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Café Society

Ano: 2016

Realizador: Woody Allen

Actores principais: Jesse Eisenberg, Kristen Stewart, Steve Carell

Duração: 96 min

Crítica: Um novo ano. Um novo Allen. É essa a inevitável segurança, o aconchegante conforto, do nosso universo cinematográfico, como o visitar de um velho amigo, que pode não nos arrebatar sempre, mas que sempre nos faz reflectir e sorrir. E este ano está já a ser um ano muito especial para os fãs de Allen. Finalmente estreou a sua primeira mini-série televisiva ‘Crisis in Six Scenes’, após um longo período de noivado entre Allen, inicialmente relutante em fazer uma série, e o todo-poderoso Amazon, com a sua persistência e os seus cheques chorudos. Mas apesar disso Allen não iria deixar de lançar o seu habitual filme no princípio do Outono. E eu não iria deixar de o ver.

Aliás, para mim, esta ida ao cinema no passado domingo teve contornos muito especiais. Já desde o início do ano, quando vi ‘Spotlight’, que não punha os pés numa sala de cinema. Todos os filmes que já critiquei datados de 2016 foram vistos no conforto do lar, meses depois das suas respectivas datas de estreia. O motivo, claro, foi o nascimento do meu filho. Mas agora que já passou algum tempo, e o rebento está, graças a Deus, mais crescidinho e espadaúdo, eu e a minha esposa finalmente decidimos deixá-lo ao cuidado de um familiar por um par de horas, para regressarmos a um cinema e alimentar a sempre presente paixão. Já havíamos falhado o novo Tornatore. Já havíamos falhado o novo Clint. Mas agora Allen não nos ia escapar.

O passado recente de Allen tem revelado uma nova faceta bastante interessante do seu trabalho, quando tudo parecia que já tinha sido visto e revisto na sua obra. Depois da sua bem-sucedida fase mais negra do cinema de ‘crime’ no final da década de 2000, os seus últimos filmes, com as habituais excepções cómicas (‘To Rome with Love’, 2012) ganharam uma maturidade que antes (geralmente) não tinham. Como escrevi na crítica a ‘Irrational Man’, o seu filme de 2015: “o seu olhar sobre a vida, as suas constantes dúvidas existenciais, que até há pouco tempo tinham sido reflexões egocêntricas, divididas entre o cómico e o dramático, começaram a ganhar uma dimensão universal. É como se Allen, agora a poucos meses de completar 80 anos de idade, estivesse a reflectir sobre o que há depois da vida, e sobre o legado que deixamos para trás”. Mais ainda, Allen, o nervoso neurótico obsessivo inconformado, que sempre foi um incondicional romântico preso contudo à inevitabilidade da realidade e da existência, pareceu de certa forma largar mão desse peso, encarando o futuro e o que está para vir com alguma esperança e uma deliciosa ponta de magia.

Em ‘Midnight in Paris’ (2011), em ‘Magic in the Moonlight’ (2014) e até em ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ (2010), pelo menos na visão da personagem de Geema Jones, o tom era assim, esperançoso, dando um novo sabor às filosofias de vida características do universo Allen e oferecendo conforto e sorrisos ao espectador sem necessitar necessariamente de humor. Contudo, houve sempre uma contradição no trabalho de Allen e uma inerente desconfiança em aceitar as dádivas da vida. O cosmos equilibra-se, uma acção tem uma reacção e o bom vem sempre acompanhado do mau. Contrariando esta visão mais esperançosa, em ‘Blue Jasmine’ (2013) e mais recentemente em ‘Irrational Man’ (2015), que me chocou um pouco por não ter uma única cena cómica (vindo de quem vem), Allen parece sentir-se obrigado a recordar que existem outras, mais negras e mais trágicas, perspectivas, consequências das más escolhas (intencionais ou fortuitas) que somos forçados a fazer ao longo dos nossos percursos.

