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It's a Wonderful World

Ano: 1939

Realizador: W.S. Van Dyke

Actores principais: Claudette Colbert, James Stewart, Guy Kibbee

Duração: 86 min

Crítica: Eu adoro James Stewart. Para mim, não só é um dos melhores actores que o cinema já conheceu, como é um dos maiores sinónimos da glória que Hollywood foi e teve na sua era clássica. Ele podia ser o ‘boy next door’, a alma da verdadeira humanidade americana, como demonstrou no cinema de Frank Capra (‘You Can’t Take it With You’, 1938; ‘Mr. Smith Goes to Washington’, 1939; e claro, o imortal ‘It’s a Wonderful Life’, 1946) ou em obras como o maravilhoso ‘Harvey’ (1950); podia ser imensamente cómico, como foi em ‘The Philadelphia Story’ (1940); ou podia, com uma aparente simplicidade, deturpar a sua imagem e revelar uma ambígua profundidade psicológica, como demonstrou para Hitchcock (‘Rope’, 1948; ‘Rear Window’, 1954; ‘Vertigo’, 1958) ou para Anthony Mann e Andrew V. McLaglen, numa série de westerns (‘Whinchester 73’, 1950; ‘The Man From Laramie’, 1955; ou mais tarde ‘Bandolero’, 1968, que recentemente critiquei aqui). Qualquer que fosse o tipo de papel, todos sentíamos o charme, o carisma, a intensidade, o apelo e a simpatia de Jimmy, e é por isso que sempre nos iremos recordaremos dele.

Por isso mesmo, e apesar de já ter visto praticamente toda a sua filmografia, fico sempre excitado quando me deparo com a descoberta de um filme com ele que até então me havia escapado. Recentemente, numa visita de reconhecimento à Media Markt (passe a publicidade), um dos melhores locais neste país para comprar cinema clássico ao preço da chuva, deparei-me com uma edição de uma editora espanhola (mas com legendas em português) de ‘It’s a Wonderful World’ (em português ‘Afinal, o Mundo é Belo!’), um clássico de 1939 que nunca tinha visto. A um preço tão diminuto era impossível não o levar comigo para casa e portanto assim o fiz, dedicando-me a vê-lo na tarde do passado domingo.

‘It’s a Wonderful World’ não podia ter ser feito num melhor ano, num melhor estúdio: 1939 na MGM. 1939 é, para muitos críticos, o melhor ano de sempre na história do cinema, e eu concordo plenamente com essa afirmação. Só o facto de ser o ano em que foram realizados ‘Wizard of Oz’ (pela MGM claro!) e ‘Gone With the Wind’ (distribuído pela MGM) já era suficiente para arrecadar esse título, mas tantos outros filmes seminais foram lançados neste ano dourado, quer na MGM (‘Goodbye, Mr. Chips’, ‘Babes in Arms’, ‘Ninothcka’); quer, obviamente, noutros estúdios (‘Mr. Smith Goes to Washington’, ‘Stagecoach’, ‘Young Mr. Lincoln’). Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, Hollywood estava no pico da sua capacidade criativa, após uma década de plena produção sonora e tendo nas suas fileiras todos os mestres do cinema mundial, incluindo os do cinema europeu que, fugindo aos Nazis, já estavam inseridos e entrosados no bem oleado sistema de estúdios, que nunca vivera, nem nunca viveria, uma melhor altura. 

Por isso mesmo, não só as grandes produções, mas outras menores como este ‘It’s a Wonderful World’, herdavam desta gigantesca energia criativa e da enorme concentração de talento nas linhas de montagem dos estúdios. O argumento de ‘It’s a Wonderful World’ é assinado por Ben Hecht e Herman J. Mankiewicz; o primeiro, vencedor de dois Óscares, é o celebrado argumentista de ‘Gunga Din’ (1939), ‘His Girl Friday’ (1940) ou ‘Notorious’ (1946), e o segundo venceria, dois anos depois, o seu Óscar de Melhor Argumento por, nada mais, nada menos, ‘Citizen Kane’ (1941). Já a realização esteve a cargo de W. S. Van Dyke, um realizador que é maioritariamente conhecido por ser o grande responsável pela saga de filmes cómico-policiais de ‘The Thin Man’ ao longo da década de 1930 e pelo primeiro Tarzan (1932), e que nesse mesmo ano de 1939 realizaria um dos filmes mais interessantes da saga de Andy Hardy: ‘Andy Hardy Gets Spring Fever’.

