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Histoire(s) du cinema: Angela’s Ashes (1999), ou a minha primeira “tripleta” livro-filme-banda sonora

A adolescência já de si é um período extremamente excitante, mas ainda mais é para um adolescente que pretende descobrir o cinema. Hoje em dia, vinte anos depois, não vi ainda muitos filmes que um cinéfilo dedicado devia ver (é impossível ver tudo) mas sei quais são; já os vi citados nos livros da especialidade, já os vi nas filmografias de grandes actores e realizadores, já li as suas sinopses, já li as suas críticas. Simplesmente, com tudo o que tenho para ver, ainda não cheguei lá. Mas na minha pré-adolescência não sabia nada. Tudo era novidade. Desconhecia nomes de realizadores, actores, vagas e estilos. Basicamente, via tudo o que despertava a minha curiosidade nos parcos meios à minha disposição, e a partir daí comecei a construir os meus próprios referenciais e a moldar os meus próprios gostos. Comecei a construir a minha história do cinema.

Num período sem DVDs, sem televisão por cabo e com uma internet muito precoce, eram os anúncios de televisão, os trailers no início dos VHS e os dois canais de cinema de satélite que tinha em casa (o TCM e os primórdios do canal Hollywood) que fomentaram o meu processo de descoberta. Mas havia, para mim, mais um modo de descobrir um filme: através da música. E foi precisamente por aqui que cheguei à obra-prima de Alan Parker, ‘Angela’s Ashes’ (em português ‘As Cinzas de Angela'), lançada em 1999. Corria o ano seguinte, o mítico ano 2000. Tinha 15 anos de idade.


Numa Histoire(s) du Cinema anterior, sobre John Williams, referi como os primeiros CDs de bandas sonoras que comprei, com 13 e 14 anos de idade, me tinham dado a conhecer muitos filmes que eu nunca tinha visto. Quando gostava muito de uma banda sonora fazia a nota mental para ver o filme na primeira oportunidade que tivesse. E esse uso, o de ouvir bandas sonoras, foi um dos primeiros que dei àquela coisa que hoje damos como garantida: a internet.

Pouco tempo antes os meus pais instalaram uma internet muito básica em nossa casa. Era uma internet que se ligava através do telefone e que fazia aquele barulhinho enervante durante vários minutos até estabelecer uma ligação. Para além de um chat simplório com alguns colegas de turma que também tiveram a sorte de ter pais com possibilidade de instalar internet em suas casas, eu basicamente usava a internet para ir aos rudimentares sites oficiais sobre cinema descarregar ficheiros promocionais. Foi num site dedicado a Mel Brooks que descarreguei inúmeros ficheiros áudio com as melhores piadas dos seus filmes. Foi num site dedicado ao ‘Senhor dos Anéis’ que pela primeira vez vi os weblogs promocionais de Peter Jackson (quanto tempo não demoravam a descarregar!) sobre o filme que na altura estava a ser filmado na nova Zelândia: ‘The Fellowship of the Ring’ (2001). E foi através de um site dedicado a John Williams que cheguei ao site de ‘Angela’s Ashes’ e descarreguei um ficheiro áudio que revolucionou a minha vida.

Vá, não revolucionou, mas fez crescer em mim, mais uma vez, aquele fogo insaciável da descoberta cinematográfica. Era um ficheiro áudio de três minutos, consistindo da magnífica música ‘Back to America’ da banda sonora do filme, encimada pela voz off que o encerra; uma voz off que ainda hoje sei de cor. Na altura parecia um segredo muito bem guardado, um tesouro que só um cinéfilo perseverante podia encontrar. Hoje rapidamente no Youtube chegamos até ela:


Ouvir este extracto audio do filme outra vez enche-me de memórias. Eu mantive o precioso ficheirinho no computador e ouvia-o sempre que ia até lá. Era, e continua a ser, um fantástico pedaço de música e um fantástico pedaço de narração. E por isso, ‘Angela’s Ashes’, um filme que não fazia ideia sobre que tratava nem de quem era, foi imediatamente parar à minha ‘listinha’. E pouco tempo depois o destino bateu-me à porta. Fui com os meus pais à feira do livro, como fazia todos os anos. Deambulando pelas bancas como era meu costume, deparei-me com a capa precisamente de ‘Angela’s Ashes’. Nessa altura estava a passar pela literatura como estava a passar pelo cinema, embora em menor escala. Também lia várias obras avulso para descobrir estilos e autores. E a capa de ‘Angela’s Ashes', de um tal Frank McCourt, fez ressoar na minha cabeça as músicas que eu tanto gostava. O livro, dizia-me a capa, havia ganho o prémio Pulitzer em 1997 e retratava, autobiograficamente, a infância pobre do seu autor na Irlanda. Bem… porque não? Parecia interessante. E foi assim que o jovem que até então pouco mais tinha lido que obras infanto-juvenis e Agatha Christie, comprou o seu primeiro livro sério, ou pelo menos dramático.