E de certa forma, ‘Café Society’ rege-se por este mesmo perfil. No fundo é um filme reflexivo, nostálgico, que dá muitas voltas no tom mais pausado típico do Allen pós Allen (ou seja, desde que deixou de electrizar os filmes com a sua presença), para falar de um tema que acaba por ser bastante simples e bastante universal: uma história de amor perdido, um “e se” relacionado com aquilo que os americanos chamam “the one that got away”, ou seja, aquele amor que deixamos escapar. Tal como nos últimos filmes de Allen, já não é uma visão de um neurótico querendo agarrar a vida e tendo sentimentos contraditórios em relação ao futuro. É uma visão de um homem que já viveu a vida e que reflecte como as decisões passadas afectaram a forma como viveu, que pondera se a sua vida foi bem vivida, se valeu a pena.

Portanto parece ser inteiramente justo que, após tantas voz offs feitas por outros actores, desde que Allen começou a usar o artifício recorrentemente há uma década (sempre o critiquei por isso), finalmente se tenha decidido (já não era sem tempo) em usar a sua própria voz, mais velha, mais cansada, para narrar este filme. No enquadramento que abre o filme, numa festa de piscina na mansão luxuosa de Hollywood do agente das estrelas Phil Stern (Steve Carell), a primeira coisa que notamos não é o design de produção, nem o modo como a câmara se mexe destramente para captar o ambiente. É precisamente a voz de Allen. A voz off é apenas narrativa, mas no fundo escolhemos acreditar (ou pelo menos eu escolho) que é como se fosse uma reflexão de um velho homem a recordar o grande amor da sua vida que lhe escapou há muitos, muitos anos, numa outra era, num outro tempo (Diane Keaton talvez?). E portanto parece inteiramente justo também que essa outra era, esse outro tempo, seja a era preferida de Allen, aquela onde ele desejaria ter vivido: os anos 1930. A era dos reis do jazz, a era da Hollywood clássica, a era dos gangsters na Broadway.

Após nos apresentar Stern como um agente sempre em movimento, que gosta de uma boa festa e que adora contar aos outros as celebridades que conhece (Carrel no seu modo dramático; há humor neste filme, mas nunca provém dele), o filme muda de enfoque para o seu sobrinho, Bobby (Jesse Eisenberg). Já houve muitos actores a tentar replicar o trejeito-Allen, incluindo actores jovens (Jason Biggs, John Cusak), mas nenhum chegou tão perto da perfeição neurótica desejada como Eisenberg, no seu segundo Allen após ‘To Rome with Love’. O filme pertence-lhe, e ele está à altura do desafio, um mini-Allen com todos os tiques necessários que lhe surgem de forma natural e credível. É só ver o seu hilariante encontro desajeitado com uma prostituta numa das suas primeiras cenas. Genial. A apontar um defeito, diria apenas que tem uma voz demasiado anasalada que não consegue atingir o ritmo metralhado dos dias gloriosos do seu mentor.

Bobby provém de uma família judia, bastante caricata, de Nova Iorque, que recorda a de ‘Radio Days’ (1987), o semi-autobiográfico filme de Allen passado na mesma época e que detém inúmeras semelhanças estruturais com este filme (incluindo por exemplo a festa de ano novo com que ambos os filmes terminam e a voz off de Allen). Bobby anseia trocar a Big Apple pelo glamour de Hollywood, pedindo assim ao tio que lhe dê um emprego na sua agência. Stern, sempre ocupado, dá-lhe um emprego como moço de recados e despacha-o para as mãos da sua jovem secretária, Vonnie (Kristen Stewart). Stewart está aqui menos enjoada e mais madura do que é normal, mas mesmo assim não está, nem de perto nem de longe, ao nível de Eisenberg. Outra coisa que me custa a acreditar é que seja tida como uma mulher que com um olhar leve os homens à perdição. Admitamos, é uma actriz sem grande charme e sem grande chama, independentemente do seu talento, portanto não me parece o casting mais acertado.

