conheci), com os mesmos efeitos, mas obviamente, muito menos lustro. Em filme, e feito desta maneira, a vida de Turing fica ofuscada pelos apartes, um épico social sobre tudo e sobre nada. O filme anda perdido. Primeiro é sobre a espionagem em tempo de guerra (há ainda uma sub-plot sobre um espião russo na equipa), depois é sobre o homem por detrás da lenda, mas no fim afinal já é sobre todos os homossexuais perseguidos e condenados em Inglaterra na primeira metade do século XX. Tem uma pincelada de tudo mas não explora nada, num pacote com muitas luzinhas brilhantes, mas que não se decide entre a telenovela, os factos e o drama. E quando critica, é sempre de uma forma simpática. O suficiente para chocar, mas não para atirar as culpas para alguém. O filme é a telenovela de época por excelência, que comove, inspira (ou tenta inspirar), mas não ofende.

E por assim ser, tudo é pensado para agradar. Estamos a falar do filme em que tudo é muito bem explicadinho, como já disse. Estamos a falar do filme em que há discursos épicos, heróicos e patéticos, que as personagens debitam do pé para a mão. Estamos a falar do filme que esconde coisas sobre Turing, por exemplo a sua paixão por filmes da Disney (que é o tipo de trivia que se suporia que fosse citado) mas que neste filme estragaria a visão idílica que se está a criar da personagem. Estamos a falar do filme que faz grande alarido por a homossexualidade ser um crime e algo que se escondia, mas que tem a sua personagem principal a dizer não uma, mas duas vezes, em locais públicos, em voz alta, sem hesitar, sem temer as represálias nem tendo o cuidado de verificar se esta alguém a ouvir, que é gay, só porque convém ao filme naquele momento que a personagem o diga. Estamos a falar do filme que diz que durante quase 50 anos ninguém soube que foi Turing quem quebrou o código Nazi, e que a sua equipa foi obrigada a manter segredo depois da Guerra, mas que tem a sua personagem principal a contar tudo a um polícia, só porque é preso por uma coisa completamente diferente: solicitar sexo a um homem. Estamos a falar de um filme em que Turing diz, nos anos 1940, que sonha criar um ‘computador digital’ e Knightly nem pestaneja, porque obviamente são dois termos com que estaria totalmente familiarizada na altura.

E por fim, estamos a falar de um filme que insinua que a Guerra só foi ganha por causa de Turing, o que é uma grande parvoíce. Em ‘The King’s Speech’ insinuava-se que a Guerra só foi ganha porque o Rei tinha feito um discurso sem gaguejar. Aqui insinua-se que a Guerra só foi ganha por causa da máquina que Turing inventou. Decidam-se por favor qual deles ganhou a Guerra… Einstein? Bomba atómica? Invasão da Normandia? Tudo em conjunto? Naah. Turing, Turing, Turing.

‘The Imitation Game’ é uma biografia cor-de-rosa. Bem feita? Certamente. Bem realizada? Com certeza. Bem actuada? Outra coisa não seria de esperar. Bom design de produção? O melhor que a escola britânica já nos habituou – filmes de época sabem eles fazer. Mas posto isto tudo, é um bom filme? Não me parece, pois falta-lhe a componente humana acertada e um interesse na história que está a contar. Humanidade tem aos magotes, mas sempre apontada àquele objectivo fixo de estereotipar uma época, uma personalidade, um estado de espírito, uma orientação sexual. E a forma como o argumento se estrutura tem um interesse limitado, mais uma vez porque não se decide se quer ser um drama de guerra ou uma tragédia pessoal. 

Alan Turing foi oficialmente perdoado pelo governo britânico do seu ‘crime de homossexualidade’ em 2013. Mais que óbvio que o filme sobre a sua história seja lançado um ano depois. A história merece ser contada. O filme é que não o faz com muito interesse. Entre o facto e a novela, foca-se na novela. Está na linha de ‘King’s Speech’ (2010), de ‘Philomena’ (2013) e uns degraus abaixo de ‘Beautiful Mind’ (2001), cuja história valia por si. Neste caso não vale. Isto é um daqueles filmes que se vê em família em casa e não no cinema, e muito menos um para ganhar prémios. É a visão fantasiosa sobre um homem. Uma visão que o endeusa, que eclipsa tudo o resto, que toma um ponto de vista extremamente redutor da História para criar um herói muito mais grandioso e muito mais trágico do que aquilo que realmente foi.

E depois usa a homossexualidade de Turing como desculpa, para a sua personalidade e para a dimensão humana e emocional da peça. Felizmente, tenho de dizer, o filme não é demasiado ostensivo a fazê-lo; ou seja, não deixa que a homossexualidade de Turing tome conta de tudo, como acontece em muitos filmes. Aliás, na maior parte do filme isso é irrelevante, como deveria ser. Afectou o seu trágico fim, claro, mas não foi relevante para o seu trabalho em tempo de Guerra. Felizmente o filme consegue discernir as duas coisa e não tem golpes (demasiado) baixos no retrato da personagem. Há uma busca cinematográfica sincera e clara pela humanidade de Turing. Mas pelo que é dado, não creio que os cineastas a tenham encontrado. Dois cineastas podem filmar a mesma história sobre um génio homossexual perseguido e um fazer um filme brilhante e o outro não. Como repito várias vezes nesta página, não é o tema que conta, é o filme. Neste caso é tudo demasiado leve, demasiado preto no branco, demasiado limpinho, e depois reverte, inevitavelmente, para a chantagem social. Sabemos perfeitamente que é o facto de Turing ter sido homossexual que valeu as nomeações para os Óscares, e que distingue este filme ou 'The Theory of Everything' (por causa da deficiência de Hawking), na esfera crítica, de um filme exactamente igual feito sobre Einstein. E isso é também uma forma de descriminação, a meu ver.

‘The Imitation Game’ é o filme clássico dos Óscares da era moderna. Nem mais, nem menos. Não tenta enganar ninguém e dá aquilo que promete. É o melodrama de época e socialmente relevante do ano, e fará as delícias de milhares de espectadores. Só não faz as minhas, porque eu sou demasiado picuinhas, quando me tentam impingir emoções irreais pela goela abaixo.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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