Realizador: Sergio Leone
Actores principais: Rod Steiger, James Coburn, Romolo Valli
Duração: 147 / 150 min
Crítica: Antes do grande final de ‘Giù la testa’ há uma longa série de sequências sem diálogo, onde as duas personagens principais passam por um período de reclusão e desespero. O silêncio de falas (pois há muita música e sons de batalha) é quebrado quando um pássaro liberta os seus dejectos sobre Rod Steiger e ele diz chateado ‘mas para os ricos cantas’. É aí que James Coburn solta uma longa gargalhada, que fica a ecoar pelo filme. E de repente apercebemo-nos do significado do filme, e aquela gargalhada permanece, para além da tela, a ecoar na mente do espectador…
‘Fistfull of Dynamite’ (para fazer a associação à trilogia dos dólares) também chamado ‘Once Upon a Time in the Revolution’ (para fazer a associação à outra trilogia de Leone, a da América), também chamado ‘Duck, You Sucker’ (que vem do título original italiano) é um dos filmes de Sergio Leone mais esquecidos e menos considerados. Apareceu em 1971 depois do fabuloso ‘The Good, the Bad and the Ugly’ (1966) e do ainda melhor ‘Once Upon a Time in the West’ (1968) e é o ultimo filme que Leone realizou até à sua derradeira obra-prima em 1984 (Once Upon a Time in America). Depois de dois westerns tão bons, a fasquia seria difícil de ultrapassar, e é geralmente considerado que Leone não esteve no seu melhor em ‘Giù la testa’. Isso é verdade, o filme não é tão bom. Mas para um realizador da categoria de Leone, dizer que um filme dele não é tão bom é dizer que é, no mínimo, excelente. A questão com ‘Giù la testa’ é que o seu tema central não é o mesmo dos westerns anteriores de Leone, e é preciso encará-lo com outro tipo de maturidade.
A trilogia dos dólares apresenta um oeste de anti-heróis, com sequências lentas e elaboradas que vão construindo um climático final. Aí, tal como em todos os filmes de Leone, as personagens interessavam mas que a acção, mas os seus motivos eram na maior parte das vezes egoístas, como a vingança ou o dinheiro, e só por si justificavam essa acção. O objectivo de ‘The Good, the Bad and the Ugly’ é o tesouro enterrado. O filme possui uma épica construção de uma qualidade indescritível, mas se o decompusermos descobrimos que estamos apenas perante o tema clássico de busca por dinheiro. ‘Once Upon a Time in the West’ tinha outros valores, e era uma carta de amor à conquista do Oeste, visto pela perspectiva de 4 personagens que representam cada um dos arquétipos que associamos aos westerns. Uma delas procura dinheiro, uma reputação, a outra vingança, a outra a nova vida que só o oeste pode proporcionar. Mas em ‘Giù la testa’, por mais incrível que possa parecer, o tema central é a amizade, os valores pessoais e a traição entre amigos. A amizade entre Blondie e Tuco em ‘The Good, the Bad and the Ugly’ era apenas de conveniência. A amizade entre Juan e Sean é algo bem diferente.
Juan (Rod Steiger) é um ladrãozeco mexicano, porco e analfabeto, que se ocupa a roubar diligências com os seus inúmeros filhos, e sonha com assaltar o famoso banco de Mesa Verde. Sean (James Coburn) é um irlandês, ex-IRA, especialista em explosivos, com um passado que procura esconder. A introdução destas duas personagens é meia hora clássica de Leone. Quando se encontram, Juan chantageia Sean a assaltar o Banco de Messa Verde. Quando tentam fazê-lo, envolvem-se na revolução Mexicana, e ficam embrenhados nela até ao fim do filme.
