No início de 2004 todos os fãs portugueses de bandas sonoras cinematográficas tiveram a notícia das suas vidas: Ennio Morricone preparava-se para dar o primeiro (e até hoje único) concerto da sua carreira em Portugal. O mítico evento ocorreu a 28 de Junho de 2004 no Anfiteatro Keil do Amaral, em Monsanto. E eu, com 19 anos de idade, estava lá. Tinha que estar, certo?
A realização deste único evento na história cultural portuguesa começou na realidade a ser formada uma década antes. Em 1995 o italiano Roberto Faenza filmou em Portugal ‘Sostiene Pereira’ com Marcello Mastroianni e Joaquim de Almeida, um dos poucos filmes estrangeiros alguma vez feitos a retratar um evento histórico do nosso país. A cargo da banda sonora instrumental estava Ennio Morricone, que compôs igualmente uma canção, juntamente com Francesco de Melis e Emma Scoles. Essa canção, intitulada ‘A Brisa do Coração’, ganhou vida com a voz de Dulce Pontes, então no seu pico de popularidade, e permitiu que se criasse uma relação de amizade pessoal e profissional entre compositor e intérprete.
O que muitos não sabem é que Dulce Pontes passou a figurar na lista de intérpretes convidados nos concertos (praticamente sempre em Itália) de Il Maestro. Eu por exemplo tenho o CD do concerto ao vivo de ‘Ennio Morricone at Santa Cecília’ (o primeiro CD de Morricone que comprei) onde Dulce surge em palco a interpretar precisamente ‘A Brisa do Coração’. E também tenho o DVD do ‘Arena Concerto’ onde ela interpreta não só o tema de ‘Sostiene Pereira’ como o de ‘Sacco e Vanzetti’ e ‘Queimada’. O culminar desta colaboração ocorreu em 2003 com o álbum ‘Focus’.
Eu sempre tive sentimentos contraditórios em relação a ‘Focus’ e após muito debate interno acabei por não o comprar na altura do seu lançamento. Basicamente, ‘Focus’ é constituído pelos temas principais da carreira de Morricone; ou melhor, pelos seus temas transformados em canções. Se as músicas foram criadas como temas instrumentais para quê, sempre pensei, “estragá-los” com uma letra por cima e um arranjo num estilo smooth jazz, pop ou semi-operático? Em ‘Focus’ Dulce Pontes recicla as várias canções que já tinham sido concebidas desta forma (como a versão cantada "A Rose Among Thorns" a partir do tema de ‘The Mission’), e escreve ela própria letras para outros temas, como o de ‘Once Upon a Time in West’ que se torna "Amor a Portugal". Não quero tirar o mérito a Dulce nem ao álbum, mas sempre preferi as versões originais, sem voz, e portanto sempre me debati sobre o interesse último do álbum. Mas é inegável que se não fosse ‘Focus’, um dos grandes eventos da minha vida de fã nunca teria ocorrido, portanto suponho que lhe devo uma grande dívida de gratidão.
Reza a lenda que Dulce Pontes sempre tentou convencer Ennio Morricone a fazer um concerto em Portugal. E em 2004 finalmente o conseguiu. O concerto foi promovido pelo departamento de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, associado às festividades culturais envolventes à organização do Euro 2004. Morricone iria conduzir a Roma Sinfonieta Orquestra em pleno parque de Monsanto, num concerto com entrada livre. Mesmo morando a 300 quilómetros do evento, e mesmo sendo em plena época de exames na faculdade, não poderia faltar. E não faltei.
Nesse dia, com uma grande excitação e expectativa para o momento em que veria ao vivo o maior compositor cinematográfico de sempre, meti-me num comboio e fiz a viagem até Lisboa. Depois, acompanhado pelos meus primos, rumamos até Monsanto, muito perto de um local onde, quase uma década mais tarde, iria trabalhar durante um ano. O concerto estava marcado para as 22h mas fomos muito mais cedo, com medo que houvesse uma enchente. Houve, mas como estávamos em Portugal, foi muito mais perto da hora do início do concerto. Assim, à hora vespertina em que chegamos, pudemos-mos sentar confortavelmente nas primeiras filas dos bancos de pedra do anfiteatro ao ar livre. Bem, na pedra talvez não tenha sido assim tão confortavelmente. E ainda bem que era Junho e não estava a chover. Mas dentro em breve Il Maestro estaria ali. Aguentaríamos qualquer coisa.
