Realizador: Ethan Coen, Joel Coen
Actores principais: Josh Brolin, George Clooney, Alden Ehrenreich
Duração: 106 min
Crítica: Quando ‘Hail, Caesar!’, o novo filme dos irmãos Coen (o último já havia sido ‘Inside Llewyn Davis’ em 2013) chegou aos cinemas mundiais entre Fevereiro e Março deste ano, tive um bom pressentimento. Esta é geralmente a época morta do cinema americano, em que os filmes que não conseguiram cativar a crítica durante as épocas de prémios e que falharam as nomeações para os Óscares são literalmente “despejados” nas salas sem grande atenção mediática. Portanto, era curioso que o mais recente filme dos irmãos, que desde a sua grande vitória em 2007 com ‘No Country for Old Man’ estiveram sempre na alta-roda das cerimónias, merecessem ou não (‘Burn After Reading’, 2008; ‘A Serious Man’, 2009; ‘True Grit’, 2010; e ‘Inside Llewyn Davis’ foram todos nomeados para Melhor Filme, ou nos Óscares ou nos Globos de Ouro), estivesse fora deste círculo.
O trailer, levando-nos para a Hollywood dos anos 1950, com um tom saudosista e a aura peculiar pelo qual os Coen são famosos, parecia indicar que finalmente haviam abdicado do cinema artisticamente mais sério que tem caracterizado a sua produção recente para regressar às origens. Se isso fosse verdade, justificaria a sua ausência nas grandes cerimónias, mas para mim seria óptimo, já que eu sempre fui mais fã dos velhos irmãos Coen. Aqueles que faziam filmes com uma irreverência quase infantil, apaixonados pelo seu próprio universo e pelo seu próprio estilo de humor, mas também pela arte do cinema. Aqueles cujos filmes entrelaçavam uma técnica irrepreensível com astutas referências ao cinema da velha guarda. Aqueles que nunca se importaram com os críticos, as convenções ou com uma pseudo-arte. Aqueles que fizeram obras como ‘Raising Arizon’ (1987), o genial ‘Miller's Crossing’ (1990), ‘Barton Think’ (1991), o underrated ‘The Hudsucker Proxy’ (1994), o fantástico ‘Fargo’ ou o incrível ‘Oh Brother Where Art Thou’ (2000) – ainda a melhor performance de sempre de George Clooney.
Mas nunca consegui realmente ligar-me aos irmãos Coen mais recentes. Depois de um período mais fraco no início da década de 2000 (com obras como ‘Intolerable Cruelty’ ou ‘The Ladykillers’), tiraram ‘No Country’ da cartola e subsequentemente deixaram-se, na minha opinião, levar pela onda sua própria lenda, reputação e estilo. Os irmãos Coen de repente parecem ter perdido a capacidade de criar obras surrealistas sustidas na força, no brilhantismo e na inteligência das suas personagens, situações e humor. Os seus filmes abrandaram o passo propositadamente para poderem ser ponderados (as metáforas religiosas e filosóficas tornaram-se uma constante), o que não seria necessariamente mau se não tivessem perdido também a sua irreverência e a sua chama, precisamente porque a dinâmica das suas histórias e o ritmo dos seus característicos diálogos deixaram de vibrar.
Apesar da indiscutível mestria visual que ainda possuem, apesar de ainda enriquecerem os seus filmes com cativantes momentos tragicómicos e actores que dominam a sua arte, os seus propósitos têm-se tornado cada vez mais obscuros e difíceis de seguir, as suas personagens muito mais introspectivas e as suas morais (e até piadas) muito mais privadas. É como se os irmãos agora fizessem, mais do que nunca, os filmes só para si próprios e se tenham, algures pelo caminho, esquecido do espectador. Filmes como ‘A Serious Man’ e ‘Inside Llewyn Davis’ parecem andar em círculos, perdidos no universo Coen, sem realmente saberem o que querem ser ou dizer. A essência do seu estilo ainda existe e ainda é sublime. Mas parece ter completamente subjugado aquela que era a melhor característica dos Coen: a capacidade de contar uma boa história e contá-la bem. Os seus filmes mais recentes terminam com o tom amargo de terem ficado apenas meio-formados, sem que nada com grande significado (ou até de concreto) realmente se materialize, sob máscaras de pseudo-alegorias.