E como se isto não bastasse, o filme surge no ano de explosão de Jimmy Stewart em Hollywood. No ano anterior, já havia sido o actor principal do clássico de Frank Capra, vencedor do Óscar de Melhor Filme, ‘You Can't Take It with You’, mas seria neste ano de 1939 que Stewart se tornaria uma mega estrela, com nada menos que cinco filmes, incluindo ‘Made for Each Other’, ‘Mr. Smith Goes to Washington’ (onde está absolutamente brilhante), e a comédia-western ‘Destry Rides Again’, onde demonstra o seu grande talento para a comédia que lhe valeria o Óscar no ano seguinte por ‘The Philadelpohia Story’ (1940) – o único, note-se, da sua carreira.

Neste enquadramento, o menor, de mais baixo orçamento e de apenas 80 minutos ‘It’s a Wonderful World’, foi compreensivelmente mais facilmente esquecido com o passar das décadas, mas isso não implica que o filme não tenha ainda uma palavra a dizer ao cinéfilo. Tem! À medida que o comecei a ver, apercebi-me que não é tanto um produto da exuberância da Hollywood clássica, mesmo que da “exuberância” de série B, se a podemos chamar assim, mas antes um filme de charneira, que herda da tradição cómico-romântica da década mas que inclui já elementos que se tornariam mais comuns no início da década seguinte, após a entrada dos EUA na Segunda Grande Guerra. 

Assim sendo, o filme ergue-se como uma curiosa, e até certo ponto fascinante, mistura de estilos. Por um lado tenta seguir as pisadas de uma catrefada de comédias road-movie screwball, particularmente o extremamente popular ‘It Happened One Night’, vencedor do Óscar de Melhor Filme em 1935 (as semelhanças com este filme são mais que muitas, a começar pela leading lady Claudette Colbert). Ao mesmo tempo, ‘It’s a Wonderful World’ contém aspectos, mesmo que tímidos, quer do cinema noir detectivesco que inundaria o cinema dos anos 1940, quer dos filmes de mistério e identidades trocadas, com toques de comicidade surreal, que Hitchcock já havia realizado, notavelmente ‘The 39 Steps’ (1935). Mesmo assim, apesar desta mistura ter potencial, a comédia romântica acaba sempre por ganhar e consumir o filme com a sua previsibilidade e leveza, o que constitui um dos principais pontos contra desta obra.

‘It’s a Wonderful World’, talvez inspirado pelo universo de ‘Thin Man’ que o seu realizador tão bem conhecia, abre como se fosse um noir. Entramos num gabinete de detectives para conhecer Guy (James Stewart) e o seu parceiro Cap (o sempre engraçado Guy Kibbee). O Guy de James Stewart é descrito como um homem algo amargurado e interesseiro (algo que depressa lhe passará, só retornando quando dá jeito ao filme), não se importando que casos investiga desde que isso lhe traga notas verdes. Neste momento, o seu melhor cliente é um milionário (Ernest Truex) conhecido pelo seu gosto pela bebida e pelos seus múltiplos casamentos. As notícias de jornal dizem-nos que acabou de casar pela quarta vez com uma mulher muito mais nova, mas infelizmente a sua anterior paixão está a fazer muito sururu na imprensa – o caso que Guy está a tratar.

