Eu comecei o meu doutoramento bastante jovem, aos 24 anos de idade. Trabalhava numa empresa de consultoria quando recebi a notícia que havia ganho uma bolsa de investigação à qual me havia candidatado. Após alguns momentos de introspecção (“é isso que queres fazer da vida, caro indivíduo?!”) decidi regressar à Universidade na qual havia obtido o grau de licenciado e de mestre. Foi uma mudança rápida. O meu último dia de trabalho na empresa foi numa sexta. O meu primeiro dia de doutorando foi na segunda-feira seguinte. E agora o leitor pergunta, o que é que isto tem a ver com cinema? Passo a explicar.
Passou-se um ano. O meu jovem eu estava agora imensamente embrenhado no seu deveras interessante trabalho doutoral. O problema é que não tinha tido, nesse ano, umas férias que jeito tivessem. Portanto achei que já estava na altura de remediar essa situação. Para além do mais, a minha bolsa era consideravelmente superior ao salário miserável que ganhava como estagiário na empresa. Tinha os recursos, tinha a vontade, e tinha também a disponibilidade. Só tinha de escolher o local e partir.
Nunca vou esquecer aquelas duas semanas da minha vida em Fevereiro de 2010 quando tinha 25 anos de idade. Não o sabia na altura, mas foram as últimas e melhores férias da minha vida de solteiro. Desde essa altura já viajei muitas vezes sozinho, mas fui sempre em trabalho. Em modo "férias" nunca mais fui a solo como fui nesse momento no tempo rumo às belas paisagens da Irlanda e da Escócia, só eu e uma mochila às costas. Foi a minha espécie de viagem de autodescoberta, a deambular sozinho entre a cidade e o campo, muitas vezes não trocando uma palavra com ninguém praticamente todo o dia; dormindo em aeroportos, dormindo em hostels, atravessando a Escócia de comboio. Foi fabuloso. A experiência de uma vida. Mas para tornar tudo muito mais satisfatório o cinema não podia faltar. Um viciado não pode passar duas semanas sem o vício.
Um dos momentos mais marcantes dessa viagem, cinematograficamente falando, ocorreu logo no segundo dia na minha primeira paragem, Dublin. Deambulava sem grande rumo pela zona do Temple Bar, o quarteirão cultural da cidade, repleto de bares, galerias de arte e lojas alternativas. Totalmente por acaso enveredei pela Eustace Street e eis que os meus olhos se deparam com uma placa: “Irish Film Institute”. Não o sabia, mas o número 6 da Eustace Street já era a casa do IFI desde 1992. Como bom cinéfilo, não podia deixar passar uma oportunidade destas e a minha curiosidade natural convidou-me a entrar nesse edifício de paredes amarelas.
Os visitantes do IFI deparam-se, mal entram, com um longo e estreito corredor. Vê-se um pátio interior ao fundo, mas se forem viciados em DVDs como eu não chegam lá tão cedo, porque um ou dois metros mais à frente, do lado direito, encontra-se uma loja. Assim, virei logo à direita e entrei, confrontando-me com estantes e estantes cheias de DVDs e todo o tipo de outros produtos cinematográficos. Quem é cinéfilo de gema sabe que é nos países anglo-saxónicos que se encontram as melhores edições dos clássicos, cortesia de míticas colecções como a do British Film Institute ou a Criterion Collection. Aqui em Portugal é raríssimo encontrar estas edições numa loja. Mas em sítios como a loja do IFI vemo-las a encher estantes de cima a baixo. O esforço hercúleo (para nós e para a carteira) é escolher só um para levar…
Finda a minha primeira olhadela à loja, voltei a sair para o corredor e penetrei no interior do quarteirão. Ao fundo o corredor desagua num enorme pátio coberto, contendo ao centro as mesas e cadeiras de um pequeno café. Se a memória não me falha a bilheteira era à direita, e ao fundo haviam portas e escadas com acesso a vários locais, desde salas de cinema (o IFI tem três), salas de exposição, e claro as salas de arquivo e biblioteca. Sentei-me um pouco numa das mesas do café a sorver aquela atmosfera agradável e aconchegante, enquanto o Sol da tarde entrava pelas clarabóias em cima. Quando já estava saciado e bem descansado (que isto de ser backpacker é esgotante…), levantei-me e dei uma volta pelo local. Espreitei numa ou noutra sala. Fui à bilheteira ver o que estava em exibição. E depois fiz o corredor na direcção oposta para voltar a emergir nas ruas do Temple Bar.
Enquanto prossegui o meu passeio turístico por Dublin, comecei a pensar no que iria fazer nesse serão. No dia anterior tinha passado um bom bocado num típico pub desportivo irlandês, a ver o FC Porto (calma leitor, eu sou do Boavista FC!) a jogar contra, se a memória não me falha, o Arsenal para a Liga dos Campeões – um português no meio de um pub de entusiasmados adeptos ingleses e irlandeses! Portanto nesse dia pensei que talvez fosse melhor optar por algo igualmente interessante, mas mais calminho, e eis que se começou a formar a ideia na minha cabeça de voltar ao IFI para ver um filme. E foi precisamente isso que fiz.
