Realizador: Hayao Miyazaki
Actores principais (voz): Hideaki Anno, Hidetoshi Nishijima, Miori Takimoto
Duração: 126 min
Crítica: Desta vez, 17 anos depois, parece que é mesmo o adeus definitivo. Mas com Hayao Miyazaki nunca se sabe, o que também contribui para o seu encanto. Em 1997, depois de ‘Mononoke-hime’, Miyazaki anunciou que se iria retirar da realização, e que ficaria exclusivamente nos cargos de produção e de criador de ideias originais para argumentos de outros realizadores do estúdio Ghibli, que havia formado em meados da década de 1980.
Por esta altura, Miyazaki já se tinha estabelecido como o maior artista da animação tradicional desde Walt Disney. Um feito notável para um homem tímido e humilde, mas com um enorme conhecimento, uma enorme visão e uma enorme sensibilidade à arte (é só ler o seu livro ‘Starting Point’ para ter um vislumbre do génio). Miyazaki tinha estado associado como animador à revolução dos desenhos animados japoneses, e às co-produções nipónico-europeias, nas décadas de 1970 e 1980 (Marco, Heidi, Sherlock Hound), e o sucesso dos seus primeiros filmes ('Rupan sansei: Kariosutoro no shiro', 1979 e principalmente 'Kaze no tani no Naushika', 1984), permitiram-lhe formar o estúdio Ghibli com o seu amigo e colega de longa data Isao Takahata, para ter a independência e a liberdade que tanto desejava. Sucesso após sucesso no Japão, com 'Tenkû no shiro Rapyuta' (1986), 'Tonari no Totoro' (1986), 'Majo no takkyûbin' (1989) e 'Kurenai no buta' (1992), a chama de Miyazaki ainda escapava à maior parte do Oeste, a não ser a um certo e determinado senhor chamado John Lasseter, que então dava os primeiros passos num pequeno estúdio chamado Pixar.
Mas o sucesso internacional do genial, lírico e dinâmico ‘Mononoke-hime’ foi fulcral por dois motivos. Primeiro a animação tradicional estava a morrer (muito consequência do sucesso da Pixar, ironicamente), e poucos anos mais tarde morreria completamente, portanto o estúdio Ghibli, e principalmente Miyazaki, tornaram-se o bastião mundial desta arte perdida. Animação por computador não entra na Ghibli e é óptimo que o sucesso dos filmes permita que tenham a liberdade financeira para manter essa integridade. E segundo, também foi o incentivo para Miyazaki não acabar a sua carreira cedo de mais, quando ainda tinha o melhor de si para dar. Desde então, o seu filme seguinte passaria a ser sempre o seu ‘último filme’. 'Sen to Chihiro no kamikakushi' (2001), lindíssimo, mas não, para mim, o seu melhor filme (Mononoke e Totoro são muito melhores), tomou o Mundo de assalto e ganhou dezenas de prémios internacionais incluindo o Óscar de Melhor Filme de Animação (o único filme não americano a fazê-lo até hoje). 'Hauru no ugoku shiro' (2004) é demasiado inteligente, artístico e japonês para o público ocidental, mas não deixa de ser uma tour de force de animação. E ainda houve 'Gake no ue no Ponyo' (2008). Que dizer de Ponyo? Honestamente, é o melhor filme de animação, concebido a pensar (quase) exclusivamente no público infantil, alguma vez feito. E agora, depois de tanta beleza, tanta delicadeza, tanta devoção, surge a despedida das despedidas.
Em 2013, a Ghibli celebrou o seu 30º aniversário. Para tal, os seus co-fundadores, Miyazaki e Takahata decidiram fazer um filme cada um, a ser lançados no Japão como uma double feature e no resto do mundo separadamente (já o haviam feito em 1988 com, respectivamente, 'Tonari no Totoro' e 'Hotaru no haka', o emparelhamento de obras primas mais díspar da história do cinema). Miyazaki fez 'Kaze tachinu', em português chamado 'As Asas do Vento' nas poucas exibições que teve (em inglês 'The Wind Rises'). Já Takahata fez 'Kaguyahime no monogatari'. Contudo, a pobre distribuição mundial destes dois filmes é um daqueles gigantescos mistérios que às vezes surge na sétima arte. O filme de Takahata praticamente não foi visto fora do Japão. O de Miyazaki só foi visto em distribuições limitadas; nos Estados Unidos o suficiente para ser elegível ao Óscar (que acabou de perder, previsível mas injustamente, para 'Frozen'), e no resto do Mundo em festivais. Em Portugal, por exemplo, o filme foi exibido no ano passado em Lisboa, num par de dias, num festival de animação. O resto de Portugal, tal como o resto do Mundo, não foi brindado com uma distribuição alargada. A semana passada saiu o Blu-ray / DVD, mas mais uma vez, só saiu em mercados selectos. Em Portugal nem vê-lo (pudera, nem saiu no Cinema). Não se percebe, principalmente porque os filmes de Miyazaki têm tido cada vez mais público mundial, e a promoção da distribuidora Disney (que distribui os filmes da Ghibli fora do Japão, num contrato assinado após Mononoke para, segundo dizem, evitar a concorrência no mercado americano), foi intensa e focalizada no facto de que era mesmo (mesmo!) o último filme de Miyazaki. Felizmente, há uma coisa chamada compras pela internet, e poucos dias depois de ter sido lançado nas lojas inglesas, uma copia do Blu-ray de 'Kaze tachinu' chegou-me esta semana comodamente à caixa do correio.