À primeira vista, como disse, parecia que ‘Hail, Caesar!’ iria oferecer-nos uma grande viagem no tempo à origem dos Coen. Mas fiquei genuinamente triste ao aperceber-me que afinal, com o desenrolar do filme, tal não se concretiza. ‘Hail, Caesar!’ é fiel ao estilo que os irmãos Coen cultivaram nos últimos anos, e cai precisamente nas mesmas infelizes teias formais a que me referi no parágrafo anterior. O filme, tal como todos os recentes dos irmãos, parece ser demasiado inteligente e intrincado para o seu próprio bem, já que no final se percebe claramente que não consegue fazer jus à sua estética de fachada. Nunca existe grande profundidade nas personagens (embora pareça haver essa tentativa) e o filme nunca adquire um propósito muito claro, nem na linha argumental, nem na moral, nem na gestão das personagens. E, o mais crítico, o filme arrasta-se ao longo de 100 minutos sem energia quase nenhuma – incrível visto estarmos a falar dos irmãos Coen.
‘Hail, Caesar!’ retrata um dia (ou mais precisamente 27 horas) na vida de Eddie Mannix (Josh Brolin). Inicialmente, Eddie parece ser o resolve-tudo do estúdio Capital Pictures (o mesmo de ‘Barton Fink’), já que aparece mesmo a tempo para evitar que uma jovem estrela tire umas fotos comprometedoras. Mas logo a seguir percebemos, algo incredulamente, que é o próprio director de produção do estúdio, que toma a si o cargo de gerir e coordenar não só os filmes, mas também as estrelas (pela lógica não deveria mandar um ‘capanga’ fazer o seu trabalho sujo?!). Isso faz com que tenha sempre longas horas de trabalho, negligenciando a sua família, e muitas dúvidas em relação à sua existência. Mesmo assim, sentimos que Eddie tira enorme prazer do trabalho que faz, embora Brolin não seja muito expressivo. Aliás, Brolin (no seu terceiro filme para os Coen) representa na perfeição a mudança no seu estilo. É muito mais calmo e introspectivo, e quando tenta acelerar o ritmo nunca consegue chegar aos calcanhares das velhas estrelas dos Coen, como o recentemente falecido Jon Polito, Frances McDormand (que tem um pequenino papel como uma editora) ou o Clooney dos velhos tempos. E essa letargia estende-se por todo o filme, que nunca a consegue (nem parece querer) sacudir. A mesma letargia que existe na voz off narrativa de Michael Gambon e que embala todo o filme para o marasmo da sua arrastada existência.
Eddie tem vários problemas que o perseguem e que tem de resolver ao longo destas 24 horas. O primeiro é um dilema pessoal, visto que que tem uma proposta em cima da mesa para assumir o cargo de gestor de uma grande companhia de aviação, com horário e salário muito melhores. Mas isso implicaria deixar de ser aquilo que entendemos que gosta de ser: o “paizinho” das celebridades e o homem que faz tudo, dá tudo, para que os filmes; quer os maus (só para fazer dinheiro) quer os bons (os importantes, os com significado) possam ser terminados. Os restantes problemas estão relacionados com o dia-a-dia do estúdio, e constituem uma excelente oportunidade para os Coen não só mergulharem nas suas costumeiras, e muitas vezes obscuras, homenagens à história do cinema (que vão desfilando pelo ecrã com classe mas que praticamente só o conhecedor de cinema conseguirá discernir), mas também para puxarem da sua extensa rede de contactos e contratarem estrelas de topo para os papéis secundários, sem que isso necessariamente enriqueça a história ou o filme.
