Realizador: François Ozon
Actores principais: Fabrice Luchini, Vincent Schmitt, Ernst Umhauer
Duração: 105 min
Crítica: Cada vez gosto mais de ir ao cinema ver filmes de outros lados do globo que não Hollywood. Se já tenho esta tendência em casa há anos, a verdade é que, se é para gastar 5 ou 6 euros, então prefiro ver uma coisa mais espalhafatosa no grande ecrã, e depois deixo o filme mais intimista, e de melhor qualidade, para o conforto do lar. Contudo, nos últimos tempos ando-me a sentir tão desapontado com a qualidade de Hollywood, e a sua falta de imaginação, que já quase nada se salva. Ontem, mais uma vez fiquei completamente satisfeito a ver um filme francês num pequeno cinema de bairro da capital (uma das poucas vantagens de agora estar a trabalhar em Lisboa…), de nome ‘Dans la maison’, do realizador François Ozon.
Confesso que não conheço muito da obra de Ozon. Vi apenas ‘8 femmes’ (2002) e ‘Swimming Pool’ (2003), e ao ver ontem ‘Dans la maison’ começo a aperceber-me dos elementos comuns da obra do realizador. Estes três filmes têm construções muito bem trabalhadas, que se vão erguendo com interesse e deixando o espectador com curiosidade para o que vêm a seguir, sempre com referências eruditas à literatura e ao cinema, mas que inevitavelmente (e em ‘Dans la maison’ não é excepção) desapontam com um twist, ou um final que não faz jus à construção que o filme teve.
‘Dans la maison’ existe num universo voyeurista que me trouxe à memória o ‘Funny Games’ de Hanake. Mas não tem um milésimo do horror que este tem. ‘Dans la maison’ acaba por ser um filme que nem sequer dá tempo ao espectador para que fique incomodado, pois as suas partes mais sensíveis ou mais chocantes passam tão rápido que a sucessão de eventos seguintes atenua qualquer golpe. Esta é, provavelmente, a maior falha deste filme: o seu ritmo frenético. Não há um plano de ponderação, a filmagem de uma paisagem ou de uma casa, ou um plano longo de uma personagem sem falas. Todas as cenas têm diálogo e começam logo no âmago da acção. As que não têm são aceleradas pela voz off, pela música ritmada e até pela montagem. Visto que isto é constante em todo o filme, só pode ter sido uma escolha do realizador, o que não se entende muito bem. Nunca tive tempo, excepto quando os créditos rolaram, para assentar o que estava a ver. Como consequência, nunca tive tempo para sentir a tensão necessária para me fazer desfrutar completamente da história.
O argumento é superficialmente simples embora esconda uma complexidade que o filme, por esta dinâmica desesperada de chegar ao fim (com 100 minutos bem que podia ter chegado calmamente às 2h), tende a não revelar em pleno. Fabrice Luchini encarna na perfeição um professor de francês pacato, escritor falhado, amante dos clássicos, que desespera pela falta de interesse dos seus alunos pela literatura e que desdenha os novos gostos e a nova arte da sociedade moderna. O contraponto é dado pela sua mulher, interpretada por Kristin Scott Thomas, numa performance natural e sorridente, mas profunda, como curadora de uma galeria de arte moderna. As várias cenas na galeria de arte, em que vemos muitas ‘obras’ (como por exemplo uma boneca insuflável com a cara de Hitler ou um quadro com várias fotos praticamente iguais – céu 1 a céu 9) servem como escapes cómicos ao filme mas na realidade pouco interessam para a história principal. Poderiam até ser estes os momentos de ‘pausa’ que falava em cima, para que o público possa sentir a ansiedade de regressar à linha principal do filme, mas como estas cenas são também dadas no mesmo ritmo acelerado tal não acontece.
Um dia o professor está a ler as composições dos seus alunos, a desesperar por mais uma vez serem pobres e banais. Mas de repente uma composição chama-lhe à atenção. A forma como está escrita é completamente diferente de todas as outras. Articulada, bem pontuada, rica em recursos estilísticos. O conteúdo, esse, é que é mais estranho. Claude (o actor Ernst Umhauer) descreve como passou 1 ano a espiolhar a casa do seu colega Rapha (Bastien Ughetto) e que fez tudo para travar amizade com ele só para poder ser convidado para essa casa. Finalmente consegue e a composição descreve essa primeira ida, onde fingindo ir à casa de banho explora a casa e espia os pais dele. O professor e a sua mulher (a quem ele lê em voz alta as composições para podermos assistir cinematograficamente ao flashback) ficam espantados com o conteúdo mas consideram-no um caso isolado, ou uma brincadeira, ou uma fantasia. Então o professor começa a incentivar Claude a escrever mais, e começa a dar-lhe explicações de escrita fora das aulas, mas invariavelmente as composições são sempre sobre as idas a casa de Rapha, cada vez mais voyeurísticas, cada vez mais intrometendo-se na vida familiar da casa dos Rapha. A mãe deste (Emmanuelle Seigner) é uma ‘dona de casa desesperada’ e o pai (Denis Ménochet) é um trabalhador falhado na sua vida profissional que se agarra a ideais de desporto e à ideia de um dia ter o seu próprio negócio para poder continuar a viver.
