Realizador: Charlie Kaufman
Actores principais: Philip Seymour Hoffman, Samantha Morton, Michelle Williams
Duração: 124 min
Crítica: Quando foi anunciado que Charlie Kaufman iria lançar um filme realizado por si, o comum dos cinéfilos teve a certeza absoluta de que esse filme poderia ser tudo, absolutamente tudo, menos tudo aquilo a que estamos habituados a ver no cinema.
Não é que Kaufman tenha tido um começo muito auspicioso na sétima arte; começou por escrever sketches de comédia para vários shows televisivos. Mas de repente, um argumento que supostamente escreveu nas horas vagas foi transformado pelo produtor Steve Golin e pelo realizador Spike Jonze num dos filmes mais inventivos do final do século XX: ‘Being John Malkovich’ (1998). E logo de seguida Kaufman provou que este filme não era um caso isolado na sua prolífera imaginação. As personagens incrivelmente ‘fora’ mas incrivelmente humanas, a mistura bizarra e complexa entre realidade e ficção, as enormes ramificações emocionais e psicológicas das suas odisseias argumentais tornaram-se uma norma fora da norma, um universo completamente anti-convencional em plena Hollywood que inúmeros tentaram imitar, sem conseguir. ‘Adaptation’ (2002) é outra obra-prima do surrealismo cinematográfico americano e ‘Eternal Sunshine of the Spotless Mind’ (2004), que lhe valeu o único Óscar de Melhor Argumento que conseguiu até hoje, já se tornou, em pouco mais de uma década, um dos grandes filmes de culto desta geração, embora pessoalmente ache que seja o menos conseguido desta trilogia argumental.
Ao longo desses anos, como um estudante de liceu e nos primeiros anos da faculdade, vivi, como muitos outros, um período de excitação relativamente aos argumentos de Kaufman, e à forma exímia como concebeu um universo cinematográfico tão próprio (é sempre um feito notável quando uma única pessoa consegue criar um novo estilo de cinema). Como muitos outros, fiquei fascinado com a forma peculiar como Kaufman conseguia entrecruzar sonhos e realidade, pensamentos e esperanças, a vida comum e os limites da imaginação, e envolver tudo isto em contos morais modernos, metáforas definitivas sobre a existência humana no desabrochar do século XXI.
Então, quando Spike Jonze (que havia realizado quer ‘Being John Malkovich’ quer ‘Adaptation’) abandonou a produção do novo argumento de Kaufman, ‘Synecdoche, New York’ (em português ‘Sinédoque, Nova Iorque’), para poder ficar a cargo da realização daquilo que viria a ser, na minha perspectiva, a sua grande obra prima: ‘Where the Wild Things Are’ (2009), foi o próprio Kaufman que assumiu a responsabilidade do filme. E se, como comecei por dizer, o comum dos cinéfilos se apercebeu imediatamente que esse filme testaria os limites do invulgar, ainda mais expectante fiquei quando o famoso crítico Roger Ebert chamou ao filme a melhor obra cinematográfica da década de 2000. Seria mesmo?
Bem, eu acabei por ver o filme algum tempo depois (esta crítica, inédita em EU SOU CINEMA, é baseada nas minhas notas alargadas da altura), mas a verdade é que fiquei extremamente desapontado. Admito contudo que poderá não ter sido propriamente culpa do filme. Ou melhor, este produto quer do Kaufman escritor já veterano, quer do Kaufman realizador estreante (e todos sabemos como realizadores estreantes gostam de testar os limites da sua arte – só em filmes subsequentes é que jogam mais pelo seguro) é tão profundo em termos psicológicos, tão intrincado na megalomania da sua metáfora, tão complexo na sua arte, que se torna difícil abarcar todo o espectro desta criação. O mesmo se passou três anos depois, por exemplo, com ‘Tree of Life’ (2011) de Malick, um produto de expressão artística tão intenso que o espectador praticamente fica com falta de ar ao tentar reagir emocionalmente às imagens. Mas se, apesar de tudo, adorei ‘Tree of Life’, porque consegui encontrar o ponto de contacto para onde pude verter todos os meus sentimentos, o mesmo não me aconteceu quando visionei ‘Synecdoche, New York’. Com 26 anos de idade na altura, era talvez demasiado novo para um filme desta natureza. Ou seja, talvez ainda não tinha bagagem emocional suficiente na minha vida para me permitir identificar ou conectar com a moral desta história. Ou talvez não estava com a predisposição ideal para o seu conteúdo emocional quando o vi. Ou então, muito simplesmente, talvez o filme seja demasiado intelectual para as minhas pobres capacidades. Não sei a razão, mas a verdade é que nunca senti o clique para me relacionar com este filme, quer ao nível da razão quer da emoção.
