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Jeux interdits

Ano: 1952

Realizador: René Clément

Actores principais: Georges Poujouly, Brigitte Fossey, Amédée

Duração: 86 min

Crítica: Qual é o segredo para fazer um filme extraordinário, incrivelmente profundo, emocionalmente complexo, mas com uma aparente (e enganadora) simplicidade, uma história linear e directa, actores que parecem que não estão a actuar mas a viver, e tudo isto em menos de 80 minutos? A resposta está no cinema francês do pós-guerra. Não o ‘cinema de papa’ que os críticos da Nouvelle Vague tanto detestavam – o cinema de ‘velhos’ e institucionalizados realizadores que seguiam modas e formalismos cinematográficos fixos e pouco imaginativos – mas o cinema de realizadores novos que experimentavam, desafiavam e evoluíam, e que foram a maior das inspirações para os realizadores que apareceriam nos anos 1960: Truffaut, Godard, Malle. Estou a falar de realizadores como Renoir, como Clouzot, como Ophuls ou como René Clément.

Quinze anos antes, com ‘Partie de campagne’ (1936) Renoir provou que só eram precisos 40 minutos para fazer uma obra-prima, para encapsular tudo, para na simplicidade de um fim-de-semana no campo francês fazer o retrato lírico, honesto e profundo de toda uma vida. Clément, ele próprio, passou a década de 1930 e 1940 a fazer documentários e curta metragens, mas do que vi até agora (infelizmente não foi ainda muito para dominar a sua carreira), foi no virar da década de 1950 que atingiu esse estado mais pleno de beleza e simplicidade cinematográfica. E apesar de ter tido sucessos como ‘Monsieur Ripois’ (1954) ou ‘Plein soleil’ (1960, recentemente restaurado pela cinemateca francesa e o primeiro filme com a personagem de Tom Ripley), é em ‘Jeux Interdits’ (1952), em português 'Brincadeiras Proíbidas', o seu sétimo filme, que esta simplicidade de incrível profundidade, tão típica dos primórdios do neo-realismo (antes de se ‘banalizar’), mais brilha. E o facto de o filme ter sido concebido inicialmente como uma curta-metragem (só durante a produção recebeu financiamento para ser ‘alargado’), ajuda a esta estrutura directa, simples e pura, que só o cinema não americano, livre dos formalismos do sistema de estúdios, conseguia por esta altura oferecer ao público mundial.

O filme passa-se no ano de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, um tema típico destes novos realizadores franceses e de Clément em particular (não é surpreendente, a guerra nem há 10 anos tinha terminado). Na primeira cena, assistimos ao bombardeamento de aviões alemães da bela paisagem rural francesa. Uma caravana de famílias francesas que procura fugir para o campo é o alvo e logo à cabeça o filme tem imagens impactantes e intensas. E como se isto não bastasse o filme põe logo o coração do espectador na boca. Uma pequena menina, Paulette, interpretada de uma forma extraordinária por Brigitte Fossey (que tinha apenas seis anos de idade, imagine-se, na altura das filmagens), assiste à morte dos pais mesmo à sua frente. Sozinha depois do perigo passar, ela é encontrada por outro jovem, Michel, um pouco mais velho, interpretado por Georges Poujouly. Michel decide levar Paulette para a sua quinta e a sua família adopta-a.

Por uns momentos, o filme aninha-se confortavelmente no esquema clássico da rotina diária da pequena vila francesa em tempo de guerra, que tantos outros filmes franceses retrataram. A família de Michel luta dia após dia para ganhar a vida, trabalhando na sua quinta, e ao longo dos dias vão tendo discussões amigáveis com os seus vizinhos, vão à igreja, enterram os seus mortos, e escondem-se da ameaça constante dos aviões e dos bombardeamentos alemães.

Contudo, este esquema clássico é apenas o pano de fundo, é apenas a superfície que esconde a verdadeira profundidade do filme, que não tarda a ser revelada. Por detrás desta fachada rotineira (embora Clément a ofereça ao público com dinâmica), a relação entre as duas crianças vai crescendo e evoluindo. E é mais do que uma mera amizade entre duas crianças. É mais do que um alheamento da realidade para encontrar o seu próprio mundo e assim fugir aos horrores da guerra. Ambas estão unidas por um segredo comum, muito mais grave, consequência da sua inocência e da sua juventude no contexto bélico em que se encontram. E esse segredo é um fascínio mórbido com a morte, que à medida que o filme evolui vai crescendo e crescendo até se tornar numa obsessão, que para o espectador parece quase doentia mas que não deixa de estar enquadrada na vontade normal das crianças ‘brincarem despreocupadamente’, o que torna os eventos bastante mais intensos.

Tudo começa quando o cão de Paulette morre e ela e Michel fazem uma cerimónia secreta de enterro, dentro de um velho moinho. Um pouco mais tarde, um pequeno insecto também morre e eles decidem enterrá-lo ao lado do cão. De repente, já Michel está a matar intencionalmente todos os pequenos animais que consegue encontrar só para o seu cemitério secreto ficar um pouco maior, como se fosse uma colecção. E em breve isto já passou de uma ‘brincadeira’ para um vício mórbido. Como se não bastasse, Paulette também começa a decorar o cemitério com cruzes, e pressiona Michel para lhe arranjar todas as cruzes que conseguir encontrar. Para satisfazer os pedidos da sua melhor amiga, Michel começa a roubar cruzes quer da igreja, quer do cemitério; quanto mais bonitas, melhor. Eclipsando a guerra e as privações, esta rotina torna-se a sua vida, este segredo torna-se a sua razão de viver, esta amizade um pelo outro torna-se tudo o que têm neste mundo.