O professor fica dividido. Dividido entre incentivar este aluno com potencial de um dia ser grande escritor ou denunciar o seu comportamento. O problema é que quer ele quer a sua mulher começam também a ser mirones da casa de Rapha, viciados em composição atrás de composição, interessados, tal como o público também começa a estar, no destino daquelas personagens. E acima de tudo parece sempre estar Claude. O actor Umhauer é um achado. Está sempre com o ar de quem está a controlar a situação. E a verdade é que o espectador do filme sente essa sua força claramente. Claude manipula Rapha. Manipula cada vez mais a mãe deste (por quem tem uma clara paixão). E acima de tudo manipula o professor. Mas conseguirá chegar aos seus objectivos? E quais são esses objectivos? Ter a família que nunca teve? Substituir Rapha? Possuir a mãe deste? E o que sente ele pela escrita? Um meio para um fim? E porque conta tudo a este professor em particular?
Mesmo sendo Claude o núcleo intrínseco do filme, este centra-se na perspectiva do professor, que começa a perder o controlo da situação. Por mais uma composição (ou como ele se convence a ele próprio, por mais um incentivo a este futuro escritor) chega ao ponto de roubar um teste de matemática da escola. Enquanto esta personagem entra numa espiral descendente e decadente, os flashbacks na casa de Rapha também começam a ficar mais incertos. É difícil saber se o que estamos a ver se é real ou não, ou se é só a imaginação de Claude. Por vezes os flashbacks tem ligeiras diferenças, quando Claude revê as composições. Por vezes, o próprio professor começa a entrar nos flashbacks e a interrompê-los com apartes a Claude, como se as suas duas fantasias se misturassem. Mas depois, algumas coisas que ao princípio só podiam ser inventadas começam a ter consequência na vida do professor, aproximando a fantasia da realidade e conduzindo o filme cada vez mais a um final trágico.
‘Dans la maison’ explora três níveis de voyeurismo: o de Claude, o do professor (e da sua mulher) e, como consequência, o do público, conseguindo cativar e seduzir. Mas a construção promete claramente que mais cedo ou mais tarde a coisa vai explodir, e o público fica à espera que tal aconteça. Mas tal não acontece, em pleno. Verdade que as manipulações de Claude vão ter consequência em todas as personagens. Os sonhos e desejos deste fazem surgir os sonhos e desejos de todos envolvidos, e as várias personagens vão tomar decisões que mudarão o rumo das suas vidas e das dos outros. As decisões das personagens periféricas (a mulher do professor, a vingança de Rapha) são menos importantes e o filme centra-se obviamente na relação principal entre o aluno e o professor. Mas a verdade é que tudo o que o público poderá supor ou imaginar que irá acontecer, não acontece e é substituído por um final, interessante sim, mas muito frouxo quando comparado com o que a história prometia.
‘Dans la maison ‘ acaba por ser um inteligente estudo sobre desejos insaciados pelo decorrer da vida, sobre o vício dos humanos de espiar a vida dos outros, sobre o perder do controlo quando a rotina se altera. Tem boas actuações e personagens muito bem construídas. Mas no final não cumpre o que promete e não dá tempo para que os eventos se abatam sobre o espectador. Por exemplo, Claude escreve numa composição que Rapha se enforcou. O professor, claro, temendo que tal seja verdade, corre para a turma para ver se Rapha lá está. Não está e então procura imediatamente um telefone para ligar para casa dele. Sim, está lá, com febre. Mas esta tensão dura menos de 1 min. Não houve tempo para o público suster o fôlego para saber se Rapha estava ou não morto. Não houve tempo para distinguir entre a realidade e a ficção. Por isso mesmo no fim não sabemos bem exactamente o que aconteceu, e o que é verdade ou não. Só sabemos que as personagens encontram uma espécie de paz interior com as suas decisões. E talvez isso seja suficiente. Mesmo que essas decisões não sejam exactamente o esperado, nem exactamente do lado correcto…
Ozon faz-me lembrar M. Night Shyamalan. Excelentes construções. Twists desapontantes. Mas o que Ozon apresenta em ‘Dans la maison’ é um pedaço de cinema. O mesmo não se pode dizer da maior parte dos filmes americanos de hoje em dia, incluindo os do próprio Shyamalan.
De acordo quanto ao atual cinema de Hollywood, o vazio quase absoluto. Mas este exemplo não me parece melhor. Fiquei bastante desapontado com a extrema superficialidade.
ResponderEliminarSim, não é o melhor certamente, mas está acima e Hollywood na mesma. Concordo com a superficialidade, pensei que tinha deixado isso latente nos meus comentários. Um filme que poderia ter ido muito mais além do que foi.
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