‘Synecdoche, New York’ conta a saga de vida de Caden Cotard (o recentemente falecido Philip Seymour Hoffman naquela que bem poderá ser a grande interpretação da sua carreira), um neurótico e hipocondríaco escritor e director teatral que, quando o filme abre, acabou de ter um grande sucesso e recebeu um prestigiado prémio financeiro para poder montar a sua peça seguinte. Determinado em fazer a definitiva peça de teatro assente nos princípios do realismo, decide levar esse conceito ao extremo, levando então actores e equipa técnica para um massivo armazém em Manhattan, onde réplicas de tamanho real dos quarteirões da cidade estão já a ser construídos. O objectivo é criar a peça mais fiel à vida possível, para assim chegar realmente à essência da vida.
Cotard baseia as personagens da sua peça em pessoas que conhece e não vai descansar até ter reproduções perfeitas da vida real. Os seus amigos, as pessoas do seu passado, mas também as pessoas do seu presente, ou seja, as próprias pessoas que trabalham na peça, terão um respectivo actor a representá-las. No limite, há também um actor, Sammy (interpretado por Tom Noonan), que fará do próprio Cotard, uma réplica que se torna tão perfeita que irá deixar marcas profundas neste.
Este percurso sinuoso e obsessivo de criação da peça vai-se entrecruzando com o retrato complexo da vida pessoal de Cotard, maioritariamente expresso, como não podia deixar de ser, por um conjunto de relações com membros do sexo oposto. Cotard vive atormentado pelas memórias do seu primeiro casamento com Adele (Catherine Keener), que após o divórcio foi viver com a sua filha Olive (Robin Weigert em adulta) para junto de uma amiga na Alemanha, Marie (Jennifer Jason Leigh). O seu segundo casamento com uma das actrizes da peça, Claire (Michelle Williams) está a ir pelo mesmo caminho, e resultou numa segunda filha, Ariel, deficiente (Daisy Tahan). Já o seu caso com a sua secretária Hazel (Samantha Morton) está a ser posto em causa pelo seu homólogo na peça. Há ainda a psicóloga Madeleine (Hope Davis), e outra actriz veterana, Millicent (a grande Dianne Wiest) que poderá estar disposta a suportar o pesado fardo de comandar a montagem da peça.
Há medida que os anos, e mais tarde as décadas passam, e Caden, como todas as restantes personagens perdidas no gigantesco armazém e alheadas da cidade lá fora, envelhecem, as barreiras entre a realidade e a ficção, entre os cenários da cidade e a cidade real, entre as pessoas verdadeiras e os actores que as interpretam, e entre a vida de Caden e a sua peça nunca completa, nunca exibida, diluem-se completamente. Aqui o filme ganha tons totalmente ilusórios, totalmente surreais, recordando os maiores clássicos do cinema metafórico, de Kubrick a Fellini, enquanto as noções de tempo e espaço se tornam indistintas. O filme perde-se na realidade deteriorada de Caden, há medida que este se deixa consumir por uma doença misteriosa e por pensamentos de solidão e de envelhecer. No limite, num enorme pedaço de ironia, Caden perde a sua própria identidade ao ficar totalmente obcecado por encontrar o significado da peça, ou seja, o significado da vida. E desta forma a história estica-se, projectando a vida, as ilusões, os sonhos e as esperanças de Caden na peça nunca acabada, embrenhando-se num universo cada vez mais surreal, cada vez mais delapidado, até ao final da sua vida, o final da peça, o final do filme…
Descrito assim, parece, muito sinceramente, um filme fabuloso, um enorme pedaço de arte cinematográfica. Na altura, tal como agora, releio estas notas e quase não consigo acreditar que não gostei do filme. Claro, nem sempre os grandes argumentos resultam em bons filmes e isso pode ocorrer por vários motivos. Um deles, e que parece encaixar aqui, é a inexperiência do realizador que foi até ao limite do suportável. Só consegue levar avante uma coisa destas um realizador que tenha uma enorme mestria mas ao mesmo tempo uma enorme autodisciplina, fruto de uma grande maturação da sua arte, como Kubrick, Tarkovsky ou Nolan. Não parece ser esse o caso de Kaufman.
