Realizador: Susan Stroman
Actores principais: Nathan Lane, Matthew Broderick, Uma Thurman
Duração: 134 min
Crítica: Outrora, Max Bialystock, foi um grande produtor da Broadway. Agora, as suas peças são fiascos atrás de fascos; peças essas que consegue mesmo assim financiar graças à ajuda preciosa dos seus investidores, ou melhor, investidoras, velhotas viúvas que Max seduz em troca de uns preciosos cheques. Visto que não consegue regressar aos êxitos, Max ganha a vida fazendo pequenas, e na sua perspectiva, inocentes falcatruas. Angaria um pouco mais de dinheiro do que aquele que é necessário para montar os seus espectáculos, e visto que as suas peças geralmente fecham no final da primeira noite de exibição, não tem que devolver esse secreto excedente aos investidores. Um dia, um xoninhas agente do fisco, Leo Bloom, é enviado ao escritório de Max para fazer a vistoria às suas contas. Leo rapidamente descobre a falcatrua e especula que um produtor poderá ganhar mais dinheiro com um fiasco do que com um sucesso. Para isso só tem que angariar uma quantidade gigantesca de dinheiro e ter a certeza de que a peça irá ser um fiasco redondo. Max consegue convencer Leo a executar esta grande aldrabice com ele, e juntos iniciam uma pesquisa pela pior peça alguma vez escrita. E encontram-na em ‘Springtime for Hitler’ (Winter for Poland and France…), um musical com Hiltler e Eva Braum, encenado pelo pior encenador da história, o travesti Roger deBris. As coisas contudo, não vão correr tão bem (ou tão mal neste caso) como esperam…
Esta é a premissa de ‘The Producers’, o primeiro, genial e hilariante filme de Mel Brooks, datado de 1967 (mini crítica aqui), que lhe valeu um Óscar de Melhor Argumento (de quantas comédias assumidas podemos dizer o mesmo desde então?!), e anunciou a chegada à cena cinematográfica do homem que já tinha revolucionado a comédia televisiva. Nos trinta anos que se seguiram, Brooks criou o seu próprio género cinematográfico, inspirando gerações de cómicos com o seu humor fácil mas inteligente, as suas paródias com substância, e o seu indiscutível amor ao cinema (ver a minha crónica ‘Revisitando Mel Brooks’). Depois de se ter despedido do cinema com ‘Dracula: Dead and Loving It’ em 1995, Brooks contudo ainda tinha uma grande cartada a jogar no mundo do espectáculo. Os seus filmes sempre fluíram ao som de músicas, inúmeras compostas pelo próprio Brooks (recordemos cenas magicas como o número da Inquisição em ‘History of the World: Part I’ ou a dança no armazém em ‘Life Stinks’), e provavelmente esta paixão que partilhava com a sua mulher, a celebrada actriz Anne Bancroft, terá inspirado Brooks a tentar compor um musical da Broadway. Nesta sua estreia no mundo dos musicais, é uma ironia típica de Brooks ter escolhido adaptar o seu próprio filme de 1967 sobre produtores, numa altura em que os musicais começaram a viver um ressurgimento de popularidade, que em breve (pós Chicago em 2002) se transportaria também para o cinema (ver a minha reflexão na critica de ‘Nine’).
Pois bem, a partir do momento em que ‘The Producers’ estreou na Broadway em 2001, com Nathan Lane no papel de Max e Mathew Broderick no papel de Leo, todos os críticos e espectadores ficaram ao rubro. O musical tornou-se a peça de maior sucesso da história da Broadway, com mais de 2.500 performances executadas até hoje, e vencendo nada menos que 12 prémios Tony, o último prémio que faltava a Brooks para fazer parte do restrito lote de pessoas (nem chegam a uma dúzia) que na história do espectáculo conseguiram ganhar um Óscar (cinema), um Emmy (televisão), um Grammy (música) e um Tony (teatro). Após o sucesso de ‘Chicago’ (2002) e a autêntica moda que invadiu o cinema de Hollywood desde então de adaptar musicais da Broadway ao grande ecrã com actores conhecidos a cantar (muitas vezes mal e porcamente), como ‘Phantom of the Opera’ (2004), ‘Rent’ (2005), ‘Dreamgirls’ (2006), ‘Hairspray’ (2007), ‘Mamma Mia’ (2008), ‘Nine’ (2009) ou ‘Les Miserables’ (2012), a adaptação do maior sucesso de sempre (ainda por cima tão recente) parecia mais do que inevitável. Felizmente (num sentido estético), mas infelizmente (num sentido financeiro), abdicou-se de contratar nomes sonantes, não houve cedências comerciais, e optou-se por ser fiel à essência do espectáculo, mantendo o casting original de Lane e Broderick e usando como realizadora a encenadora/coreografa da peça, a famosa Susan Stroman (aqui no seu único trabalho de realização cinematográfica ate à data).