Ontem foi com algum nervosismo que pus o Blu-ray a dar e me refastelei no sofá. Pouco se revelou do filme e eu também não procurei saber muito. Era semi-autobiográfico, baseado numa manga de 2009 do próprio Miyazaki, e focava-se na sua famosa paixão por aviões, presente na maior parte dos seus filmes (o seu pai foi construtor de aviões). Para além do mais, que iria Miyazaki fazer na sua despedida? Algo de especial certamente. Mas o que quer que esperasse, acho que não estava nada preparado para aquilo que o filme acabou por ser.
O estúdio Ghibli já fez filmes destes, mas sempre pela mão do realizador Isao Takahata, como por exemplo o magnifico 'Omohide poro poro' (1991). Em 'Kaze tachinu', Miyazaki nega aquilo pelo qual ficou geralmente conhecido; as mensagens ambientais, a herança da mitologia japonesa, a beleza da fantasia animada, os leves toques cómicos, o ritmo dinâmico. Em vez disso, Miyazaki faz um filme nostálgico, pungente, introspectivo, sonhador, sem um objectivo aventuresco na história, a não ser retratar uma vida, um homem. Em 'Tonari no Totoro' Miyazaki já tinha provado que conseguia fazer uma obra prima sem uma 'aventura', sem vilões, sem grandes dramas. Em 'Kaze tachinu', Miyazaki faz (quase) uma obra prima sem a maior parte dos mesmos aspectos clássicos. É um filme que trás à memoria o estilo neo-realista, misturado com o tom lírico de Terence Malick, de Ozu ou de Mizogushi, misturado com a força da luta de homens comuns pela sua paixão profissional, como o médico em 'The Citadel' (1938) ou o arquitecto Howard Roarke em 'The Fountainhead' (1948), mas sem usar o sistema como o vilão. Aqui, o vilão é a própria vida, e 'Kaze tachinu' é a história de uma vida, contada com tanta delicadeza, com tanta beleza visual, que é difícil de exprimir em palavras.
A história é simples de sintetizar. Assistimos à vida, ao longo de 20 anos, entre os anos 1920 e praticamente o início da segunda guerra mundial, de Jirô Horikoshi, uma personagem, diz nos o imdb, feita da mistura de Tatsuo Hori, autor de um conto que deu a ideia a Miyazaki (e cuja citação que refere o ascender do vento surge no início do filme) e Jirô Horikoshi, um famoso desenhador de aviões japonês. Atrevo-me a acrescentar à mistura, obviamente, o próprio Miyazaki. Começamos na sua infância, onde sonha fazer e pilotar aviões. Míope desde pequeno, o sonho de piloto de Jirô cedo se desvanece, mas fica o sonho de desenhador. Aqui, Jirô tem a primeira de muitas fantasias, momentos em que o filme abafa o real para mostrar a ilusão; Jirô a voar e a ter conversas com Caproni, um famoso construtor de aviões italiano, o seu ídolo (e talvez o de Migazaki?!). Através destes momentos de indescritível beleza cénica, vamos tendo o vislumbre da personalidade, do sonhos, das esperanças e dos medos de Jirô.
Quando cresce vai para Tokyo estudar e mais tarde entra para a Mitsubishi, onde o seu talento precoce para o desenho de aviões é rapidamente reconhecido. Pelo caminho vamos tendo vários eventos da História do Japão; o terramoto de 1923, onde Jirô salva a sua futura mulher, que só reencontrará anos mais tarde para se apaixonar (o vento ascende para os levar um para o outro; mais um quadro de exímia beleza); a epidemia de tuberculose (da qual a sua mulher vai ser vítima); ou o início das relações com a Alemanha (Jirô inclusive vai lá aprender sobre os seus aviões). E ao longo de todos estes anos, Jirô luta por desenhar o avião perfeito, para saciar o seu sonho.