Aliás, identifica-se uma notória dualidade em ‘Synecdoche, New York’. Como escritor, Kaufman está no pico das suas capacidades e a história é incrivelmente original (então para a rotina mecânica de Hollywood ainda mais) e extremamente cativante, totalmente em linha com o trabalho inovador e quebra-convenções que este escritor já havia estabelecido. A estrutura do filme está bem montada e a sua alegórica ideia de base; a metáfora para a vida adulta, o encontrar o caminho e o significado da vida antes da velhice, antes da morte, ou pelo menos nela, ganha uma poderosa vida na peça dentro da peça, e através do fabuloso elenco.
Contudo, como realizador, Kaufman desenvolve um trabalho que, pela sua própria natureza surreal, acaba por ficar excessivamente artificial. Para além do mais, senti alguma dificuldade em acompanhar as cenas que se alongam continuamente, e senti ainda mais dificuldade em acompanhar as mudanças abruptas, e muitas vezes injustificadas, que o filme possui. Enquanto alguns críticos louvaram o filme como um enorme pedaço de arte, outros criticaram fortemente Kaufman de megalomania e auto-indulgência, e não podemos deixar de nos perguntar se isso é verdade. O filme muda as suas peças constantemente como um jogo de xadrez viciado, e justifica isso como parte da sua grande ilusão surreal metafórica, onde B não precisa necessariamente de se seguir a A, mas de repente já estamos no M sem saber o que aconteceu às restantes letras anteriores. Inevitavelmente, dei por mim a perguntar se o caminho escolhido para contar esta história era o mais fácil ou até o mais natural. Não poderia ter Kaufman contado a mesma história com as mesmas alegorias, com a mesma ambição artística, mas de uma forma menos intrincada? Ou complicou-a propositalmente, criando um argumento artificialmente labiríntico só porque, enfim, ele é Kaufman?! Da única vez que vi o filme, fiquei certamente com essa impressão. É portanto de lamentar que este conto de fadas deturpado, que é sem dúvida intenso, lírico, profundo e até comovente, seja ao mesmo tempo bastante difícil de digerir com tudo aquilo que é atirado para cima do espectador. É realmente arte, surrealismo estético como em ‘L’année dernière à Marienbad’ (1961), por exemplo, ou é somente um exercício de expressão egocêntrica? Ou estarei errado e o filme é simplesmente demasiado intelectual para os meus gostos comerciais? Cabe ao leitor decidi com a sua própria visualização, com a sua própria interpretação.
A última nota dos meus apontamentos é igualmente esclarecedora da dimensão que se sente que o filme tem. Escrevi para mim próprio “Para ver daqui a, digamos, 20 anos. Talvez nessa altura fique siderado com o filme”. E não tenho dúvidas que há uma grande probabilidade de isso acontecer. Aliás (e razão pelo qual decidi transcrever as minhas notas para esta crítica), de vez em quando penso nele; mais recentemente com a estreia do filme de animação ‘Anomalisa’ (2015), que quebrou o jejum de sete anos de Kaufman do grande ecrã. Esse tempo todo depois, já casei, já tive um filho e portanto estou mais que seguro que encararei ‘Synecdoche, New York’ de uma forma diferente, porque já avancei, julgo eu, mais uma etapa na forma de encarar a vida e o envelhecer. Devo esperar mais uma década até o rever? Não sei. Mas o facto de estar a ponderar isso tanto tempo depois poderá ser, afinal, a marca do grande filme. Os maus esquecem-se e abandonam-nos. Os bons, mesmo aqueles dos quais gostamos menos, deixam-nos sempre a antecipação de uma segunda visualização, por mais anos que passem.
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