Realizador: Ronald Neame
Actores principais: Jon Voight, Maximilian Schell, Maria Schell
Duração: 140 min
Crítica: Se nos anos 1950 muitos poucos filmes se fizeram sobre a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1960 Hollywood não só assumiu que já havia distanciamento temporal suficiente para voltar a abordar este assunto tabu, como encontrou o modo ideal para o fazer. Em mega-produções com elencos de luxo, o peso emocional e psicológico da Guerra foi substituído pela acção e pela aventura espectacular, pelas grandes missões suicidas, onde os heróis americanos enfrentavam os nefastos e estereotipados nazis. Foi a era de ‘The Guns of Navarone’ (1961), ‘Great Escape’ (1963), ‘The Dirty Dozen’ (1967), ‘Where Eagles Dare’ (1968) e muitos outros.
Contudo, nos anos 1970, o grande cinema americano da Segunda Guerra Mundial voltou a alterar de forma e tom. O alienamento da sociedade, decadente, vaga e depressiva, a paranóia das conspirações e da Guerra Fria, e grandes escândalos como o Watergate ou a Guerra do Vietname, deixaram a sua marca no cinema mais urbano, mais ‘sujo’ e mais desgarrado dos anos 1970. De repente, a mesma paranóia obsessiva de filmes como ‘The Paralax View’ (1974) ou ‘Conversation’ (1975) estava também a ser usada para retomar a ameaça do Nazismo, nomeadamente através de conspirações secretas de velhos Nazis que haviam sobrevivido em segredo e que agora, no anonimato e nas sombras, tentavam regressar ao poder e reactivar o terceiro Reich, num universo marcado pela Guerra Fria e num contexto cinematográfico marcado pelos filmes de espionagem. ‘Marathon Man’ (1976) ou ‘The Boys from Brasil’ (1978) são dois exemplos de filmes famosos em que velhos Nazis são parte proeminente da história, mas um par de anos antes ‘The Odessa File’ merece igualmente ser recordado. Se por mais nada, por fazer a invulgar e ousada escolha de contar a sua história inteiramente da perspectiva de personagens alemãs.
‘The Odessa File’ (em português ‘O Caso Odessa’) é realizado pelo inglês Ronald Neame, que poderá talvez ser mais conhecido por ter sido o argumentista e o director de fotografia de David Lean em muitos dos seus clássicos dos anos 1940 (‘Blithe Spirit’, ‘Brief Enconter’, ‘Great Expectations’). Como realizador, Neame, após uma carreira no cinema inglês de menor projecção desde o início da década de 1950, acabara de atingir uma maior dimensão internacional, primeiro com ‘The Prime of Miss Jean Brody’ (1969), a controversa história de uma alternativa professora de liceu que valeu o Óscar de Melhor Actriz a Maggie Smith, e depois com um dos primeiros (e mais acutilantes) disaster movies dos anos 1970, ‘The Poseidon Adventure’ (1972), um enorme sucesso. Mas em vez de se deixar seduzir pelas grandes produções, com o seu filme seguinte, ‘The Odessa File’, Neame regressou com uma obra mais subtil, mas que não deixa de ter a intensidade e a tensão emocional que já havia caracterizado o seu trabalho até então, e que admissivelmente é o motivo pelo qual, por exemplo, ‘The Poseidon Asventure’ é um blockbuster à parte dos restantes filmes catástrofe dos anos 1970. Contudo, em ‘The Odessa File’ (baseado no romance de Frederick Forsyth, um ano depois de outro seu romance ‘The Day of the Jackal' ter sido soberbamente adaptado ao cinema), uma igualmente soberba construção, entre o thriller e o filme espionagem, é praticamente deitada por terra no final quando o filme nos oferece uma extremamente xôxa reviravolta que leva a um pobre desenlace.
A personagem principal do filme é Peter Miller, um Jon Voight no pico da sua forma (entre ‘Deliverance’, 1972, e ‘Coming Home’, 1978, que lhe valeu o Óscar) e munido de um convincente sotaque alemão. Miller é um jornalista em Hamburgo durante a década de 1960, que no dia em que Kennedy é assassinado vai cobrir a notícia do suicídio de um velho judeu. Um polícia amigo dá-lhe a oportunidade de ler o diário do velho judeu e este é o ponto de viragem, quer para o filme, quer para Miller. O diário contém a narrativa, a que vamos assistindo em flashback, de quando o judeu estava num campo de concentração em Riga, comandado com um punho de ferro por um sádico Nazi chamado Eduard Roschmann (interpretado na perfeição nos flashbacks, e no clímax do filme, pelo grande Maximilian Schell). Mas o diário contém ainda outra descrição, a que assistimos, de um evento marcante no final da Guerra, passado no porto de Riga, onde Roschmann terá assassinado a sangue frio um capitão alemão quando procurava um barco para escapar…
Nesta primeira fase o filme altera destramente entre vários estados. O que começa de certa forma como um filme político rapidamente torna-se num filme de investigação jornalística misturado com o clássico ‘filme-paranóia’ tão típico da década. Marcado pelos relatos que leu no diário, e apesar de ter a resistência da sua namorada (Mary Tamm), da sua mãe (Maria Schell, a irmã de Maximillian) e do seu próprio editor, Miller começa a seguir as pistas desta história. Quando entrevista um amigo do velho judeu, descobre que o motivo do suicídio foi o judeu ter descoberto que Roschmann ainda estava vivo, e que nunca iria ser trazido perante a justiça pois está protegido pelo manto da misteriosa Organização ODESSA. À medida que intensifica a sua investigação, Miller depara-se ele próprio com enorme resistência burocrática em todos os departamentos, para além de começar a sofrer ameaças e até tentativas de assassinato. A ODESSA, constituída por velhos oficiais da SS que mudaram de nome e que usaram o seu poder e influência para se infiltrar em todos os níveis da actual sociedade alemã, está viva e intenta em proteger os seus membros, enquanto preparam o caminho para voltar ao poder. Descobrir isto lentamente só faz com que Miller fique cada vez mais obcecado em encontrar Roschmann, mergulhando cada vez mais no universo desta conspiração e tendo o perigo cada vez mais perto, quer de si, quer daqueles que ama.