Nessa noite, Guy procura o seu cliente pelos bares, mas parece estar sempre um passo atrás. Até que finalmente o apanha num Hotel onde está hospedada essa ex-namorada, que é assassinada por um homem mistério no preciso momento em que o milionário, podre de bêbado, entra no seu quarto. Quando as luzes se acendem o milionário tem a pistola na mão, e numa decisão de segundos, Guy decide esconde-lo antes da polícia chegar.

O filme tem um excitante começo, mas uma das piores decisões que tem é logo na cena a seguir contar-nos a verdade. O assassino é o amante da nova mulher do milionário, e o objectivo era incrimina-lo para que ambos possam ficar com os seus milhões. Percebe-se porque o filme toma esta decisão; quer tirar esta linha argumental da frente pois o que lhe interessa está para vir. Mas não seria bem mais excitante se tivesse este mistério por resolver por um bocadinho mais de tempo? Seria, por isso é pena.

Pouco depois, Guy, que estava a tentar resolver o caso e encontrar a verdade, é apanhado pela polícia e condenado a um ano de prisão por auxiliar o seu cliente inocente, enquanto este é condenado à cadeira eléctrica. Mas a caminho da prisão, Guy lê algo no jornal que o intriga, a pista que tanto procurava, e portanto decide fugir num espectacular salto de um comboio em movimento. Ao chegar à margem, Guy encontra Edwina (Claudette Colbert) uma poetisa (uma profissão muito pouco credível para esta personagem) que o viu saltar. Guy “rapta” Edwina para ficar com o seu carro e ludibriar a polícia, obrigando-a a fingir serem um casal. E é aqui então que o filme decide realmente começar, mudando completamente de tom ao transformar-se num road movie estilo comédia romântica, que fica ainda mais acentuada quando Edwina acredita que Guy está inocente e claramente se apaixona por ele. De novo, por vezes hesitamos se não estamos a ver uma cena de It Happened One Night’.

Deste modo, o filme divide-se entre a sua parte de comédia romântica, insistindo muito na relação de amor-ódio entre os dois protagonistas, e a parte de policial, pois não só a polícia monta uma caça ao homem para apanhar Guy, como este está intento em chegar ao teatro da pequena cidadezinha onde a sua pista o leva, e onde poderá descobrir o verdadeiro assassino e assim limpar o seu nome. Isto claro, ao mesmo tempo que tenta gerir Edwina que, a viver a sua “aventura”, está sempre a intrometer-se; uma espécie de versão mais sã de Katherine Hepburn em ‘Bringing up Baby’ (1938). A Guy dá jeito estar ao lado dela por causa do seu disfarce, mas as suas ideias mirabolantes vão deixá-lo extremamente enervado. Ou será amor?...

Para mim a grande desvantagem deste filme é, como disse em cima, deixar-se consumir pela sua parcela de comédia romântica. Aliás, é isto que sempre quis ser e é isto que é, mas alguém (terá sido Van Dyke?!) teve a ideia de adensar a história de base, o que em teoria seria bom, mas acaba por não ser porque o filme não encontra o equilíbrio ideal entre a sua vertente mais leve e a mais pesada. No miolo do filme, quando Guy e Edwina prosseguem pelas estradas secundárias a mandar piropos um ao outro na boa tradição das comédias românticas, parece um pouco incrível que este filme tem mais do que um assassinato e que o seu protagonista está numa luta contra o tempo para não só ilibar o seu nome como salvar o seu cliente da cadeira eléctrica! Se fosse Hitchcock a realizar este filme, talvez usasse esta dualidade para o transformar numa brilhante comédia negra. Mas não é isso que acontece. Este filme tem da comédia mais leve e mais “romântica” que a Hollywood clássica sabia produzir, portanto é um tom bipolar que não se entende.

Mais paradoxal ainda é o facto de, apesar da insistência na comédia, serem o crime e o mistério a dar o sabor extra que o filme tanto precisava. Stewart e Colbert são, cada um isoladamente, mestres na sua arte e incrivelmente hilariantes (a cena em que Stewart se mascara de líder dos escuteiros, por exemplo, é de chorar a rir), mas quando têm de namoriscar um com o outro já parecem algo incomodados, faltando-lhes alguma faísca e alguma química. É por isso difícil acreditar nalgumas decisões das personagens, como por exemplo a forma como Edwina literalmente do dia para a noite muda de opinião sobre Guy e decide segui-lo e ajudá-lo. 