A primeira parte do filme prende-se com a descoberta de Bobby dos meandros da cidade dos Anjos e com a sua crescente relação com Vonnie, com quem passa cada vez mais os seus tempos livres, muito embora ela o avise que já tem um namorado, que mais tarde prova ser um homem casado. Uma das coisas que surpreende é a negação de Allen do cliché glamoroso das estrelas de Hollywood, muito ao contrário, por exemplo, daquilo que os irmãos Coen fizeram em ‘Hail Caesar’ (2016). Muitos nomes famosos são referidos em conversas (ser cinéfilo ajuda a perceber algumas pequenas piadas), mas nenhum é realmente visto (Allen respeita-os demasiado para isso). E não se vai ao interior de um único estúdio nem a um único bastidor nem a um único local de filmagem. A sua visão de Hollywood é muito mais realista; é “apenas” um panorama para a desabrochante história de amor entre dois jovens para quem essa Hollywood de sonho é apenas isso: um sonho distante apesar de tão perto. Para eles vale mais passear pelas ruas de palmeiras, pela beira-mar ou sentar-se numa das antigas salas de cinema ou num pequeno restaurante, do que propriamente conviver com a elite, com a ‘sociedade do café’ que quer ver e ser vista nas várias festas em mansões de Beverly Hills e nos clubes nocturnos pelo qual o filme se vai movimentando.

Esse íntimo no meio do grandioso é mais um grande toque clássico de Allen, muito embora o desenrolar da história de amor, primeiro a dois, depois a três (quando se descobre que é o próprio tio de Bobby o tal homem casado que está a ter um caso com Vonnie), acabe por ser morosamente circular. Por isso mesmo, Allen sente uma necessidade, nada subtil, de entrecruzar esta história com a do irmão de Bobby, Ben (Corey Stoll), um gangster em ascensão em Nova Iorque. Tal como em ‘Bullets over Broadway’ (1994) este entrecruzar de arte com gangsters é puramente humorístico. Mas a verdade é que, apesar destes momentos serem hilariantes, imbuídos de um humor negro que Allen tão bem sabe fazer, realmente não se adequam muito à estrutura do drama romântico principal. Serão sempre, até ao final do filme, momentos aparte, com o único intuito de consumir minutos e arrancar risadas (boas risadas!) ao espectador. Eram necessários tamanhos momentos de distracção, pergunto eu, apesar de tão engraçados? Sinceramente não creio, especialmente porque praticamente nunca têm consequências para a relação entre Bobby e Vonnie, que é o cerne do filme. Para mim o melhor destes apartes acaba por ser o contraste fotográfico que Allen e o director de fotografia Vittorio Storaro (o de ‘Apocalipse Now’, ‘Last Emperor’ ou ‘Novecento’) concebem entre uma pálida, granulosa e mais suja Nova Iorque e uma incrivelmente solarenga, extremamente colorida e nítida Los Angeles.

O momento de viragem ocorre no final do primeiro acto quando Vonnie tem de escolher entre Bobby, que a ama verdadeiramente, e o seu tio, que quer deixar a mulher para casar com ela. Vonnie escolhe o tio, por quem também sente paixão, mas principalmente pela segurança que Bobby não lhe pode ainda oferecer e pelo passaporte para a ‘sociedade do café’. Destroçado, Bobby regressa a Nova Iorque, onde vai tomar conta de um clube nocturno para o irmão, que lentamente começa a ganhar popularidade e reputação, fazendo então com que ele próprio ascenda a uma posição importante e que o seu clube se torne o sítio mais badalado da sociedade nova iorquina.

Os anos passam, as pessoas mudam (ou não mudam?), eventos (bons e maus) acontecem que limam ainda mais as personalidades das personagens, e um dia os espectros do passado regressam. Quando Vonnie e Bobby se re-encontram uns anos depois em Nova Iorque, cada um com muita vida já vivida, o que irá acontecer? Irá a chama do seu antigo amor, nunca realmente consumado, regressar? Ou viverão fiéis às escolhas do seu passado? Num tom de tragicomédia (o único tom em que Allen se sente confortável), a segunda parte do filme é uma sentida reflexão sobre estes temas, e o filme torna-se muito mais interessante, mesmo que realmente nunca exceda esta simples premissa (a não ser nos apartes das história de gangsters que mais cedo ou mais tarde vão levar Ben a ‘enfrentar a música’).

