Realização: Fred Niblo
Actores principais: Ramon Novarro, Francis X. Bushman, May McAvoy
Duração: 143 min
Crítica: Como a maior parte dos cinéfilos, conheço a majestosa versão de 1959 de
‘Ben-Hur’, realizada por William Wyler e vencedora de 11 Óscares, como à palma
da minha mão. Já a conhecia de trás para a frente e da frente para trás antes
sequer de estar consciente disso, e antes de saber que existia uma coisa
chamada ‘indústria cinematográfica’. Suponho que já deva ter visto esse filme
umas 20 vezes, ou mais. Contudo, esta não é a única versão do clássico livro do
General Lew Wallace que foi feita em Hollywood. Em 1907 foi feito um mini-épico
de 15 minutos. Em 1925 Fred Niblo realizou o filme mais caro da história do
cinema mudo. Claro que estas duas versões são completamente obscurecidas pelo
magnífico espectáculo concebido pelo produtor Zam Zimbalist e o realizador
William Wyler em 1959, e enaltecido pela performance colossal de Charlton
Heston. O facto desta versão constituir, indiscutivelmente, um dos melhores
filmes alguma vez feitos obviamente faz esquecer que é, ‘apenas’, um remake
(embora seja muito mais que isso, obviamente), e faz esquecer o quão
surpreendentemente espantosa é a versão de 1925.
Tive oportunidade de ver ‘Ben-Hur: A Tale of Christ’ quando comprei, aqui
há uns anos, a edição definitiva em DVD, comemorativa dos 50 anos, do filme de
1959 (a última antes da estreia em Blu-ray). Num dos 4 discos que esta caixa
contém está a versão de 1925 (algo que o Blu-ray também possui), um filme que
apanha toda a gente de surpresa, pois quase não há filmes mudos que conseguem
ser tão dinâmicos como os blockbusters sonoros e a cores. Obviamente, nada
acontece por acaso, e o facto desta produção da MGM ser creditada como a mais
cara de sempre da era do cinema mudo ajuda a explicar a escala grandiosa que
este filme contém. Na verdade é perceptível em praticamente todos os frames
onde é que o dinheiro foi gasto. Completamente à frente do seu tempo, este é um
filme visionário, que é tão cativante e majestoso como a versão de 1959, mas
com o extra de ter todo o esplendor das produções de estúdio dos anos 1920 a
exercer a sua influência sobre a magnificência do produto final. Esta produção
ostenta cenários grandiosos e megalómanos, milhares de figurantes (incluindo,
supostamente, muitos actores então desconhecidos que se tornariam grandes
estrelas nos anos 1930, como Carol Lombard, Gary Cooper, Clark Gable –
basicamente foram buscar toda a gente que tinha um contrato com o estúdio) e, o
que mais me surpreendeu, incrível fluidez nos movimentos de câmara e na
montagem, em particular nas duas principais cenas de acção: o assalto dos
piratas e, obviamente, a corrida de quadrigas. Se nos lembrarmos que na altura
a câmara era pesada, muito difícil de transportar e não havia os complicados
sistemas hidráulicos e de gruas como agora, então é possível ter uma ideia da
quantidade de trabalho que foi necessária para obter aqueles incríveis
enquadramentos na cena da corrida. No imbd mais de 60 realizadores assistentes
ou de segunda unidade estão creditados, incluindo o próprio William Wyler,
realizador principal da versão de 1959.
