Realizador: Joel Coen (e Ethan Coen, não creditado)
Actores principais: Tim Robbins, Paul Newman, Jennifer Jason Leigh
Duração: 111 min
Crítica: ‘The Hudsucker Proxy’ (em português ‘O Grande Salto’), a obra de 1994 dos irmãos Coen, é um dos filmes da minha infância (tinha 10 anos quando surgiu). Pouco tempo depois alguém me terá oferecido o VHS (que ainda hoje possuo bem conservadinho) portanto foram inúmeras as vezes que, nesses anos de pre-adolescência e adolescência, vi e revi este filme. Se inicialmente o apreciava apenas pela seus aspectos de ligeireza cómica, lentamente, e à medida que comecei a ganhar conhecimentos cinematográficos, comecei a descortinar mais elementos de interesse.
Hoje considero-o como o ponto de viragem na carreira dos irmãos Coen. Antes de ‘The Hudsucker Proxy’, os filmes dos irmãos detinham uma qualidade mais pura. As suas homenagens a géneros específicos cinematográficos eram pinceladas com o seu estilo peculiar e elevadas doses de um surrealismo que mesmo americanizado se tornava apelativo a um público ‘art-house’ e europeu. Quando o nome dos irmãos era praticamente desconhecido para a maior parte do público americano, estavam em Cannes a ganhar a Palma D’Ouro, o prémio de Melhor Actor e o de Melhor Realizador (o único filme da história a ganhar os três prémios) com o seu filme anterior, ‘Barton Fink’ (1991). Depois de ‘The Hudsucker Proxy’ surgiu ‘Fargo (1995), que lhes deu o acesso ao ‘mainstream’, à fama e a um público mais alargado. Desde então ‘venderam-se’ a um estilo Hollywoodesco mais estandardizado, que só praticamente foi quebrado nos seus últimos 2 ou 3 filmes (depois do Óscar de Melhor Filme por ‘No Country For Old Man’). Se ultimamente andam a tentar reverter às origens, a verdade é que para mim a essência, a liberdade estética e a irreverência que tinham no final da década de 1980, inícios da de 1990, está, com algumas excepções, irremediavelmente perdida.
E na charneira entre estas duas fases da sua carreira está ‘The Hudsucker Proxy’, com um título nada bem conseguido (duas palavras pouco apelativas) e que, apesar de ter aberto o festival de Cannes de 1994, foi um completo fiasco comercial. Como ‘Fargo’ no ano seguinte foi um sucesso brutal, ‘The Hudsucker Proxy’ foi logo abafado, para quase não voltar a ser relembrado. Inclusive nos extras do DVD de ‘Fargo’ os irmãos mencionam numa entrevista da altura que antes fizeram ‘Barton Fink’, de grande sucesso crítico, e “outro filme” cujo nome nunca é mencionado. Se não fosse os meus avós ou os meus pais terem-me oferecido o VHS (que provavelmente compraram sem saber o que estavam a comprar) eu próprio provavelmente nunca teria tido grande noção deste filme, excepto como uma estatística na carreira dos irmãos Coen.
Contudo, apesar de tudo isto, para mim ‘The Hudsucker Proxy’ é o filme mais sentido, mais comovente e mais humano da carreira dos irmãos Coen, e aquele em que mais directamente e com mais amor homenageia o cinema. Honra principalmente as comédias romântico-dramáticas da década de 1940, especialmente as do grande Frank Capra, com algumas pitadas das comédias jornalísticas ao estilo de ‘His Girl Friday’ (1940).
O actor principal do filme é Tim Robbins, que no mesmo ano faria o que ainda hoje é o filme mais bem conseguido da sua carreira (a obra-prima ‘The Shawshank Redemption’), e que iria realizar em seguida ‘Dead Man Walking’ (1995), que deu à sua esposa (Susan Surandon) o Óscar de Melhor Actriz. Também para Robbins, ‘The Hudsucker Proxy’ está esquecido entre dois grandes filmes.
Robbins está brilhante a interpretar um pacóvio de uma cidade pequena que, após se licenciar numa escola de gestão empresarial, e de ser, literalmente ‘o maior da sua aldeia’, chega a Nova Iorque à espera de encontrar rapidamente uma posição de executivo numa grande companhia e em três tempos ter sucesso e dinheiro. Depressa a realidade do mundo laboral o atinge e sem dinheiro nem experiência, o melhor que consegue é arranjar um emprego na sala de correio na cave de uma das maiores empresas da cidade, a Hudsucker Industries. Robbins interpreta uma alma simples, pura e honesta, iludida pelos sonhos de grandeza da grande cidade. Mesmo assim, como o estranho coro da peça, o narrador interpretado por Bill Cobbs, salienta, Robbins tem umas ideias na manga que ninguém está à espera (you know, for kids!).