Então surgiu com o mesmo ar de sempre; o olhar plácido e simpático, sempre humilde, sempre agradecido, afinando a orquestra vivendo a música, sentindo a música. Tinha 75 anos de idade na altura e isso notava-se ao andar, mas não quando estava a conduzir a orquestra. O local não era propriamente o ideal para ouvir uma grande orquestra sinfónica. Os músicos estavam cobertos por uma grande redoma de plástico e o som propagava-se desequilibradamente pelo espaço aberto. Mas quando Morricone ergueu a sua batuta para iniciar o concerto mais nada passou a existir senão nós, ele, os instrumentos e a música gloriosa, “na terra como é no céu”. Dulce Pontes? Não sei quem é nem nunca ouvi falar.
O concerto teve duas partes. Na primeira parte ouvimos o best-off dos temas instrumentais de Morricone. O maestro literalmente “desbundou” com a sua orquestra, enchendo as florestas do parque com as suas extraordinárias composições. Incrível silêncio da assistência durante as músicas. Efusivos aplausos entre elas. Todos nós a sorver as lições do mestre num transe extasiado e hipnotizante. Após este prólogo surgiu Dulce Pontes. A segunda parte do concerto seguiu à risca o esquema dos concertos ao vivo de Morricone, com as músicas cantadas (as do álbum 'Focus' e as restantes) a serem entrecortadas por mais composições instrumentais (claramente para Dulce fazer umas pausas para descansar a voz).
A grande diferença aqui é que isto foi um one-woman show de Dulce. Nos concertos de Morricone em Itália, Dulce Pontes apenas canta as canções. As partes de soprano sempre foram assumidas por outras cantoras mais especializadas, de Edda Del’Orso até Susanna Rigacci. Mas nessa noite em Monsanto Dulce Pontes assumiu tudo, quer as canções de ‘Focus’ quer todas as outras. Cantar "Amor a Portugal" é uma coisa. Mas de repente lá estava Dulce a levar a sua voz até ao limite (sobre)humano para poder estar ao nível de "Ecstasy of Gold" ou "A Fistful of Dynamite". Notas máximas pelo esforço. Mas não é nenhuma Edda Del’Orso. Mesmo assim se os fãs mais dedicados se aperceberam disso não o mostraram. Talvez Dulce não devia ter ousado ir tão longe vocalmente, mas a verdade é que Monsanto praticamente foi abaixo em aplausos quando, visivelmente cansada do esforço, ela terminou "Ecstasy of Gold". E o espectador mais atento terá notado Dulce a fazer o sinal universal de “xiuuu” para o público com um sorriso nos lábios. Afinal, Morricone já tinha começado uma nova música instrumental…
De ‘Once Upon a Time in America’ a ‘Cinema Paradiso’, de ‘The Mission’ a ‘The Untouchables’, de ‘Casualities of War’ a ‘The Good, the Bad and the Ugly’ foi uma noite absolutamente memorável que nunca esquecerei o resto da minha vida. No final, usando a minha velha câmara (ainda com rolo, claro) aproximei-me do palco e tirei uma série de fotografias. Não havia ainda o modo selfie, obviamente, mas o mais importante para mim era preservar a memória de que, uma vez na vida, estive a menos de um metro de uma lenda viva do cinema, um dos melhores compositores da história da música, Il Maestro Ennio Morricone. Enquanto Dulce fazia os seus agradecimentos com os trejeitos habituais dos músicos, Ennio permanecia com o simpático semblante, ligeiramente comovido, que sempre tem quando é aplaudido e homenageado. É como se nunca se tivesse realmente apercebido que a sua música é genial e bem-amada; é como se o reconhecimento o surpreendesse e comovesse como se fosse pela primeira vez; é como se estivesse mais a agradecer ao público por o ouvir, por esse reconhecimento, do que nós a ele. Como não amar um homem assim, que cria a sua arte para nós e não pede nada em troca?
Este ano Morricone fará 90 anos de idade e continua a fazer (boas) bandas sonoras, mas nunca mais regressou a Portugal para um concerto. Todos nós que estivemos em Monsanto nessa inesquecível noite em 2004 sabemos que fizemos parte de um pequeno grande evento da história cultural do nosso país. E poderemos sempre dizer que partilhamos um momento na vida com este génio, um privilégio raríssimo para os amantes de cinema em Portugal. Eu tenho 18 CDs originais de Ennio Morricone. E não há uma única vez que os ouça sem viajar até essa noite em Monsanto. Foi o mais próximo que alguma vez estive de atingir a perfeição através da música.
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