Realizador: Jean Vigo
Actores principais: Dita Parlo, Jean Dasté, Michel Simon
Duração: 89 min
Crítica: ‘Jean Vigo est mort a 29 ans’. Inicia assim, desta forma simples, a grande crítica de Truffaut à carreira de Jean Vigo. Existe um punhado de actores que morreram em idades igualmente tenras e que são celebrados pela sua genialidade não tanto, na minha opinião, pela obra que realmente produziram em vida, mas mais pela promessa da obra que estaria para vir. James Dean é um exemplo óbvio. A sua performance primeiro contida, depois intempestiva em ‘The Giant’ (1955), por exemplo, poderia não ser completamente perfeita, mas deixava antever uma gloriosa carreira artística. No campo dos realizadores os nomes, felizmente, são mais parcos, mas no topo da lista está Jean Vigo, o francês que nasceu em 1905 e morreu de tuberculose em 1934, ano em que produziu (já praticamente acamado, segundo dizem) a sua grande obra ‘L’Atalante’, que é, para todos os efeitos, o seu único filme.
Vigo produziu 4 obras. Primeiro realizou um documentário sobre a sua cidade natal de Nice, mudo e de cerca de meia hora: ‘A Própos de Nice’ (1930). O que começa quase como um guia turístico desemboca num lírico retrato da sociedade, que mostra, a um ritmo muito bem conseguido (auxiliado por música sincronizada) a cidade, as suas gentes e as suas tradições. Contudo, não creio que esta curta tenha tantos ‘ataques’ à sociedade, ou planos irónicos e críticos, como geralmente se apregoa. Depois, Vigo realizou um pequeno documentário de menos de 10 minutos sobre o nadador olímpico francês Taris: ‘Taris, roi de l’eau’ (1931). Tirando o experimentar com técnicas de montagem e planos de câmara, não há grande tempo para haver algo mais a assinalar. Em 1933 Vigo realizou ‘Zéro de Conduit’, uma curta fílmica de 40 minutos. E aqui o seu génio começou a vir ao de cima. Na minha opinião nunca algo tão abertamente ‘amador’ foi tão surrealmente e formalmente perfeito. Simples, brincalhão e incisivo, esta obra surreal é contudo incrivelmente poética e feita com o coração. O surrealismo desta obra até consegue rivalizar, em certa medida, com as obras contemporâneas de Bunuel, e o seu contexto em colégio interno francês inspiraria obras como ‘L'argent de poche’ (1976) de Truffaut ou ‘Au revoir les Enfants’ (1987) de Malle. Finalmente surgiu ‘L’Atalante’ em 1934.
Um dia há uns 4 ou 5 anos descobri na FNAC uma caixa de DVDs a um preço completamente irrisório que continha as 4 obras realizadas por Vigo mais um disco de extras (um daqueles DVDs que a FNAC não faz a mínima ideia o que são e que baixa o preço para os vender e nunca mais volta a ter em stock). Esta semana, voltei a rever esta caixa e voltei a entrar dentro do mundo desta jovem promessa que infelizmente morreu demasiado cedo para refinar a sua mestria em filmes mais grandiosos e ambiciosos. Mas o que resta são obras inocentes, que, como diz Truffaut, misturam realismo e esteticismo, mas evitando os trejeitos geralmente associados a estes dois estilos. Talvez pela paixão de Truffaut por este cineasta (que considerava ‘Zero de Conduit’ um dos seus filmes preferidos por o associar às suas memórias de infância, e ‘L’Atalante’ um dos 10 melhores já feitos), talvez pela aura que sempre envolve quem morre jovem, Vigo começou a ganhar uma enorme reputação e tornou-se um marco da inocência artística que o cinema pode conter, e que está acessível a todos, mesmo que amadores, mesmo que fora do sistema de estúdio. O crítico e cineastra Lindsay Anderson escreve ‘Few artists in the history of cinema have won reputation so high by achievement so modest. If, that is, works of genius can be described as modest’. Acho que esta frase encapsula bem o cinema de Vigo. Na realidade ele não produziu nada por aí além. O seu trabalho é parco e completamente modesto. Mesmo assim tem um je ne sais quoi, um domínio de técnicas cinematográficas e surrealistas (que experimenta em ‘Zero de Conduit’ e completamente controla em ‘L’Atalante’). E, como Vigo não tem mais nenhum filme, tornou-se popular introduzir ‘L’Atalante’ nas listas dos melhores de sempre, somente, na minha opinião, para se poder honrar este cineasta, que bem o merece pela obra e pela promessa é certo, mas não, propriamente, por ‘L’Atalante’ em si.