O melhor do filme está precisamente, não no retrato da época de 1930 (na realidade, esta história podia passar-se em qualquer década), não no enquadramento da Hollywood clássica (que é apenas contexto), não nos momentos de comédia (o filme tem bastantes, mas quase sempre relacionados com a história secundária), mas nesta simplicidade emocional. Na primeira metade do filme essa simplicidade não se vislumbra, e o filme anda algo perdido, demorando demasiado tempo a chegar ao seu propósito (um mal recorrente dos mais recentes filmes de Allen). Mas na segunda parte, aos poucos, vai-se enraizando no espectador, até ao momento em que nos apercebemos de um facto incrível. Allen, com 81 anos de idade, fez o impensável: concebeu uma madura, lírica e emocionalmente tocante história de amor jovem, com dois actores jovens da moda. Eisenberg e Stewart não são propriamente Allen e Diane Keaton, mas com a subtileza que caracteriza os bons dramas de Allen (afinal as suas inspirações são Fellini e Bergman), e esquecendo a sub-plot dos gangsters, este arranca do par uma pequena mas incrivelmente interessante alegoria amorosa, altamente identificável, sobre as decisões que tomamos ao longo da vida. Todos sabemos que Allen é um exímio argumentista. Mas aqui a riqueza está, não naquilo que é dito, mas naquilo que é sentido; nas expressões, na filmagem, no que está entre as linhas.

Tenho sentimentos contraditórios em relação a ‘Café Society’. Não é o melhor filme de Allen dos últimos tempos (esse diria que é ‘Blue Jasmine’), mas é bastante melhor que o último, ‘Irrational Man’, porque é mais completo, tem um propósito mais claro e os arcos das personagens estão mais bem trabalhados, muito embora demorem algum tempo a concretizarem-se. Não apreciei esta construção inicial, nem a forma como a história secundária consome demasiado tempo do filme sem ter grandes interligações ao triângulo amoroso principal. Se o objectivo eram as risadas, Allen podia ter chegado lá de outra forma. Já as interpretações no geral são ricas. Steve Carrell (substituindo Bruce Willis, despedido nos primeiros dias de filmagens) demonstra vulnerabilidade que ajuda a tornar a sua personagem menos unidimensional. Parker Posey (de quem gostei muito em ‘Irrational Man’) repete a boa dose como uma amiga rica de Stern que se torna uma das melhores amigas de Bobby. E até Blake Lively, no seu pequeno papel, tem brilho, esse que infelizmente, na minha perspectiva, falta a Stewart, o elo mais fraco desta cadeia. É esse um dos elementos que mais lamento neste filme; Stewart não tem o apelo nem a força para ser uma mulher por quem Bobby suspire a vida toda. Allen filmou Diane Keaton, Mia Farrow, Barbara Hershey, Charlize Theron, Scarlett Johansen, Emma Stone e todas elas electrizavam a celulóide com o seu calor. Não Kristen Stewart.

‘Café Society’ é vintage Allen. É um filme simpático, extremamente fluído, que se vê maravilhosamente, bem realizador, incrivelmente fotografado, (quase sempre) bem actuado, que nos faz rir mais do que os filmes recentes de Allen graças a uma trama secundária de humor-gangster (que contudo o desequilibra), e que no fundo é uma lírica história de amor, uma lírica história de vida. Neste filme, quase paradoxalmente, é a exuberância conscientemente anárquica do estilo Allen e a facilidade com que ele leva avante a mistura de vários estilos que está a mais. Reduzido ao âmago das duas personagens principais, bem que poderemos ter aqui uma das mais pungentes histórias que Allen jamais filmou. Mas demasiado frequentemente a beleza delicada da flor argumental que produz é abafada pelo ostensivo todo. Precisava mais espaço para desabrochar. Mas provavelmente, Allen não quereria que tal acontecesse, e nós temos que o respeitar. Para o ano há mais. 

1 comentários:

  1. O Eisenberg e a Kristen Stewart já fizeram dois filmes juntos onde eram uma casal também. De certeza que Allen/Produção, aproveitou de alguma forma isso.

    Mas concordo que a Kristen Stewart foi o elo mais fraco do filme, falta-lhe chama, mas atenção que não é má atriz.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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