DeeAnna Moran (Scarlett Johansson) é uma espécie de Esther Williams que está grávida fora do casamento, algo que pode estragar a sua reputação e imagem de menina-bem aos olhos dos fãs. Hobie Doyle (Alden Ehrenreich, o próximo Hans Solo e surpreendentemente a melhor coisa que este filme contém), é um cowboy cantante que o estúdio está, sem sucesso, a tentar transitar para os dramas sérios, para exaspero de Laurence Laurentz (uma espécie de Lawrence Olivier) interpretado por Ralph Fiennes em modo ‘The Grand Budapest Hotel’. Por seu lado, Burt Gurney (Channing Tatum) é uma espécie de Gene Kelly que poderá ser mais do que aparenta. E por fim temos a grande estrela da companhia: Baird Whitlock (um extremamente apagado e agastado George Clooney). Whitclock está neste momento a filmar a grande produção do ano: ‘Hail Caesar – A Tale of the Crist’ (uma mistura de ‘Quo Vadis’ com ‘Ben-Hur’), mas acaba por ser raptado por um bando de comunistas que procuram um resgate avultado para financiar a sua causa (destaque para o cameo de Wayne Knight). E depois há ainda as gémeas Thacker (ambas interpretadas por Tilda Swinton), colunistas de celebridades sempre à espreita para desencantar o próximo escândalo…
Supostamente o filme deveria ser como, ao longo deste dia, Eddie vai gerindo todas estas situações e como isto afecta a sua vida e a grande decisão que tem de tomar. Mas não é bem isto que acontece. Muito facilmente, o filme perde-se na homenagem que os irmãos Coen querem fazer aos vários géneros de filmes e aos vários artistas que proliferaram nesta década. Não estou a dizer que é enfadonho ver as longas cenas de bailado aquático, dança à la Gene Kelly, western ou épico bíblico que estão a ser rodadas e que os Coen exibem com excitante detalhe. Pelo contrário, para o historiador de cinema é uma dádiva nostálgica incrível (daquelas que só os Coen sabem fazer), bem como é também bastante engraçado a forma como brincam com os lugares comuns que caracterizavam a fachada das personalidades e da própria forma de funcionamento do sistema de estúdios. Mas a verdade também é que este enfoque vai progressivamente fazendo a história central perder força e interesse.
Isto é mais premente porque o foco do filme muda constantemente entre a gestão emocional de Eddie e a linha argumental do rapto, sem que necessariamente ambas estejam relacionadas. Aliás, esse parece ser um problema transversal do argumento. O filme apresenta de forma elaborada uma série de personagens, mas algumas apenas existem à parte da história principal, com somente Eddie como elo comum. A maioria vai de uma maneira ou de outra envolver-se na história do rapto, o que faz sentido e justifica esse tempo dedicado à sua construção. Então porque não as restantes, que assim funcionam apenas como 'enchimento'? Ao mesmo tempo, a concepção de muitas das personagens é mais profunda e sua presença no filme mais interventiva que a do próprio Eddie (a de Doyle o exemplo mais premente), mas no final os seus arcos ficam em suspenso e não são completados, ao contrário precisamente do de Eddie, que é. As personagens convergiram para este ponto no tempo e no espaço que os Coen conceberam, mas não parecem ter existência para além de cumprir o seu papel predestinado no momento certo.
O próprio rapto em si, e a sua extremamente morna resolução (a cena à noite faz relembrar os estilizados planos morosos do remake dos Coen de ‘The Ladykillers’), acaba por ser também um mini-fiasco, especialmente tendo em conta que os Coen já foram os mestres do rapto tragicómico (ver ‘Raising Arizona’, ‘Fargo’ ou ‘The Big Lebowski’). E o mesmo comentário se pode fazer em relação ao restante filme. Há uma boa ideia por detrás (outra coisa não seria de esperar) mas o filme nunca arranja a melhor maneira de se expressar e não parece ter muita convicção. Claro que há momentos de humor bastante bem conseguidos (como quando Eddie escrutina o guião de ‘Hail, Caesar!’ com dignitários de várias religiões ou quando Doyle tenta filmar o seu drama). Claro que há algumas “surpresas” relativamente interessantes. Mas é tudo muito desgarrado, como se as rodas estivessem a girar mecanicamente e ninguém realmente soubesse muito bem como agir. Clooney, a anos-luz das suas interpretações anteriores para os Coen, é um exemplo peremptório. Surge praticamente “para a piada” num papel que não tem uma pinga de profundidade, que não parece ter sido minimamente trabalhado e que no final acaba por ter pouca consequência para a história. Foi um longo desvio dos Coen; a fachada pela fachada, a fachada pela private joke escondida pela fachada. E de certa forma todo o filme se rege assim.
Por estas razões, ‘Hail, Caesar!’ é uma estranha ilusão cinematográfica, uma peça que não pode ser classificada como surrealismo irreverente pelo simples motivo que não consegue sê-lo, apesar de tentar. Visualmente, estamos perante uma obra de ambientes estilizados brilhantemente filmada, como se ela própria fosse oriunda dos anos 1950, mas a exagerada artificialidade que advém de conceber esse estilo nos dias de hoje com clara autoconsciência, aliada à passada morna de um telefilme e à falta de convicção e ritmo, deitam tudo a perder. O que pretende ser irreverente ou humorístico acaba por ser forçado ou incongruente. Sinceramente, há cenas em que simplesmente não se entende o propósito dos Coen. A situação é absurda e estilizada porque é metafórica? Ou é tudo uma grande piada? Ou é simplesmente o juntar de várias ideias, sem continuidade? Independentemente de tudo o que promete e das voltas e reviravoltas que os Coen gostam de dar, esta falta de continuidade nos arcos das personagens e a sensação do término em suspenso para a maior parte delas formam um grande vazio no cerne deste filme.