Chegado a casa, comecei a ler o livro com o vagar com que lia livros nessa idade. Não sei se aos 15 anos tinha idade suficiente para perceber toda a dimensão desta lírica e comovente obra, mas surpreendi-me a mim próprio quando percebi que estava a gostar muito. McCourt era, ao longo do livro, uma criança e depois um adolescente como eu (o livro termina com um Frankie de 19 anos a apanhar o barco para a América), mas o seu mundo era totalmente diferente daquele que eu conhecia. Foi um abrir de horizontes.

Ia a meio do livro quando mais uma feliz coincidência aconteceu. O novo canal de cabo de cinema que tinha (que os meus pais, na sua infinita bondade, pagavam mensalmente para descodificar), e que passava os filmes recentes sensivelmente um ano depois de estarem no cinema, anunciou a estreia de ‘Angela’s Ashes’. Com a ajuda do meu mítico gravador, imortalizei uma cópia VHS dessa obra na minha colecção logo no primeiro dia em que foi exibida. Mas então deparei-me, pela primeira vez, com um dilema comum do cinéfilo. O que fazer primeiro: ler o livro ou ver o filme? No meu caso, como ia a meio do livro, decidi tentar acabá-lo. Mas os meus hábitos de leitura não eram tão regulares como são agora e à medida que os dias foram passando comecei a ficar impaciente. Numa altura em que o livro me começou a puxar mais eu, em vez de fazer um pressing para o terminar, optei para a solução mais fácil (era um miúdo!) e acabei por ver o filme.

A minha colecção pessoal das obras do universo Frank McCourt: os seus três romances autobiográficos; o filme 'Angela's Ashes' (1999) em VHS gravado da televisão; e a banda sonora de John Williams. McCourt faleceria em 2009 aos 78 anos de idade.
Senti uma espécie de guilty pleasure ao fazê-lo, especialmente depois de ter ultrapassado o ponto em que ia no livro. A tentação é sempre difícil de resistir quando se é adolescente. Mas confirmei com prazer duas coisas: que a história estava muito bem contada e que a banda sonora de John Williams era genial. E descobri com ainda mais prazer uma terceira: Alan Parker. Foi o início da minha relação de amor com o seu cinema. Depois, mais tranquilizado com o final da história, terminei o livro.

Nos anos seguintes este universo continuou a fazer parte da minha vida. Em 2001, quando encontrei a banda sonora numa loja portuguesa, não hesitei. De facto, é ainda hoje para mim uma das melhores bandas sonoras da carreira de John Williams, e um dos meus CDs preferidos. Depois comprei e li as duas sequelas literárias de ‘Angela’s Ashes’: ‘’Tis’ (publicado em 1999) e ‘Teacher Man’ (publicado em 2005). Nunca cheguei a comprar o DVD ou o Blu-ray do filme, mas a minha cópia VHS gravada da TV permanece, e continuará a permanecer, na estante.

E foi assim que, pela primeira vez na vida, tive na minha colecção pessoal o livro, o filme e a banda sonora de uma obra. Muitas se seguiriam. Mas foi aqui que tudo começou, com esta incrível história de vida de um jovem irlandês que, de uma forma completamente rebuscada, entrou na vida de um jovem português. Descobrir cinema é isto. É passar por este processo extasiante de acasos, instigados por um pedaço de música ouvido, a recomendação fortuita de um amigo, um póster que chama a atenção ou tantas outras coisas; que nos levam a uma obra que nunca ouvimos falar e que, na intimidade com a tela, se torna uma parte de nós. Hoje em dia, com a facilidade que a internet e os canais de cabo proporcionam, não tem metade da piada. Fico feliz por ter crescido numa altura em que ainda tinha. Nem quero pensar o quão excitante devia ser quando só se conseguia ver filmes antigos nas cinematecas…

Esta é a minha histoire du cinema sobre a minha primeira “tripleta”. Qual é a sua, caro leitor?

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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