Roger Ebert inclui ‘L’Atalante’ no seu livro ‘The Great Movies’. Alguém no site/revista Village Voice diz que este poderá bem ser o melhor filme alguma vez feito (como é apregoado na capa de algumas versões de DVD). Não me parece. ‘L’Atalante’ não consegue ir para além dessa ingenuidade e inocência que o torna numa obra lírica e cativante, mas não uma obra cinematograficamente perfeita. Como disse, a continua inclusão de ‘L’Atalante’ na lista de grandes filmes prende-se mais com o facto de se querer incluir o nome de Vigo, e este ser o único filme que existe. Eu incluiria mais facilmente ‘Zero De Conduit’, na minha opinião muito mais fascinante, mas os seus 40 minutos fazem com que caia fora do critério de ‘uma longa metragem’. Do mesmo modo, quando se inclui Buster Keaton, por exemplo, é ‘moda’ colocar ‘The General’ (1926), mas eu prefiro bem mais ‘Sherlock Jr.’ (1924), que não é tido em conta por só ter 45 min.
‘L’Atalante’ acaba por ser um micro-cosmos da vida de casado e do amor. Na sua simplicidade e sem uma grande linha argumental consegue condensar o a inocência de ser recém-casado e sintetizar as principais fases do crescimento do amor e do aprender a viver juntos. O filme abre numa pequena terriola francesa. Um casal sai da igreja, recém-casado. À medida que andam lado a lado pelas ruas da cidade, uma procissão das gentes da terra escrutina-os a pouca distância, as más línguas badalando interminavelmente. Ela é Juliette, interpretada por Dita Parlo (cujo papel mais icónico foi a da camponesa que acolhe Jean Gabin em ‘La Grande Illusion’, 1937). Ele é Jean (interpretado por Jean Dasté). A ambos é dado pouco background de personagem. São personalidade que se vão revelando ao longo do filme, a dela mais complexa, a dele mais unidimensional e estereotipada. Parlo, na verdade, é que acaba por ser a grande essência do filme.
Ambos continuam o seu percurso para o mar nesta sequência inicial que já revela o surrealismo inerente do filme pelas pequenas peculiaridades que a câmara vai captando. Jean é capitão de uma pequena traineira, a ‘L’Atalante’, que faz biscates pelo Sena. Juliette irá viver com ele a bordo do navio, que conta com uma tripulação de mais dois homens: o Pére Jules, o velho e bêbado imediato, com o corpo cheio de tatuagens e que já viajou pelos sete mares noutros tempos nostálgicos (fantástica interpretação de Michel Simon, o único que consegue roubar cenas a Parlo, o que não é suposto mas dá mais interesse ao filme) e um rapaz de cabine, pouco relevante. Engraçado como nos primeiros 10 minutos os noivos não abrem a boca. Primeiro é a população que nos descreve quem eles são e o que fazem. Depois Pére Jules toma conta da situação quando os noivos chegam ao navio. Eles são apenas um casal apaixonado que não pensa no amanhã e só quer estar junto. Os pormenores dos namorados estão todos lá, as pequenas carícias, os risos, as piadas privadas. Namoram ao som de uma música bela, quer ambiente quando o miúdo toca o acordeão, quer da banda sonora discreta mas melódica do filme. Só mais tarde é que finalmente despem as suas indumentárias de igreja e começam a viver o dia-a-dia do navio, não sem que antes Vigo filme a cena mais fabulosa do filme. Ao cair da noite, Juliette passeia pelo convés, ainda com o seu vestido de noiva. Ela está de branco, tudo o resto está escuro. É uma figura espectral enquadrada num plano belíssimo. São estes pormenores que mostram o toque delicado de Vigo, e carregam ‘L’Atalante’ de simbolismo e lirismo.
Rumo a Paris, o filme vai-se repartindo em pequenos sketches sobre a vida a bordo, as personagens peculiares que vão encontrando pelo caminho, e a rotina que se muda pela introdução de uma mulher no sistema do navio. Ela quer lavar a roupa e que tudo esteja arrumado, por exemplo. São cenas simples mas poéticas. Por exemplo quando Pére Jules limpa um velho disco, o miúdo, sem Jules saber, toca o acordeão, e fica a ilusão de que o dedo de Jules é a agulha do gira discos… E entretanto, o filme continua a condensar um casamento inteiro numa viagem. Juliette e Jean estão sempre a brincar, sempre a namorar, sempre a ter conversas apaixonadas mas sem nunca o explicitar directamente. São inocentes, são alegres. Mas por detrás da superficialidade, dos olhares, do que não é explícito, o filme mostra o verdadeiro afecto, a preocupação. Mas cedo chegam as discussões por nada, as dúvidas, as promessas e os ciúmes, principalmente por parte de Jean.