Mas o filme dá por esta altura mais uma volta. De investigação paranóica, de thriller tenso, o filme decide passar também a ser uma história de espionagem. A resistência israelita, a Mossad, está igualmente interessada em travar os avanços da ODESSA, visto que estes fornecem armamento aos seus opositores. Portanto, e estando Miller tão próximo de desvendar os segredos desta organização, os israelitas decidem fazer um acordo com ele, usando-se mutuamente para cada um obter o que quer. Dessa forma, Miller inicia um intenso treino, físico e psicológico, com os operacionais israelitas, com o objectivo de se fazer passar por um antigo oficial da SS e dessa forma infiltrar a ODESSA. Quando está pronto, Miller tenta a infiltração, o que o levará a descobrir a identidade e a localização de Roschmann, até que finalmente fica frente a frente com ele, no clímax do filme…
‘The Odessa File’, como muitos filmes de espionagem da Guerra Fria em solo alemão (como por exemplo ‘My Funeral in Berlin’, 1966), está muito bem construído e está cheio de tensão. Aliás, tensão é a sua grande arma para cativar o espectador, muito mais do que propriamente a acção (não fosse este um filme dos anos 1970), portanto tudo se desenvolve a um ritmo ponderado, o que não quer dizer, de todo, desinteressante. A história em geral, e a obsessão de Miller em particular, cativam-nos desde o início; sentimos o peso da ameaça que paira sobre ele quando a ODESSA o começa a perseguir, e sentimos a tensão do jogo do gato e do rato que se desenvolve. Sustemos a respiração na cena em que tentam matar Miller empurrando-o para debaixo de um comboio, e sustemos a respiração a primeira vez que Miller se tenta infiltrar como ex-Nazi no seio da ODESSA.
Mas se tudo isto são elementos de riqueza e fascínio do filme, para mim há dois grandes problemas que o desequilibram. Primeiro, o arco da personagem de Miller. De interesseiro jornalista, apenas interessado em histórias com ‘sumo’ que possam melhorar a sua conta bancária e a sua carreira, Miller transforma-se num autêntico agente secreto em busca de um carniceiro Nazi, de uma forma que, mesmo no final do filme, não é totalmente credível. Numa comédia, ou até num filme de espionagem fantasioso, aceitamos sem hesitar que o herói anónimo se torne num espião, mas não num filme tão pungente e tão realista como este. OK, a sequência de treino é intensa e realista, mas mesmo assim é incrível algumas das coisas que este jornalista consegue fazer. O próprio filme não é coerente, já que as atitudes e hesitações de Miller no showdown final estão mais em sintonia com a sua personalidade no início do filme do que com realmente muitas das suas atitudes aventureiras e de espião a meio da história. Mesmo assim, Voight dá uma enorme credibilidade ao papel com uma soberba interpretação (acho que nunca teve tanto reconhecimento como actor como merecia – ver também a minha crítica a ‘Runaway Train’), especialmente quando se foca obsessivamente na sua ‘vingança’. E segundo, pelo menos para mim, o twist final do filme, como já referi, é um grande turn off. Achei que era, muito sinceramente, estúpido e completamente desnecessário. Sem o querer revelar ao leitor, digo apenas que é algo que altera a percepção dos motivos da personagem principal, e portanto estraga, de certa forma, o ambiente que havia sido tão bem construído até então. O filme não precisava disso para resultar, como se prova pelo simples facto de que estava a ser (e é!) um fascinante thriller de espionagem, e não é, de todo, este pedaço final de informação que lhe dá maior dimensão. Muito pelo contrário.
Mesmo assim, ‘The Odessa File’ é um dos meus filmes de referência de 'espionagem de Guerra Fria' / 'Nazis querem voltar ao poder', em solo alemão. É um thriller simpático que tem doses adequadas das várias componentes necessárias: tensão, investigação e espionagem, e que descreve bem o ambiente e as emoções conflituosas da geração perdida de jovens alemães dos anos 1960, a tentar encarar o passado bélico recente dos seus pais e fazer justiça (embora com o ambiente mais alienado do cinema dos anos 1970). Tem uma boa história, cativante do inicio ao fim, boas interpretações principais (ainda Derek Jacobi como o agente que faz os passaportes falsos para os membros da ODESSA) e claro, um vilão clássico que todos adoramos, o ameaçador velho Nazi a tentar recuperar a glória perdida (de novo, um incrível Schell), que ainda tem tempo para o seu discurso maléfico de ‘vamos governar o mundo outra vez’. Verdade que o filme é um pouco desequilibrado emocionalmente e até estruturalmente (algumas cenas são talvez excessivamente prolongadas e perdem o interesse), a revelação final não parece encaixar muito bem na história, e alguns dos actores secundários têm interpretações algo rígidas (talvez porque estão a interpretar alemães e velhos Nazis?!), mas no global é um thriller cativante e emocionante, um daqueles que sentimos muita falta neste cinema moderno, Não é preciso muito mais neste género para satisfazer e ‘The Odessa File’ está no lote restrito dos filmes que satisfaz.
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