Já não me lembro dos outros filmes que estavam em exibição, mas sei porque escolhi ir ver ‘Crazy Heart’ de Scott Cooper. Jeff Bridges estava a ganhar quase todos os prémios de Melhor Actor e dentro de poucos dias iria ganhar o seu há muito aguardado Óscar. Era o filme “semi-independente” do ano e como não o tinha visto ainda, estava aqui a perfeita oportunidade. Aliás, pareceu-me a escolha ideal para esta atmosfera tranquila mas vibrante, no interior de um quarteirão de um dos mais emblemáticos bairros culturais do norte da Europa.
Assim sendo voltei ao Temple Bar e à Eustace Street. Voltei a percorrer o corredor até ao pátio interior. Comprei o meu bilhete e subi um pequeno lanço de escadas até ao primeiro andar. Leio agora na internet que o IFI tem três salas de cinema, uma maior com 258 lugares, uma com 106 lugares e uma pequenina com 61 lugares. Tenho quase a certeza absoluta que vi ‘Crazy Heart’ nesta salinha mais pequenina. Apesar do seu tamanho era extremamente acolhedora. Podia ser a nossa sala privada, onde podíamos estar sentados confortavelmente com os nossos amigos a ter conversas cinéfilas pela noite dentro; isto é, se fossemos milionários e tivéssemos uma sala privada na nossa mansão! As pouco mais de dez filas de cadeiras dispunham-se em arco em frente de um ecrã consideravelmente grande, tendo em conta a dimensão da sala.
Aos poucos, a sala foi enchendo (também não era preciso muito), principalmente por pessoas de meia-idade. Depois as luzes baixaram e pelas duas horas seguintes assisti tranquilamente, naquele ambiente aconchegante e numa cadeira extremamente confortável, à proverbial odisseia de um homem de meia-idade em crise nas paisagens do interior americano, embalada pelo ritmo da música country. Mais uma vez, naquele enquadramento irlandês, esta aura do filme não destoava absolutamente nada. Foi a única vez que vi este filme, portanto já não me recordo bem se gostei muito dele ou não. Mas recordo-me perfeitamente de não ter concordado com um par de senhoras idosas que meteram conversa comigo à saída. Diziam elas que Jeff Bridges estava excelente e merecia o Óscar, e voltaram-se de repente para mim para me perguntar o que achava sobre isso. Eu fiquei surpreendido por duas senhoras discutirem tão abertamente um filme à saída da sala com um completo estranho (é de louvar e está totalmente no espírito de ver um filme num instituto de cinema, mas a verdade é que tal nunca me aconteceu em Portugal!). Mas eu também as surpreendi a elas quando disse que não concordava muito. Afinal, por tão carismático que seja Bridges, não era esta mais uma personagem que passa por exactamente os mesmos trâmites emocionais que já vimos tantas vezes anteriormente, principalmente nestes papéis-Óscar nesta altura do ano? Acho que as senhoras não estavam à espera desta minha resposta, especialmente num inglês sem sotaque irlandês, porque ficaram a olhar para mim sem saber bem o que retorquir…
Deixando assim estas queridas senhoras, desci as escadas, voltei a sair para a rua, e percorri a pé, sob o céu nocturno irlandês, o caminho de volta até ao meu hostel. Mais um serão havia passado nesta minha mítica viagem de férias. E havia sido mais um serão excelente. Podia-me ter ido embebedar para um bar ou cometer alguma folia por estar sozinho num país estrangeiro. Mas isso realmente teria piada e seria duradoiro? Talvez para alguns, mas não para mim. O que fiz foi muito melhor.
Este meu pacato serão foi tudo o que precisava para ficar satisfeito, pois experienciei um espaço a transbordar de paixão pela sétima arte; um espaço bem localizado, muito bem cuidado, organizado e apelativo. Um espaço onde o passado e o presente do cinema confluíam, ideal para dois dedos de conversa sobre filmes enquanto se sorve uma bebida quente num ambiente acolhedor. O que uma cinemateca ou um instituto de cinema deve ser; feito para o público em geral, aberto a todos, onde qualquer um é bem-vindo pois não é apenas um espaço elitista que intimida com uma entrada austera onde os manás do cinema estão por detrás de balcões e salas fechadas apenas acessíveis a um conjunto de iluminados. Pelo contrário, no IFI tudo parecia “fácil”; o café convidava a ficar, a programação era variada e fluída (indo do comercial ao artístico, dos clássicos às mais recentes estreias), o preço dos bilhetes era extremamente acessível, a loja era aberta à rua e estava bem apetrechada de itens cinematográficos e até a parca capacidade das salas mais contribuía para o extremo ambiente de familiaridade.
Numa palavra, fiquei encantado. Voltarei, se algum dia regressar a Dublin. Para ver um filme certamente, mas também para visitar quer a loja, quer as exposições que em 2010 acabei por não ver com atenção. IFI: um espaço onde o cinema está vivo e recomenda-se, numa Dublin perto de si. É verdade que tive mais aventuras cinematográficas nessa viagem, particularmente em Edimburgo, mas esta primeira foi sem dúvida a melhor delas todas. E ver ‘Crazy Heart’ e comentá-lo com as senhoras irlandesas foi um inesperado, mas muito bem-vindo bónus adicional à minha viagem e à minha experiência como cinéfilo além fronteiras; um bónus que sempre recordarei.
Esta é a minha histoire du cinema sobre ‘Crazy Heart’ e a minha experiência no IFI. Qual é a sua, caro leitor?
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