Realizador: Don Taylor
Actores principais: Burt Lancaster, Michael York, Nigel Davenport
Duração: 99 min
Crítica: Foi através dos filmes que cheguei a H.G. Wells. Quando tinha uns 12 ou 13 anos vi pela primeira vez a versão clássica de 1960 de ‘The Time Machine’, realizada por George Pal e com Rod Taylor no papel principal. Para um pré-adolescente, isso foi o descobrir de um mundo de fantasia, que me fez procurar os livros de Wells. E foi ao ler a sua obra quase de uma ponta à outra ao longo de mais de uma década que me apercebi que a aventura e a ficção-científica dos livros de Wells eram só uma desculpa para a sátira social. Esta profundidade, este paralelismo metafórico, está infelizmente quase sempre pouco presente nos filmes baseados nas suas obras, que se prendem geralmente aos factores superficiais e visualmente apelativos dos mundos que criou.
A velha máxima “se se adapta livremente um livro geralmente obtém-se um filme pior do que se se tivesse sido fiel a ele” parece encaixar muito bem nas adaptações dos livros de Wells. Na realidade, esta máxima não é lá muito correcta. Adaptações linha a linha de livros resultam em filmes pouco, digamos, ‘cinematográficos’ (exemplos desde ‘Dune’ a ‘Mistérios de Lisboa’ comprovam isso) enquanto que adaptações completamente livres são geralmente um descalabro. O meio-termo, conseguido por exemplo por Peter Jackson em ‘Lord of the Rings’ ou por Hitchcock em vários filmes, é que produz melhores resultados. Manter a alma do livro, mas alterar a sua forma para produzir, verdadeiramente, Cinema. Isto foi conseguido nas primeiras adaptações das obras de Wells, nos anos 1930, quando o próprio era vivo. Por exemplo, foi o próprio Wells que escreveu o argumento para ‘Things to Come’ de 1936, adaptando o seu livro ‘Shape of Things to Come’. Mas já desde os tempos de ‘Invisible Man’ (1932), um dos filmes de monstros da Universal, as adaptações foram inevitavelmente piorando (o quer não implica necessariamente que os filmes fiquem piores, apenas diferentes do livro), algo que ficou mais acentuado com a morte do escritor em 1946. Se algumas adaptações surpreendem (David Lean filmou ‘Passionate Friends’ em 1949), com o explodir da ficção científica na década de 1950, Wells tornou-se presa fácil para alimentar conceitos, e não concretamente ‘histórias’. As semelhanças do livro ‘War of the Worlds’ com a adaptação clássica de 1953 são apenas que uns extra-terrestres atacam a Terra e pouco mais. O mesmo se passa com ‘Time Machine’ de 1960, descobri eu anos depois da primeira visualização que falei em cima. Há uma máquina do tempo e um viajante vai até ao futuro, e as semelhanças terminam aí.
Em 1977, na linha de uma nova vaga de ficção científica pós-apocalíptica na senda de ‘Planet of the Apes’, e do cinema de alienação que o estado social dessa década trouxe, a MGM decidiu fazer uma adaptação de ‘The Island of Dr. Moreau’, com Don Taylor como realizador (que havia precisamente realizado uma das sequelas de Planeta dos Macacos). Este livro, o segundo de Wells, foi publicado em 1896, e introduziu ao mundo um conceito que até então virtualmente não existia: o das experiências genéticas (tal como havia introduzido o conceito ‘novo’ de viagens no tempo em ‘The Time Machine’ de 1895 e iria introduzir o conceito de ‘universos paralelos’, ‘homem invisível’ e ‘ataque de extra-terrestres’ em livros subsequentes que hoje fazem parte do nosso imaginário mas que até Wells não existiam). Mas ‘The Island of Dr. Moreau’ tem um significado para além da ficção científica das experiências genéticas. Na realidade, é uma metáfora social que tenta provar que nenhum povo, ou nenhum ser, consegue ir contra a sua verdadeira natureza. ‘The Island of Dr. Moreau’ já tinha sido filmado antes, como ‘Island of Lost Souls’ em 1932, com Bela Lugosi e Charles Laughton no papel de Moreau (que infelizmente nunca vi), e seria filmado em 1996 numa adaptação péssima (vi e comprovo) com Val Kilmer e Marlon Brando como Moreau, em que todo o livro foi corrompido e transformado num blockbuster de acção do pior nível que pode haver. O filme de 1977, por seu lado, tem duas fases distintas, claramente divididas em ‘a parte que é fiel ao livro’ e ‘a parte que não é’.
Este filme tem, como disse, uma aura de alienação e de paranóia (tal como muitos filmes da década de 1970) como o seu início claramente demonstra. Em circunstâncias normais o filme faria uma grande questão de iniciar com um épico naufrágio (já que o livro está mesmo a pedi-las), mas este filme abre, em vez disso, com um pequeno bote salva vidas a oscilar perdido no meio do oceano, contendo apenas um ocupante, o actor Michael York. Agora um aparte: porque é que York não consegue, em qualquer filme que faz, deixar de ter aquele ar ligeiro e presenteiro, mesmo quando está em dramas e a tentar ser sério? Avançando…
York acaba por chegar a uma ilha. Tirando os nativos, há três personagens nesta ilha. O líder é Moreau, protagonizado por Burt Lancaster numa performance poderosíssima e assustadora como um médico exilado que está a fazer experiências secretas com os animais da ilha para lhes dar características humanas. O seu capataz é Montgomery (o actor Nigel Davenport) que é o homem-músculo e que segue fielmente as ordens de Moreau. E depois há também uma rapariga, interpretada pela exótica e felina Barbara Carrera (que 6 anos depois seria Bond Girl em ‘Never Say Never Again’ e entraria na série ‘Dallas’). Esta é a única personagem que o filme ‘inventa’, ou seja, que não existe no livro. Mas o seu objectivo é claro: não serve para nada. A não ser, obviamente, dar um interesse amoroso à personagem de York, mostrar as pernas constantemente e despir-se para uma cena de amor com York completamente desprovida de contexto. Tudo o que envolve esta personagem antes ou depois desta cena é totalmente irrelevante. Há uma dúvida que permanece até ao final do filme; se ela é humana ou uma experiência de Moreau (tal como a personagem de Rachel em ‘Blade Runner’), mas é uma dúvida com pouco ou nenhum interesse. É uma pena, porque Carrera é belíssima (e até se desenrasca como actriz de vez em quando) mas o filme não tem uso para ela. É daquelas decisões produtivas para vender o filme com a promessa de nudez no trailer. E nada mais.
