Realizador: Pedro Almodóvar
Actores principais: Antonio Banderas, Elena Anaya, Jan Cornet
Duração: 120 min
Crítica: Almodóvar. Tenho um amigo que o descreve como ‘aquele que faz filmes de paneleiros’. Bem, na realidade Almodóvar é bem mais que isso, embora a marca ‘Almodóvar’, dos seus maiores sucessos, tenha uma fórmula que é muitas vezes semelhante, e que se recicla de filme para filme. Felizmente, existe um estilo visual e de produção sempre muito bom, e cada filme consegue ter pequenas surpresas. Ainda mais felizmente Almodóvar tem-se afastado do mundo das drogas, dos travestis e dos homossexuais, e os seus últimos filmes têm regressado a um tipo de exploração mais básica da condição humana (obviamente sempre num contexto espanhol), que não tem de se apoiar na espalhafatuosidade da violência, das mortes, da pedofilia, das drogas e de coisas afins para conseguir chocar ou ser profundo. Isto é visto pelos críticos como mau. Para mim é visto como bom.
Por isso mesmo, no meu ponto de vista a melhor obra de Almodóvar até este filme não era nenhuma daquelas que tem a sua ‘chapa 5’; ‘Hable com ella’ ou ‘Tudo sobre mi madre’, bem amadas dos críticos, mas sim ‘Carne Trémula’ (1997). ‘La piel que habito’ é, de todos os filmes de Almodóvar, aquele que está mais perto de o destronar, se é que não o destrona.
Almodóvar já não trabalhava com Banderas (cuja carreira havia lançado) desde ‘Átame!’ (1990). Há um tipo de relação entre captor e refém muito próxima em ambos os filmes, mas enquanto ‘Átame!’ era um estudo semi-cómico, ‘La piel que habito’ é frio e calculado. Assim são os planos. Assim é a construção das cenas. Assim é o ritmo do filme. O novelo desfia-se muito lentamente. Muitas vezes o público já percebeu há muito o que se está a passar, ou o que se vai passar, mas a câmara continua a filmar, como se nos obrigasse a ver com um prazer mórbido. Este tipo de calculismo está muito acima das obras anteriores (não confundir isto com a habitual ‘lentidão’ dos filmes europeus, ao qual Almodóvar não escapa), é o reflexo da complexidade fria da personalidade da personagem de Banderas, e apenas falha, parece-me, nas últimas cenas. O filme tem claramente mais 6 ou 7 minutos do que precisava. Já não é preciso obrigar o público a suportar o peso da história através das imagens quando a história já está toda revelada e o filme, para todos os efeitos, já acabou.
A história tem duas partes. Uma inicial que nos mostra Banderas como um cirurgião plástico de prestígio, rico, com uma sala de operações na cave da sua grande mansão. A sua mulher e filha morreram anos antes. Contudo, numa sala totalmente fechada, Banderas detém refém uma jovem mulher, cuja pele trata cuidadosamente (Elena Anaya), com a ajuda de uma mulher, Marisa Paredes, uma actriz habitual de Almodóvar. Quando o filho desta, interpretado por Roberto Álamo, aparece não convidado na mansão uma noite, e se apercebe de que existe uma mulher prisioneira, despoleta uma série de eventos trágicos. Tal como noutro filme de língua espanhola ‘El Secreto de sus ojos’ (2009), ao fim dos primeiros 45 minutos, há um twist/revelação e parece, por breves momentos, que tudo está já contado. Contudo, ambos os filmes mergulham numa segunda camada e ocorre um segundo twist, muito melhor que o primeiro, e que apanha o público de surpresa. Este segundo twist de ‘La Piel que habito’, relacionado com o segredo da misteriosa mulher prisioneira, é uma das melhores, se não a melhor, surpresa argumental da carreira de Almodóvar, e eleva o filme a um patamar único. Como um mestre, Almodóvar conduz o público como bem quer. Este não se apercebe do twist de um momento para o outro, numa grande surpresa dramática com música a condizer. Em vez disso esse twist é dado progressivamente e depois, como disse, é esticado até obrigar todos os espectadores a penetrarem nos eventos, quer queiram, quer não (a não ser que saiam da sala). Só o final do filme parece a mais. De resto o filme tem exactamente o equilíbrio que precisa de ter.
Banderas, cujos dias como leading man de Hollywood já acabaram, está num dos seus melhores papéis, um papel como já não tinha há anos. ‘La Piel que habito’ é um dos melhores filmes de Almodóvar, e um dos melhores filmes do ano 2011, se não o melhor. O seu reconhecimento internacional foi talvez minado pelo facto de Espanha ter decidido enviar outro filme que não este para a contenda de Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Especula-se que terá sido uma decisão 'política', para dar uma oportunidade a outro cineastra espanhol, já que nos últimos anos, sempre que Almodóvar fazia um filme, era esse que era enviado pela Academia espanhola. Mas esta decisão desta vez foi errada, pois 'La Piel que habito' merecia, mais que qualquer outro filme de Almodóvar, essa posição, e esse grande reconhecimento internacional, que aparentemente lhe passou ao lado.
Almodóvar tem um dom para inventar histórias dramáticas chocantes, e está muito melhor quando estas não envolvem forçados marginais da sociedade, mas pessoas supostamente normais cuja sanidade mental não é exactamente aquilo que aparenta ser. Aqui temos um conto de Frankenstein moderno, que se mistura com uma história de vingança fria, lenta e ponderada, mas afiada como uma faca de dois gumes, e que se mistura também, para além disso, com um estudo psicológico da síndrome de Estocolmo (relação sequestrador-sequestrado). Almodóvar pega no melhor de ‘Átame!’ e ‘Carne Trémula’ e cria uma história única que cativará, chocará e fará o público pensar sobre ela muito depois de sair da sala. Um filme magnífico.
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