Assim sendo, ‘The Producers’, versão de 2005, o filme baseado no musical baseado no filme de 1967, existe, e pode ser lido, em vários patamares, o que não é necessariamente uma vantagem, já que isso contribui para o desequilibrar bastante como obra. Primeiro, e talvez mais importante, podemos julgar este filme como uma obra de entretenimento, ou seja, avaliar o espectáculo pelo espectáculo. Se o fizermos, podemos ficar surpreendidos por encontrar um surpreendente, e excelente, musical “à antiga”. Desde o primeiro segundo, desde a primeira sequência musical à porta de um teatro da Broadway onde o mais recente espectáculo de Max, ‘Funny Boy’ (uma adaptação musical de Hamlet!), acaba de fechar portas na própria noite em que estreia, ‘The Producers’ cativa-nos com o seu estilo fílmico. É um estilo que faz recordar, com incrível saudosismo, a estilização, a fotografia e a opulência coreografada e de cenografia dos musicais dos anos 1950 e 1960 (‘My Fair Lady’, ‘Funny Face’, ‘Oliver’ e tantos outros). Este revivalismo formal, sem qualquer cunho de modernidade forçada, sem ser condescendente para com o espectador, e que o filme herda da peça em que se baseia (Susan Stroman faz um excelente trabalho como realizadora estreante, provando a sua grande mestria cénica) é excelente e provavelmente terá justificado a grande aceitação crítica e comercial do musical nos palcos da Broadway. Isto é, para além, claro, da sua confirmada história hilariante, que se mantém.
Contudo, este decalcar quase ipsis verbis do palco para o meio fílmico foi um pau de dois bicos. O claro virtuosismo visual que o filme possui (a genial coreografia, o fantástico design de produção, a fotografia garrida) faz como que se destaque completamente, pela positiva, dos outros filmes musicais da década de 2000, o que só pode ser de louvar. Contudo, ao contrário dos filmes clássicos em que baseia o seu estilo, herda da peça (talvez por culpa da encenadora/realizadora) uma enorme artificialidade e teatralidade exagerada das interpretações, e um tom de surrealismo, digamos, simpático que se pode imaginar que funcione perfeitamente em palco quando não há barreiras entre os actores e os espectadores (e por isso há uma partilha de cumplicidade), mas não resulta, ou pelo menos soa bastante estranho, quando projectado numa sala de cinema. Na minha opinião, bem que poderá ser esse o principal motivo pelo qual esta peça, tão popular e tão bem sucedida, tenha gerado, paradoxalmente, um dos maiores, senão o maior fiasco comercial da onda de filmes musicais da década de 2000. De acordo com o site Box Office Mojo, o filme custou 45 milhões de dólares a produzir, mas apenas rendeu 38 milhões, um número pateticamente baixo e que denota uma fraquíssima aceitação por parte de público.
Mas podemos talvez encontrar uma segunda grande justificação para o facto de o filme não funcionar em pleno, directamente relacionada com a outra perspectiva em que o podemos, e devemos, ler. No fundo, temos que ler ‘The Producers’ como um remake do filme de 1967, já que, no final de contas, é uma história que regressa ao meio fílmico de onde partiu. Por um lado temos que admitir que o espectador estreante (ou seja, que não viu o filme original nem a peça) vai deparar-se com um filme engraçadíssimo que certamente o seduzirá, pois parte de uma premissa genial e possui diálogos fluídos, ritmados, hilariante e soberbamente escritos. Isto é muito mais claro e excitante principalmente na primeira parte do filme, onde se segue mais à risca (praticamente linha a linha, palavra a palavra), o argumento original.