Este filme, se o compararmos com o de 1959, é uma espécie de condensação. A
versão mais recente tem mais de 3h30min, e esta tem 2h20min, mas a história é
praticamente a mesma, ou seja, ambas acabam por ser mais ou menos fiéis ao fio
condutor do livro. Todas as cenas ‘familiares’ (ou seja, familiares para o público
de hoje que conhece bem a versão de 1959) estão presentes na versão de 1925. A
história segue Judah Ben-Hur, desde a sua introdução como o rico filho de um
mercador Judeu, à sua queda causada pelas falsas acusações que o levam a ser
vendido como escravo após a ocupação romana da Judia, até à sua ascensão após
salvar a vida a um importante legionário romano, procurando vingança contra o
seu outrora amigo Massala e o paradeiro da sua irmã e da sua mãe. Há contudo
alguns segmentos que não estão presentes na versão de 1959 (talvez seguindo
mais de perto o livro), como vários episódios da vida de Cristo, a aparição de
um exército religioso contra os romanos liderado pelo próprio Ben-Hur, a
tentativa de sedução/traição deste por uma espia enviada por Massala, entre
outros. Estes segmentos adicionam ritmo à história (mais eventos em menos
tempo) mas foram justamente retirados da versão mais moderna, que tem uma linha
condutora mais clara. Por outro lado, o ritmo da maior parte das cenas é
quebrado pela contínua inserção de intertítulos, muitos mais do que aqueles
necessários para que a história se compreenda. Ao tentar dar profundidade à
história e ser fieis ao livro, os produtores pareceram momentaneamente esquecer-se
que o cinema é, acima de tudo, um espectáculo visual.
Um dos atractivos deste filme, e um dos aspectos que dá mais um elemento de
magia a esta obra-prima, está no facto de que todos os episódios da vida de
Cristo, bem como uma ou outra cena adicional estarem em ‘two strip Technicolour’,
ou seja, numa técnica rudimentar de cor em dois tons, usada em filmes da década
de 1920, tal como por exemplo ‘The Phantom of the Opera’ (1925). Completamente
à frente do seu tempo, este filme é um espectáculo maduro e grandioso, que
demonstra uma capacidade de realização rara para a altura, talvez apenas com a
excepção dos filmes de Chaplin e Griffith. Mas isto provavelmente não é uma consequência
das capacidades do realizador Fred Niblo, mas sim mais da massiva capacidade de
produção do grandioso estúdio da MGM. Mesmo assim, este filme tem algumas
falhas que são típicas do cinema mudo, tais como as exageradas performances
(exacerbadas gesticulações, bater no peito em sinal de desespero, etc). A
interpretação do actor Ramon Novarro do papel principal não é no geral muito
convincente. No início do filme, quando Ben-Hur é próspero, Navarro parece
Valentino, ao usar maquilhagem e os lábios pintados, na forma clássica dos
heróis dos anos 1920. Só raramente atinge a profundidade necessária como Ben-Hur,
tal como na cena das galés. Esta falha na caracterização das personagens
principais constitui um problema, pois este filme grandioso, em que tudo é a
grande escala, passa de cena em cena, de ‘set piece’ em ‘set piece’, misturando
acção, espectacularidade e drama, mas este contínuo bombardear de epicidade
parece superficial quando se nota que as personagens não são suficientemente
profundas ou não estão suficientemente desenvolvidas. É precisamente este
desenvolvimento humano que a hora extra da versão de 1959 oferece, tornando as
personagens imortais e a sua odisseia heróica e sempre emocionante. Para mim, a
melhor interpretação é feita por May McAvoy, no papel de Esther. A sua face e o
seu corpo expressam a emoção necessária sem recorrer a exagerados maneirismos
ou a intertítulos.
Tudo somado, fiquei muito surpreendido com esta versão. Considero-a
fantástica e uma das maiores obras do cinema mudo. É um filme épico, emocionante
e sumptuoso do início ao fim. Aquele ‘je ne sais quoi’ necessário para tornar
este filme imortal nos anais do Cinema é dado pela versão de 1959, mas ambas
são equiparáveis, tendo em conta os respectivos contextos temporais, em termos
de tensão, capacidade técnica e design de produção. Causa-me um arrepio na
espinha pensar que este filme já foi feito há quase 90 anos. Na altura o cinema
estava a começar e era excitante e imprevisível (ao contrário de agora), e era
feito por pessoas sem medo de explorar e que desfrutavam imenso do prazer da
descoberta e da produção. Cada novo avanço (a câmara móvel, o Technicolour) era
usado menos pelo show of e mais pelo simples prazer de conseguir uma reacção genuína
no público, e esse nervosinho miúdo, essa excitação da partilha da descoberta,
está latente nas cenas, que mesmo assim não abdicam da sua qualidade habitual e
dos seus princípios mais básicos: o de contar uma história e entreter. Se alguma
vez algum filme foi feito por paixão à arte e ao espectáculo do entretenimento,
bem, este é um dos expoentes máximos dessa doutrina.
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