No mesmo dia em que Robbins entra pela porta de baixo, Hudsucker, o director da empresa (uma participação especial e sempre magnífica do grande comediante Charles Durning) sai pela janela de cima. Suicida-se saltando pela janela da sala de reuniões. Todos os administradores entram em pânico, mas eis que entra em cena Paul Newman. São raros ou inexistentes os papeis inteiramente cómicos de Newman, mas sempre houve uma veia cómica na sua natureza. É só ver o que fez em ‘The Sting’ (1972). Aqui está brutal, o charuto constantemente na boca, a voz rouca e sempre, quase até ao final, no domínio da situação. É um vilão tão charmoso como incisivo e claro, é sempre cómico sem nunca o assumir abertamente. A par de Albert Finney, que participara em ‘Miller’s Crossing’ a obra prima de gangsters que os Coen fizeram em 1990, Newman é um dos primeiros actores de peso a entrar num filme dos irmãos, o que demonstra o respeito que começavam a ter na indústria e que os próprios tinham das velhas lendas de Hollywood.
Com medo de perder a companhia com a morte do director, Newman formula um plano diabólico que tem o consentimento do resto dos membros da direcção. Em vez de um deles ser eleito director, o plano é colocar um fantoche ao leme da empresa, para a desacreditar. Dessa forma o valor das acções baixaria e os membros da direcção poderiam comprar rapidamente e de uma forma barata as acções necessária para deterem a maioria do valor em bolsa da empresa. Assim sendo, Newman rapidamente descobre que um dos seus assalariados é um tolo desengonçado e desastrado, Robbins, que, num espaço de segundos é aclamado como o novo director da empresa. Este claro, acha que é pelos seus dotes e nunca se apercebe que está a ser usado.
Numa clara homenagem às personagens de Jean Arhur em ‘Mr. Deeds Comes to Town’ (1936) e de Rosalind Russell Em ‘His Girl Friday’, eis que entra em cena a personagem de Jennifer Jason Leigh, uma jornalista de fala rápida que se infiltra na empresa como secretária para conseguir obter o furo jornalístico e desmascarar a trama. Ela, eventualmente, vai acabar por se apaixonar por Robbins, e ser a catalisadora para que o próprio Robbins descubra que está a fazer o papel de tanso. Mas antes disso, a personagem de Robbins tem o seu momento para brilhar. Newman deixa-o perseguir todas as suas ideias: quanto mais a empresa se afunde, melhor será para ele. Mas após muitos fiascos, uma das ideias de Robbins, o ‘hulla hup’, resulta e torna-se um sucesso de vendas, catapultando a empresa para o topo, o que não era suposto. Mas Newman adapta-se à situação. Se não desacredita a empresa de uma maneira, fá-lo-á de outra. O seu plano seguinte é tornar Robbins o bode expiatório de um esquema de corrupção. Robbins acaba por ser a vítima da sua inocência, mas também do sucesso lhe ter subido à cabeça e não ter dado ouvidos aos amigos (principalmente a Leigh). No final do segundo acto do filme perde tudo. Tal como a personagem principal de outro filme de Frank Capra, ‘Meet John Doe’ (1941), Robbins, sozinho e desesperado, decide expurgar os seus pecados saltando, ao bater da meia noite na véspera do Ano Novo, do topo da empresa, tal como Hudsucker havia feito. E fá-lo mesmo.
Mas então o filme volta a ficar mágico e vai referenciar quase o único grande filme de Capra que faltava referenciar: ‘It’s a Wonderful Life’ (1946). O anjo de Hudsucker aparece (Charles Durning regressa para brilhar uma segunda vez no filme) e tudo eventualmente acabará bem.
'The Hudsucker Proxy’ é um filme que se passa a um ritmo rápido e que possui os trejeitos tão característicos das comédias dos irmãos Coen. As piadas são engraçadas e metralhadas, ou seja nunca há a pausa para que a piada assente, e sempre com uma ponta de surrealismo. As clássicas personagens secundárias com as suas idiossincrasias peculiares aparecem para dar profundidade ao filme (colaboradores usuais dos Coen, de Jon Polito a Steve Buscemi fazem breves aparições). Os movimentos de câmara e o estilo de edição seguem a mesma linha que caracteriza os restantes filmes destes realizadores. Tudo somado ‘The Hudsucker Proxy’ retrata extremamente bem quer a década pós grande depressão, quer os filmes dessa década. Mas é um filme ligeiro, uma comédia ligeira, embora também consiga ser cativante e enternecedora. Poderia bem ter sido um produto de Capra, se fosse filmado a preto e branco 40 anos antes. Infelizmente, o público esqueceu-se que a magia dos filmes pode estar em coisas assim tão simples, em homenagens tão honestas. Mais infelizmente, os próprios irmãos Coen esqueceram-se que também têm o talento para fazer filmes assim, que não precisam de apaparicar com detalhes ostensivamente artísticos ou com personagens ostensivamente peculiares que insinuam em cada frase, em cada movimento “hey, estou numa comédia dos irmãos Coen!”.
‘The Hudsucker Proxy’ não é nem de perto nem de longe um dos melhores filmes dos irmãos Coen, nem é uma obra-prima, mas é apelativo, engraçado, transmite uma mensagem e tem a pureza que associamos quer aos filmes dos anos 1940, quer à tenra idade dos irmãos como artistas cinematográficos (a frase chave da personagem de Robbins "you know, for kids!" assenta também ao filme como uma luva). Os irmãos Coen a fazer um filme de natal? Sim, é possível. Um fiasco comercial? Que importa? ‘The Hudsucker Proxy’ merece uma oportunidade e não precisa de um anjo para o salvar. Vale por si próprio.
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