Contudo, por isso mesmo, quem conhece e adora o filme original vai ficar um pouco de pé atrás, não tanto pela cópia (já que isso é um mal necessário do remake), mas porque o tom não é exactamente o mesmo. Há uma subtil mudança, provavelmente propositada, para mais leve, ou melhor, o tom já não é tão azedo no seu sarcasmo cómico, e isso faz uma grande diferença. De novo, é uma mudança que se pode justificar em palco numa comédia musical, mas de regresso ao formato filme já não. Veja-se o próprio Max. O genial e bem-amado Nathan Lane, um veterano da comédia musical (e a voz simpática de Timon em ‘Lion King’) tem uma cara e uma personalidade inata (e que o público tão bem conhece) demasiado simpática para interpretar Max como o escroque sem escrúpulos que Zero Mostel (esse sim com um ar incrível de aldrabão cómico) foi no filme original, e essa alteração reflecte-se na sua personagem e influencia a profundidade cómica do filme. Do mesmo modo, se Lane e Mathew Broderick têm uma excelente química, que resulta na tela tão bem como resultou em palco, nunca será tão boa como a que Mostel tinha com Gene Wilder. Quando ouvimos os mesmos diálogos perfeitos, mas ditos um milímetro abaixo da perfeição, não estranhamos? Sim, e isso é um dos maiores turn offs do filme. Como um remake que se preze, nunca será tão bom como o original e sentimos esse azedume com cada linha de diálogo.
Infelizmente, o filme tem ainda mais dois turn offs. O primeiro está nas músicas. Seguindo os padrões das adaptações musicais, o filme mantém a estrutura da história original, cena a cena, da qual pouco ou nada retira, mas acrescenta constante, e por vezes forçadamente, números musicais no meio, e por entre, essas cenas. Isto não só faz com que a duração do filme aumente consideravelmente (quase 2h20 – demasiado), como quebra bastante o ritmo da história fílmica e a dinâmica que o argumento tem, principalmente porque cada secundário tem direito à sua própria canção. É mais um atributo que resulta em palco, com cenários mais contidos, do que em filme, que se abre cenicamente e é mais ambicioso nos seus números musicais. Se o filme original nunca deixava o espectador respirar com o seu virtuosismo cómico, e as cenas se ligavam na perfeição, aqui tudo isso se perde porque por vezes temos intervalos de cinco minutos, ou mais, preenchidos por música, antes de retomar o fio à miada dos eventos cómicos. Por exemplo, a montagem de Max a obter cheques das velhotas a meio do filme original era rápida, eficaz e infinitamente hilariante. Aqui transforma-se num número musical enorme e de certa forma repetitivo e desinteressante. Mas o pior, pelo menos para mim, é que as músicas, sinceramente, não me cativaram. Têm a mesma alegria simpática que já tinham as duas do filme original (‘Springtime for Hitler’ e ‘Prisioners of Love’), mas estão longe de ser showstoppers. Podem ter sido compostas pelo próprio Brooks (que não é versado musicalmente, mas tal como Chaplin entoa as canções que cria na sua cabeça para que um compositor fantasma as transponha para a pauta e as orquestre), mas este é muito melhor cómico do que músico, e isso nota-se, e mais contribui para o fosso que há constantemente entre as velhas e as novas sequências.
Já o segundo turn off está nas inexplicáveis alterações da história. Sim, eu sei que foi o próprio Mel Brooks que escreveu o libreto do musical, mas até que ponto, na ambição de dar maior dimensão à história, é esta manobra bem-sucedida, ou até adequada, num material que na sua base já era perfeito? Porquê mudar a perfeição? Porquê alterar, por exemplo, a personalidade de Leo? Porque fazer dele alguém que desde criança sonhava em ser produtor? Porquê dar-lhe uma estranha insanidade, que se reflecte nos momentos em que Broderick fica com os olhos algo baços e tresloucados? E porquê inventar um romance entre Leo e Ula (a secretária que aqui, interpretada por Uma Thurman, ganha um enorme destaque), incluindo a fuga para o Brasil no final do filme, algo que o Leo do filme original nunca faria, e que torna algo incredível o seu regresso final. Isto melhora o filme de alguma maneira, ou a personagem? Não creio, pois a personagem já era bastante credível e resultava no filme original. Todas estas mudanças enchem, mas não melhoram, este remake.