Mas a beleza de 'Kaze tachinu' é que, tal como em todas as vidas, o trabalho, o amor, os sucessos, os falhanços, são pequenos quadros fugazes que vão passando e que se perdem com o devir da existência, a rotina do dia-a-dia. Nunca assistimos, por exemplo, ao cliché americano do artista criador. Jirô pode ter uma encomenda para desenhar um avião e podemos vê-lo, uma ou outra vez, à secretária, mas nunca o vemos a experimentar vários desenhos, a atirar folhas para o caixote do lixo ou a rabiscar freneticamente como Russell Crowe em 'A Beautiful Mind' (2001). Em vez disso vemo-lo a dar uma longa passa num cigarro, a olhar pela janela e a observar um avião, vemo-lo a comer um bolo de esponja, a partilhá-lo com uns pobres na rua, ou a conversar com o seu melhor amigo. E isso é muito mais lírico, muito mais incisivo no retrato da sua personalidade, de que o ver freneticamente a experimentar, a calcular, a sofrer com o seu próprio génio. E isto torna-o incrivelmente humano. Para complementar, de vez em quando temos injecções de intensidade, em momentos em que, uma vez o protótipo completo, o avião é levado à pista para o voo de teste. Aqui existe a mesma intensidade dramática, o mesmo sentido de antecipação, mas muita mais beleza cénica do que ocorreu, por exemplo, em ‘The Right Stuff’ (1984). E quando o teste falha, Jirô regressa ao trabalho, ao ciclo da sua vida. Mas não há tristezas, há só o nascer de um novo dia, uma nova ida ao escritório, o passar de mais um ano.
E deste modo o filme vai fluindo, tal como a vida vai fluindo. No último terço do filme, esta vida de Jirô, focada no trabalho, é subitamente quebrada quando ele vai passar uns dias a um chalé na montanha e aí reencontra a jovem que salvara no tremor de terra, e que se tornará a sua esposa. Aqui, o filme claramente abranda, e torna-se ainda mais introspectivo. Esta quebra faz sinceramente mal ao ritmo do filme, que nunca foi muito dinâmico, mas passado um bocado apercebi-me que estava tão entranhado na história e na fotografia, que mesmo esta pausa não me fez perder o interesse. Por vezes, o filme é demasiado artificial e estilizado na sua realidade, o que não soa bem à primeira vista, mas por outro lado, de que outra maneira poderia ser? Só nos arrependemos das coisas que perdermos depois de as perdermos. Só sabemos que trabalhamos de mais e não demos tempo às coisas importantes depois de elas passarem. E quando nos apercebemos disto a solução não é entrar num pranto dramático. A solução é continuar a viver, continuar a sonhar, e tentar não voltar a cometer os mesmos erros. Para uma personagem tão introspectiva e de poucas palavras como Jirô, é incrível como a simplicidade perfeitamente bela das composições de Miyazaki consegue transmitir tanto ao espectador. 'Kaze tachinu' não é um filme de emoções abertas e não dá tudo de uma vez. Agora mesmo, a escrever estas palavras, 24 horas depois de ter visto o filme, apercebo-me que não posso deixar de pensar nele, que exige uma segunda, uma terceira, uma quarta visualização para encontrar mais significado, mais pormenores, mais profundidade. Não é o filme mais estruturalmente complexo de Migazaki (ver 'Hauru no ugoku shiro' - O Castelo Andante), mas é, não obstante o seu ritmo morno e aparente simplicidade argumental, o mais emocionalmente complexo.
'Kaze tachinu' é sobre um sonho de uma vida, o sonho que pode ser o do próprio Miyazaki, sobre a vida que podia ter tido se nunca tivesse entrado para a animação e se tivesse dedicado a desenhar aviões. É um sonho de uma vida, das ilusões perdidas e reencontrada, da esperança perdida e reencontrada, do amor perdido e reencontrado. A animação é belíssima, as paletes de cores de tirar o fôlego, a atenção ao pormenor brilhante, e o roçar do vento tão bem animado que parece que extravasa a tela para o espectador (contudo acho que notei pelo menos dois backgrounds computadorizados, o que foi um choque! Espero estar enganado!). Joe Hisaishi compõe uma banda sonora lírica mas discreta, menos impactante, menos propícia a ficar no ouvido, que as suas anteriores colaborações com Miyazaki, mas o filme não pedia esse tipo de sinfonia. A música vai passando como uma corrente mas nunca ascende para além do dialogo e dos sons ambiente; do vento, dos motores do avião, do rasgar das asas pelo ar - esses sim a verdadeira banda sonora do filme. E se a história é mais vaga, centrada exclusivamente em Jirô (as outras personagens são algo pobres em comparação), “perdido” no contexto de um Japão do pré-guerra – um pais também “à deriva” – é precisamente esse enfoque em Jirô, esse abrir de emoções para o espectador de uma forma subtil e discreta, mas não menos poderosa, que torna o filme especial e memorável.