Algures na internet, um crítico comparava ‘Hail, Caesar!’ com ‘The Grand Budapest Hotel’, por partilharem o tom, a estética e até alguns dos actores. Concordo no sentido em que Wes Anderson é agora aquilo que os Coen outrora já foram (embora com um pouco mais de requinte mas menos domínio da história do cinema), enquanto os próprios Coen parecem ter sido sugados pela engrenagem da elite ‘artística’ de Hollywood. Ou seja, criam arte que tenta tanto, tanto, tanto ser arte que se esquece da arte que queria ser em primeiro lugar. Mas nesta constatação poderá estar a salvação de ‘Hail, Caesar!’, de uma forma tão subtil que ou é uma genial visão introspectiva dos realizadores ou é pura invenção da minha parte. De repente, comecei a perguntar-me se os irmãos Coen não estariam a partilhar com o público que têm a perfeita consciência daquilo que se tornaram, e se o filme não estaria a funcionar como um desabafo, uma forma de autojustificarem o estado do seu actual cinema.
Isto porque ‘Hail, Caesar!’, visto de um determinado ponto de vista, acaba por ser uma carta de amor à história do cinema, uma homenagem sentida aos vários géneros e às várias fases de produção de um filme (onde, de uma misteriosa maneira, todos os problemas se revolvem), e uma forte reflexão pessoal (com a presença de vários motivos religiosos, como em ‘A Serious Man’) sobre a essência da paixão pelo cinema e pelo soberbo escape ilusório que proporciona. A devoção de Eddie ao seu emprego, mesmo apesar do desgaste físico e emocional, mesmo tendo a perfeita consciência (na sua cara inescrutável e constante ao longo do filme) que a seriedade das obras e das estrelas que cria são apenas uma ilusão que tanto trabalho dá a conceber, é, sem dúvida alguma, a devoção dos próprios Coen. E por isso as personagens secundárias nesta história, que é a sua história, os actores e os técnicos com que trabalham, vêm e vão, mudam e têm novos problemas para resolver, enquanto os filmes permanecem, eternos. E por isso é que o filme termina sem terminar, porque o futuro cinematográfico dos Coen é um livro aberto, pode seguir qualquer rumo e eles não estão a pensar ir a lado algum…
Seria bom pensar nesta interpretação. Seria bom pensar que esta história teria tal nuance. E não é preciso puxar muito pela imaginação para especular que os irmãos Coen de há vinte anos fariam uma obra-prima com este material. Contudo apesar da mensagem que poderá estar subjacente a ‘Hail, Caesar!’ (agora é uma questão de interpretação), os novos (mais velhos) irmãos Coen já não têm esse talento, e aquilo que está claro como água no primeiro plano deste filme é mais difícil de digerir. ‘Hail, Caesar!’ reforça o estilo artisticamente desgarrado, introspectivo e excessivamente privado que o seu cinema se tornou. Pode ser uma semi-humorística pseudo-sátira aos meandros de Hollywood. Pode ser uma nostálgica "trip down memory lane", com breves rasgos de irreverência surrealista à la Coen. Mas no fundo, no fundo parece um telefilme sem faísca (nem na história, nem nas actuações), é constantemente inconstante, a história está em todo o lado e em lado nenhum e, tudo somado, é desinteressante.
É desinteressante porque Eddie e as restantes personagens são feitas para os Coen, não para o espectador. É desinteressante porque o potencial da história nunca é explorado (veja-se o caso do rapto) em prol de uma reflexão introspectiva que também nunca convence. ‘Hail, Caesar!’ é um filme morno, que estagna entre a homenagem ao cinema, a ponderada reflexão filosófico-religiosa e o humor surrealista dos Coen. Quer tudo e acaba com pouco. Os Coen podem ter ganho porque mergulharam durante meses num universo nostálgico que adoram. Mas o espectador perde porque só tem o privilégio de assistir ao inconstante produto final. Parece-me injusto.
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