Basicamente, York, enquanto recupera do naufrágio, hóspede na casa de Moreau, descobre que este está a fazer as tais experiências com os animais. Moreau tenta torná-los humanos através de mutações genéticas, ensinando-lhes posteriormente a falar, a andar em duas patas e dando-lhes funções na lida da casa. Eventualmente, experiência após experiência falha, e os animais regridem de volta para o seu estado primordial. Aí, repugnam aquilo que lhes foi ensinado e tornam-se violentos e uma ameaça, que Montgomery tenta controlar. Até aqui tudo bem, o filme acaba por ser mais ou menos fiel ao livro e apesar do seu passo lento consegue transmitir alguma tensão ao espectador. As cenas de luta (entre animais e entre os humanos e animais) são fantásticas e incrivelmente realistas, pois não têm, obviamente, nenhum efeito por computador. O público sente o coração nas mãos pois apercebe-se que os duplos estão realmente a lutar contra os verdadeiros, como dizem no ‘Feiticeiro de Oz’, leões e tigres e ursos (oh my)!
Mas à medida que os animais ficam fora de controlo e York tenta por ele próprio pôr um fim às experiências de Moreau, o filme decide de repente que o livro não era suficientemente bom, e por isso põe-se a inventar uma história nova à medida que vai avançando. Primeiro Montgomery é morto (no livro Moreau é o primeiro a morrer). Depois acontece a coisa mais escaganifobética do filme. Moreau captura York e decide experimentar nele o processo inverso, ou seja, tenta transformá-lo num animal! Isto ao menos permite exibir um pouco dos excelentes efeitos de maquilhagem que o filme possui. Mas os animais, devolvidos ao seu estado primordial, continuam a lutar pela sua independência e tudo isto conflui em sequências climáticas de ‘batalha’ e de fuga da ilha que constituem os últimos segmentos do filme.
Sinceramente, este filme não é mau de todo. A localização principal do filme, a ilha, é filmada de uma forma densa e apropriada para um filme de tensão/terror, a paranóia de Moreau e o seu arco emocional são perfeitamente construídos e justificados, a performance de Lancaster é brutal (como sempre) e a maior parte dos eventos são interessantes de ver. Mas por favor, há coisas no filme que são quase inexplicavelmente más. York provavelmente não é a melhor escolha para o papel principal, a personagem de Carrera é inútil, e o filme perde-se no meio dos novos twists que os argumentistas tiveram a lata de inventar, e que provavelmente fizeram Wells rebolar na campa. Estas novas sequências de eventos tornam qualquer moral que o filme pretendia alcançar inexistente, e substituem-na por sequências de acção (interessantes sim mas que fazem a história perder força) e algumas atitudes de personagens muito difíceis de justificar, para não lhes chamar ridículas. O extremo para mim é quando um Moreau já morto é preso por uma corda para que o possam mexer e tentar fazer crer que ainda está vivo. Isto é uma táctica digna da comédia ‘Weekend at Barnie’s’ (em português ‘Fim de Semana com o Morto’) e não de um suposto filme de acção/ficção científica dos anos 1970.
O final ‘tudo está bem quando acaba bem’ faz esquecer que o filme abriu com tons muito sombrios e até existencialistas nas suas sequências iniciais. Infelizmente para o filme, esses tons, tal como a linha condutora do livro de Wells, não foram mantidos. Este é um filme que constitui bom entretenimento por ser uma fantasia de ficção científica com grandes gurus da maquilhagem na equipa técnica e uma boa equipa de segunda unidade para filmar as cenas com os animais, uma actriz belíssima a pavonear-se de um lado para o outro e um actor fabuloso como Moreau. Esta é, no final de contas, a melhor adaptação que eu conheço deste livro. Mas sinceramente não me chega. É decepcionante ver as liberdades que os argumentistas de Hollywood tomam. Quem são Al Ramrus e John Herman Shaner (os argumentistas deste filme), quando comparados com um dos melhores escritores do final do século XIX, início do século XX? Porque acham eles que poderão fazer um produto melhor que o do próprio Wells? Recentemente ‘Time Machine’ (2002) voltou a ser uma adaptação péssima cheia de, chamemos-lhe, ‘liberdades artísticas’, incongruentes e inconsequentes. ‘War of the Worlds’ (2005) de Spielberg acaba por ser, por seu lado, cinematograficamente mais bem conseguido. Mas mesmo assim… Anseio por adaptações mais fieis… ‘The Island of Dr. Moreau’ precisa de uma desesperadamente. Talvez Nolan possa fazê-la…
Antes de tudo, gostaria de saber, quem é o Nolan? Depois, se o autor do texto confessa não ter visto a primeira versão de, A Ilha .... Como ele considera a versão de 77 a melhor? E por fim, concordo com ele sobre a terceira versão que é péssima com o abuso de luberdade dos roteiristas e das péssimas caracterizações de Brando e Kilmer
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