Quando chegam a Paris, Juliette deseja sair do barco e ir divertir-se na noite parisiense. Ela é a mais livre e despreocupada dos dois, a mais criança, a que mais deseja experimentar coisas novas, e a que mais se entedia no navio. Mas embora Jean prometa que irão sair nessa noite, quando Pére Jules se esquiva para ir embebedar-se, o sentido de dever de Jean vem ao de cima, e não quer deixar o barco sozinho, portanto não saem. Só mais tarde, quando Jules regressa é que finalmente vão para a noite, e aí Jean, já amuado, ainda mais se enche de ciúmes quando Juliette dança com outros homens. Aí têm a sua primeira grande discussão conjugal. Jules regressa ao barco, e decide partir sem Juliette. Juliette fica sozinha em Paris, ainda por cima sem dinheiro, já que lhe roubam a carteira…
Do drama que pouco dura, mas que chega a ser intenso, ambos irão perceber o quanto precisam um do outro, e não é preciso um especialista para perceber que mais cedo ou mais tarde o filme vai acabar bem. A riqueza de ‘L’Atalante’ contudo, está noutras coisas que não esta história base. Está na inocência das pequenas coisas que raramente têm destaque num filme, onde habitualmente cada cena é planeada para supostamente criar um efeito no espectador. Vigo mostra que uma cena de um homem exibir as suas tatuagens, de uma mulher a passear no convés, de um casal mergulhar a cabeça na água pode ser tão profunda, tão emocionante, tão poética, como qualquer cena elaborada. E depois atinge toda a gente que já amou, que já teve uma relação, que se identifica com a discussão mais trivial, com a carícia mais inocente mas que gera um calafrio quente, com o desejo, com a sensação de perda.
Ousadas são também as subcorrentes sexuais que o filme introduz, livre do código de produção americano que entrava em vigor na altura e da censura do cinema do pós guerra. Os amantes vão claramente para a cama sem que a cena seja mostrada. Mais tarde, quando estão chateados e separados, cada um dorme essa noite claramente a pensar no outro. Juliette inclusive chega a passar muito subtilmente a mão pelo seio quando está a adormecer. Noutra cena, Pére Jules parece estar a milímetros de violar Juliette, quando ambos estão sozinhos na cabine e uma estranha tensão se cria, até que ela o distrai com as histórias do seu passado e o ambiente se quebra logo para um muito mais jovial. Esta é a grande montanha russa emocional de ‘L’Atalante’. Até ao final (e inclusive neste) cada ponto mais dramático tem imediatamente um contraponto mais ligeiro ou mais lírico.
E no final, os amantes encontram-se um ao outro primeiro no reflexo da água (a fantasia) e depois realmente. E sabemos que acabamos de assistir a uma história de amor especial, que ainda não acabou, que tem um futuro todo para desenrolar, mas que nos mostra aqui que o casal ultrapassou o seu primeiro grande problema e finalmente superou os entraves, abandonou a bagagem que cada um levava para o casamento e que os impedia de ser completamente felizes um com o outro.
Por todas estas coisas, ‘L’Atalante’ é um filme poético, belo e lírico. É um filme ao mesmo tempo ousado, com toques cinematográficos de génio, mas também estruturalmente muito simples. A inocência está em todos os vértices do triângulo: no casal apaixonado, no realizador e na história. Mas do mesmo modo, o amor existe também nos três lados, bem como a dedicação, o afecto, a vontade de criar e anunciar essa criação, senão ao mundo, pelo menos ao ser amado.
‘L’Atalante’ fascina o espectador como se fosse uma criança. Vigo era uma criança no cinema e ‘L’Atalante’ reflecte isso. Há o sorriso, a inocência das questões que coloca, as birras, as distracções pelas coisas brilhantes e espalhafatosas, o imaginário poético cujo significado nunca é completamente apreendido. Vigo não deveria ter morrido tão jovem. Mas se continuasse a fazer filmes cresceria, tal como as crianças crescem, e esta inocência, esta aura ter-se-ia perdido. Assim sendo, para primeira e única longa-metragem, a promessa que ‘L’Atalante’ proporciona é tão grande que não deixa ninguém indiferente. Mas, feitas as contas, não passa disso, uma promessa. Contudo esta conflitualidade acaba por tornar o filme, sabendo-se o fim trágico do seu realizador, uma promessa ainda mais poderosa. E visto que a obra completa de Vigo demora menos de 3 horas a ser vista na totalidade, nenhum cinéfilo que se preze a pode deixar escapar, para poder satisfazer ele próprio essa promessa no seu imaginário cinematográfico.
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