Se me perguntam se este é o melhor filme de Miyazaki, acho que, pelo menos hoje, não poderei dizer que sim. Parece-me, após o ter visto pela primeira vez, que é um daqueles filmes que vai melhorando com visualizações múltiplas e que vai revelando novas camadas à medida que o vamos vendo ao longo da vida. É um filme que cresce e evolui à medida que crescemos e evoluimos. Mas não tem a pureza contagiante de 'Tonari no Totoro', a magia de 'Sen to Chihiro no kamikakushi', a exuberante alegria de 'Gake no ue no Ponyo', ou o dinamismo de 'Mononoke-hime'. Não tem uma moral ou um propósito inequívoco, o argumento não tem um daqueles objectivos clássicos (salvar a floresta, regressar a casa) e não nos agarra em pleno do início ao fim, porque há partes demasiado reflexivas, demasiado introspectivas. Mas nada disto é realmente uma desvantagem num filme que procura (e consegue) ser um grande sonho poético, a retrospecção das emoções de uma vida, um grande abrir de coração por parte de Miyazaki.
Por isso mesmo se me perguntarem se esta é a despedia mais perfeita que Miyazaki poderia ter do cinema então a resposta é um enorme e enfático SIM. Lírico, nostálgico, intimo, 'Kaze tachinu' mostra um lado de Miyazaki que sempre existiu, mas que nunca apareceu desabrochado em pleno nas suas películas. Tal como o dia-a-dia dos idosos nos cativa em ‘Tokyo Story’, tal como as espirais de Malick nos prendem e demonstram a beleza escondida no rotineiro dia-a-dia, no amor e na vida, assim também a vida de Jirô atinge essa perfeição cinematográfica. Apesar de tudo o que lhe acontece, o seu sorriso tímido quando o seu avião finalmente levanta voo é o mais poderoso legado emocional do filme. Não é uma altura para grandes celebrações, é uma altura de satisfação pessoal, mas que empalidece perante o facto de que a vida continua, e que apesar de tudo há ainda muito para fazer, para conquistar, para viver. Não por acaso, um pouco como aquilo que o próprio Miyazaki deve sentir no final de cada obra que produz.
Quando se usa o termo sensei relativamente a um realizador japonês, qualquer cinéfilo sabe que estamos a referir-nos a Kurosawa. Mas pela sua carreira, e por mais um fabuloso contributo, Miyazaki merece, sem dúvida alguma, esse título (embora seja demasiado humilde para o aceitar). O próprio Kurosawa acabou a sua carreira em 1993 com ‘Madadayo – Ainda não!”, um filme com o mesmo tipo de introspecção sobre a vida. Mas Kurosawa, e outros antes dele, como Ozu, seguiam idosos, que reflectiam sobre a sua existência passada e o seu lugar no mundo actual. Miyazaki faz o inaudito. O seu maior legado cinematográfico à vida segue não a vida de um idoso, mas a vida de um jovem. Jirô representa o sonho de uma vida, o sonho de uma vida eterna, eternamente jovem. Um dia a sua chama irá passar, e ele próprio envelhecerá. Mas apesar dessas sombras pairarem sobre o filme, 'Kaze tachinu' não se torna pesado. Introspectivo. Bastante. Nostalgico. Imenso. Mas não é pesado. Miyazaki regressa às suas origens emocionais e nós regressamos com ele, de uma forma sublime, e com um sorriso no rosto.
'Kaze tachinu' é um hino aos desejos de criação, aos sonhos da arte. É um hino à vida, mas à vida verdadeira, a vida que não é sempre uma alegria, a vida que tem altos e baixo, mas que acaba sempre por fluir, como o passar do vento. O vento ascende, sentimo-lo debaixo dos braços e a rodear-nos o corpo. E se nos deixarmos levar, pode ser que encontremos a felicidade. Obrigado Miyazaki. Obrigado sensei por uma maravilhosa carreira. Sentiremos a sua falta, teremos saudades da beleza dos seus filmes. Espero que haja alguém, no Japão ou em qualquer outro lado do Mundo, que possa continuar o seu legado.
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