Mais cedo ou mais tarde, como não podia deixar de ser, Michel é descoberto, e no final, unidos pelo seu segredo, Paulette e Michel enfrentam um inevitável clímax, contra adultos que não os entendem e os querem separar. O final, contudo, não é inequívoco, e esta ambiguidade que Clément injeta no filme dá-lhe uma adicional profundidade e um significado que, já sendo evidente, fica assim bastante mais vincado e mais pungente, tatuado no coração do espectador longas horas depois de ter acabado de assistir à película.

Com esta parábola em tempo de guerra, incrivelmente simples conceptualmente, mas incrivelmente hipnotizante e incrivelmente profunda em significado, Clément representa como os horrores da guerra podem ser distorcidos pelo olhar inocente das crianças, e que subterfúgios usam para escapar, psicologicamente, a esses horrores (tal como a criança de ‘Mitt liv som hund’ escapa à morte da mãe e do cão, por exemplo). Sob o efeito de um contexto que os ultrapassa e que dificilmente entendem, as crianças inventam jogos e brincadeiras nos quais não vêem mal, mas que formam um claro paralelismo com os ‘jogos’ e ‘brincadeiras’  letais que os adultos à sua volta ‘jogam’ todos os dias. Paulette e Michel estão fechados no seu pequeno mundo, pouco se apercebendo do colapso que ocorre à sua volta, mas na sua pequena bolha, no seu pequeno micro-cosmos, os sentimentos que crescem são os mesmos, os fascínios mórbidos que criam são os mesmos, os afectos que os unem para sempre (irmãos de brincadeiras/armas) são os mesmos, e a união que formam para lutar contra o mundo dos adultos e manter a sua “inocência” também é a mesma – a mesma que existe entre povos, entre soldados, num insano mundo em guerra.

Uma fantástica alegoria, ‘Jeux interdits’ peca por ter algumas cenas secundárias (da vida da aldeia por exemplo) que retiram a atenção da história principal, e por repetir algumas ideias em cenas diferentes, mas isto poderá ser consequência da sua expansão de curta-metragem para uma longa-metragem de oitenta minutos. Mas a vantagem desta expansão é que a simplicidade das cenas é mantida, o que torna esta obra bastante especial. É acessível, mas ao mesmo tempo tem uma profundidade tão grande que é o espectador que tem de preencher o significado por si, o que é óptimo. Como disse no princípio o filme consegue ser incrivelmente profundo e emocionalmente complexo, mas tem uma uma aparente (e enganadora) simplicidade e uma história linear e directa. Tal como obras primas de Bresson (‘Mouchette’, 1967) ou de Satyajit Ray (‘Charulata’, 1964), aqui menos é mais, e o segredo está no lirismo da história, na mensagem poderosa que está entre as linhas e não propriamente naquilo que é mostrado. Ao som de uma poética banda sonora de Narciso Yepes, e com um final comovente de fazer soltar uma (ou várias) lágrimas, e que não é propriamente esperançoso, o filme aprofunda as consequências da guerra nas crianças como praticamente nenhum outro, e é um dos mais convincentes manifestos anti-guerra que eu já vi no cinema, apesar de ir por caminhos que muitos podem considerar controversos (as brincadeiras proibidas do título...). A meu ver, é um filme que fica no coração, e isso é importantíssimo.

Mais do que uma história de guerra, mais de que uma história de ‘pessoas no meio da guerra’, ‘Jeux Interdits’ é um manifesto trágico e pungente, cheio de coração, mas imbuído da acidez da realidade. É praticamente perfeito, mais ainda se pensarmos nele como uma curta e não como um filme (mas a sua falta de dimensão é, como disse, uma vantagem e não uma desvantagem) e para um produto tão simples é incrível a quantidade de valências que oferece. E brilhando mais do que até a própria mensagem, a própria alegoria do filme, está a performance de Fossey. Com 6 anos de idade, no seu primeiro filme, ela exibe uma profundidade dramática raramente vista em actrizes mais famosas, mais velhas e mais experientes. É extraordinário. Uma das melhores performances de um child actor de sempre, o reverso da medalha da jovialidade despreocupada de uma Shirley Temple. E quando ela grita ‘Michel, Michel’ no final, estamos completamente rendidos a esta actriz infantil, estamos completamente rendidos ao filme, com um nó na garganta. 

Por todos estes motivos o filme envelheceu optimamente e recomenda-se. Graças aos senhores do Studio Canal temos agora um restauro excelente disponível no mercado do cinema em casa. Há uns quatro ou cinco anos comprei esse DVD, com legendas em inglês, por 3 euros na estação de comboios de Bruxelas. Excelente compra. Se tiver semelhante oportunidade, caro leitor, não hesite. Não se arrependerá e é um filme que poderá revisitar de quando em quando, para se comover e para mergulhar na lírica arte cinematográfica do poderoso e humilde cinema francês pré-Nouvelle Vague.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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