Na realidade, não há muita história em ‘Giù la testa’. Dois homens distintos vêm-se envoltos em algo que é muito maior que eles, e que não conseguem compreender. Este já é um Oeste decrépito, muito contrário ao representado nos clássicos e heróicos westerns. Estamos já no século 20. Já há quem se desloque de carro ou mota. Já há armas automáticas. Mas há homens fora do seu tempo que ainda andam de arma de 6 balas no coldre, e que ainda se deslocam a cavalo. O novo e o velho confundem-se e os valores da revolução são o pano de fundo para os conflitos internos destas duas personagens. Mas enquanto que a Guerra Civil Americana é mostrada em ‘The Good, the Bad and the Ugly’ como um catalisador de mais acção, um pano de fundo da história principal, a revolução mexicana é uma parte integrante de ‘Giù la testa’, e a câmara foca em variadas ocasiões os horrores da guerra, e esse peso é sentido pelos dois protagonistas.
À imagem da personagem de Charles Bronson em ‘Once Upon a Time in the West’, existem flashbacks para o passado na Irlanda de James Coburn. Aqui a beleza destas sequências em slow motion é enfatizada pela belíssima banda sonora de Ennio Morricone. O tema central é a traição. Sean foi traído na Irlanda pelo melhor amigo (Leone adorava John Ford, e da última vez que revi o filme perguntei-me se o tema da traição no IRA não teria sido inspirado no filme ‘The Informer’ de 1935). Agora, numa nova revolução, com um novo melhor amigo, Sean sabe que não será traído. Estes homens têm uma amizade que vai para além das armas (sim, eu sei o que estão a pensar, também não é homossexual). É uma amizade de dois homens que se vêm ultrapassados pelo tempo, e que juntos, quase sem querer, juntam-se ao movimento que libertará o povo mexicano da opressão. Mas na realidade o objectivo da revolução não lhes interessa muito. Quando a família de Juan é morta, só lhe resta Sean. E Sean também não tem ninguém senão Juan. Quando estão escondidos num vagão, pensando que a revolução está perdida, cercados por tropas inimigas e a caca de pássaro cai e Sean se ri, vemos os dois homens a entenderem-se, da mesma forma como se entendem Robert Redford e Paul Newman em ‘Butch Cassidy and the Sundance Kid’ (1969), como se entendem Morgan Freeman e Tim Robbins em ‘The Shawshank Redemption’ (1994). Nenhum dos homens trairá o outro. E sabendo isso partem para o assalto suicida final que define os últimos 20 minutos de filme.
‘Giù la testa’ tem uma história mais difícil de seguir, já que muito pouco é explicitado. Por um lado tem sequências de acção fabulosas, à Leone. O assalto ao banco, o ataque na ponte. Mas por outro o conteúdo do filme está entre as linhas, está nas longas sequências sem falas com a música de Morricone, está nos olhares trocados, está no segredo de Sean, e na união dos dois homens. É um filme que se entende melhor à medida que os anos passam e as visualizações se multiplicam (já vi o filme umas 3 ou 4 vezes e cada vez que o vejo gosto mais dele). É o meio termo entre a acção e a construção operática de cenas dos westerns anteriores de Leone e o complicado estudo das relações humanas presente em ‘Once Upon a time in America’, 13 anos depois.
Se é para ver ‘Giù la testa’, por favor veja-o na sua versão de 150 min. As várias versões cortadas do estúdio já desapareceram mas restam duas em DVD, uma de 147 e uma de 150 min. A questão é se 3 minutos fazem a diferença. A resposta é sim. Os 3 minutos em questão consistem no último dos flashbacks, e foram cortados praticamente no final do filme (o flashback encaixa 30 segundos antes do fim). Quem o cortou deve ter achado o flashback supérfluo (é na realidade um pouco polémico, daí a razão de ter sido cortado). Eu acho que não. Acho que o filme não faz sentido sem ele. Esse flashback justifica todo o filme e fecha a compreensão daquilo que é Sean, uma das mais complicadas personagens criadas por Leone (se não a mais complicada, rivalizando com a de DeNiro em Once Upon a Time in America).
‘Giù la testa’ poderá ser o pior filme de Leone. Mas é um grande filme. Os jovens podem vê-lo pelas sequências à Leone, mas acharão o seu ritmo mais lento e menos explícito. Mas à medida que os anos passam ficarão surpreendidos em encontrar elementos no filme que nunca tinham descoberto. Só um bom filme proporciona estas camadas e não se esgota com a sua primeira visualização.
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