Mas se isto até é mais ou menos pacífico, a eliminação da personagem de L.S.D., ou melhor Lorenzo St. DuBois, genialmente interpretada pelo flower power Dick Shawan no filme original já é uma pesada perda. Talvez se tenha achado que o público moderno não iria perceber uma personagem tão sixties. Mas ela não só era soberba, como, sendo L.S.D. o actor escolhido para fazer de Hitler, era uma peça fundamental para justificar como ‘Springtime for Hitler’, tão mau e controverso, tenha sido o sucesso inesperado que destrói o plano de Max e Leo. O segredo estava na forma como L.S.D. e o encenador tornam propositadamente Hitler num hippie, sem Max e Leo saberem de antemão, o que transforma a peça numa fantástica sátira cómica. Já nesta versão de 2005, L.S.D. desaparece e o Hitler escolhido passa a ser primeiro Franz (o autor nazi da peça, um engraçado Will Ferrell) que o interpreta seriamente, mas depois, quando este parte uma perna mesmo antes da noite de estreia, pelo próprio Roger deBris (o actor Gary Beach). Mas a forma como Roger interpreta Hitler, com os seus próprios trejeitos efeminados, adicionado a tudo aquilo que o filme nos mostra do espectáculo, não é de todo suficiente para tornar credível que ‘Springtime for Hitler’ seja uma sátira de sucesso em vez de um fiasco ofensivo. No filme original riamo-nos às gargalhadas nas cenas em que Dick Shawn fazia de Hitler em palco e percebíamos. Mas aqui não. O filme gasta imensa energia em fazer números musicais elaborados, mas eles detêm o mau gosto que Max e Leo tencionavam. A aparição surpresa de Roger como Hitler gera apenas algumas gargalhadas, mas a peça prossegue com o seu tom inicial. Portanto perde-se o cunho de sátira que o material de base tinha, e perdendo isso, este filme perde a sua raison d'etre. Se não acreditamos que o show tenha sido um sucesso (embora o filme nos tente forçar essa ideia), então toda a premissa da história e da sua comédia vai por água a baixo…
Por fim, com uma longa duração de 2h20, o filme sinceramente, nunca mais acaba. Entre o medley musical, a fuga de Leo para o Brasil, o seu regresso e a cena de tribunal, que ainda inclui mais uma música, a cena final na prisão (onde o filme original termina), a cena extra que este filme acrescenta dando um novo final à história, o genérico final dançado e ainda umas palavras do próprio Mel Brooks mesmo no fim do genérico, o filme parece que está a fazer pouco do espectador, recusando-se a terminar. E por essa altura, só é isso que o espectador quer; que termine, para se ir embora. Se há filme que testa a paciência do espectador é este, mesmo tendo sido engraçado, mesmo tendo entretido. Há um ponto limite de tolerância e este filme passa-o, constantemente.
Tudo somado, ‘The Producers’, versão de 2005, é um filme que fica a meio termo. Prova que se é para ver esta história em filme, mais vale ver o filme de 1967, que é muito mais engraçado e ritmado. E prova que se é para ver esta história em musical, mais vale comprar um bilhete para o espectáculo e vê-lo em palco. O filme é engraçado porque a história é engraçada, e é visualmente cativante pois está bem realizado, mas o seu tom e as suas opções, argumentais e emocionais, têm alguma dificuldade em resultar como filme. Precisamente porque as alterações foram feitas a partir do filme original para que a história pudesse resultar como peça teatral, mas o trabalho inverso não foi feito quando se voltou de novo ao meio fílmico. Portanto o que sobra é um filme que isoladamente consegue entreter (e que admita-se está muito acima de coisas como ‘Hairspray’ ou ‘Mamma Mia’), mas nunca deveria ter sido feito, pelo simples facto de que perde imenso em comparação com os seus dois materiais de base (o filme original e a peça), e nunca consegue livrar-se desse estigma. Pode ser uma grande peça. Mas não é, de todo, um grande filme. É pena.
Mesmo assim, há um pormenor que salva o filme: as duas aparições do próprio Mel Brooks. Uma pode ser a repetir o seu próprio cameo do filme original (“don’t be stupid be a smarty, come and join the Nazi party”) e a outra é mesmo no finzinho do já muito longo genérico final a mandar-nos para casa, mas mesmo assim ambas valem a pena. Nos últimos 20 anos praticamente não o vimos a não ser em alguns pequenos papéis na televisão ou em trabalhos de voz para filmes de animação. É portanto uma bênção vê-lo, nem que seja por breves momentos, na tela. Grande senhor. Grande génio cómico, independentemente de aqui ter estado menos bem (mas afinal, não é ele o realizador!) e que, hoje muito perto de fazer 90 anos, irá sem dúvida viver para sempre. Se não neste mundo, pelo menos nos corações de todos os cinéfilos. E se pudemos até criticar tudo em ‘The Producers’ perdoamos todas as ofensas quando o seu rosto simpático é filmado e sentimos um calor extasiante e nos apetece apontar para a tela e gritar: “Hey, é o Mel Brooks!”.
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