Já quando o filme finalmente regressa à sua história policial tem momentos muito mais excitantes e cativantes. A cena climática no pequeno teatro, enquanto a peça está a decorrer, é a grande sequência do filme, porque aqui, finalmente, todas as suas vertentes: a comédia, o mistério, o romance e o policial, se misturam, e misturam-se bem. Alguns puristas já criticaram fortemente esta cena como sendo racista porque Guy, como actor infiltrado na companhia num papel de extra, interpreta um afro-americano de cara pintada e sotaque sulista. Discutir isto num filme feito há mais de 70 anos é mesquinho e perder de vista aquilo que é realmente importante. E o que é importante é que desta maneira o filme termina em beleza, com intensidade e excitação e boas doses de suspense e comédia (destaque para o clássico cliché dos polícias burros), elementos esses sim que ainda não perderam a relevância nem a energia, tantos anos volvidos.

No final, tenho a dizer que gostei bastante de ver ‘It’s a Wonderful World’. Não é a melhor comédia romântica da década de 1930, nem de perto nem de longe (recordemos ‘Nothing Sacred’, ‘Awful Truth’, etc), mas proporcionou-me 80 minutos de entretenimento simpático e ligeiro, onde brilha o verdadeiro glamour de Hollywood, esse glamour que agora custa, imenso, encontrar. Existe num universo pontilhado de diálogos exímios, situações bem construídas e bons actores, mas infelizmente, com excepção de algumas cenas, nunca encontra a sua melhor passada. Acaba por ser um reciclar da fórmula da comédia romântica tão típica da década de 1930 onde o ambiente nunca é bem o ideal, quer porque os actores não têm tanta química, quer pela história mais pesada por trás.

Poderá ser uma questão de ambição desmesurada, que se lê no próprio título do filme. Baseado nos poemas que de vez em quando Colbert debita sem grande convicção como parte da sua  personagem, chamar a este filme ‘It’s a Wonderful World’ não se ajusta nada, nada, nada ao material, visto que não é nem uma comédia surreal épica nem é um drama pungente. O objectivo, suponho, era inspirar com um sorriso e oferecer uma história de esperança cómico-romântica num mundo no limiar de uma Guerra, mas o filme não consegue ter profundidade suficiente para isso. Pode gastar imensa energia a tentar ganhar consistência e dimensão na sua história policial e de inocentes perseguidos, mas facilmente deita tudo por terra em prol uma piada fácil à custa dos pombinhos… 

Mas apesar de tudo, ‘It’s a Wonderful World’ é um híbrido que acaba por ter mais motivos de interesse do que desinteresse. Pode ser visto como um policial ligeiro a imitar Hitchcock. Pode ser visto como uma comédia romântica de peripécias e reviravoltas clássicas onde os opostos se atraem, mas à qual infelizmente falta alguma chama e pedalada. Pode ser visto como um escape de entretenimento simples, uma aventura episódica com personagens com quem nos identificamos porque soam sempre a familiares (e são, já as vimos algures noutros filmes!). Tudo isto tem o seu valor que não se esbate com o passar das décadas, mas eu prefiro terminar como comecei para dizer que a maior mais valia de todas é ver Jimmy Stewart. Mais de uma década antes da sua suposta revelação como um actor de ambivalência dramática, Stewart tem aqui uma estrondosa interpretação que demonstra precisamente essa sua capacidade. As suas alterações de estado podem ser algo forçadas no contexto do filme, mas a sua interpretação é sempre genuína. Em cenas de desespero dramático ou na mais inocente das cenas cómicas, Stewart carrega este filme com genial mestria e, se tudo o resto falhar, ‘It’s a Wonderful World’ vale imenso, só por isso.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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