Realizador: Ridley Scott
Actores principais: Matt Damon, Jessica Chastain, Kristen Wiig
Duração: 144 min
Crítica: A crítica resumida de ‘The Martian’, o mais recente filme de Ridley Scott e nomeado para uns surpreendentes 7 Óscares (surpreendentes tendo em conta a qualidade geral do filme) é bastante simples. Resumindo, resumindo, ‘The Martian’ é um filme em tudo semelhante a ‘Gravity’, mas em vez de se passar na órbita terrestre, passa-se no planeta vermelho. Claro que há diferenças estéticas. ‘Gravity’, por exemplo, tem uma fotografia belíssima (é aliás o seu melhor atributo) enquanto ‘The Martian’ surpreende pela negativa nesse departamento, se pensarmos no habitual padrão dos filmes de Ridley Scott. Mas o que é importante, pelo menos na minha perspectiva avaliativa, é que ambos os filmes têm exactamente o mesmo tom. Podem ser ostensivamente aventuras de sobrevivência em condições extremas, e usam o espaço e tudo o que daí advém para criar essa tensão artificialmente, mas não a têm verdadeiramente. É tudo fachada. ‘Gravity’ e ‘The Martian’ partilham o tom comercial, a enorme frouxidão da aventura, imbuída de uma estranhamente natural simplicidade (herói que é herói consegue fazer tudo sem esforço) e são extremamente superficiais em termos de emoções. Se virmos para além da fotografia, para além da estética da história de sobrevivência, então chegamos à conclusão que até ‘Armageddon’ (1998) tinha mais profundidade na sua aventura espacial de salvamento que estes dois filmes. E tenho dito.
Mas então qual é o segredo do seu sucesso? O mesmo que ‘Gravity’ claro. O seu comercialismo fácil, a sua aventura épica mas nada complicada, a sua história de coragem mas sem emoções complexas para que todos os espectadores a possam digerir. Rimo-nos de desdém da Academia ao pensar que o ano passado ‘Intersteller’ não foi sequer nomeado para Óscar de Melhor Filme nem de Melhor Realizador, ao contrário de ‘Gravity’ (que ganhou a de realizador!) e agora ‘The Martian’, um dos grandes nomeados do ano. ‘Intersteller’ era profundo, inteligente, filosófico, o ‘2001: A Space Odissey’ da nossa geração, um filmão que outros apenas podem sonhar ser. Mas isso é demasiado para uma cerimónia de prémios que tem, por meras necessidades financeiras, de homenagear filmes acessíveis para todos os públicos, e pouco complicadinhos, não vá um produtor ficar com dores de cabeça. E ‘The Martian’ tem todas essas características. O que o distingue de um filme de sobrevivência na selva amazónica? Nada. Aliás, pelo que o filme mostra, até é mais fácil sair de Marte do que muitos filmes já mostraram que era sair da selva. O que o distingue de outros filmes sobre Marte como ‘Mission to Mars’ (2000) de Brian dePalma? Simples, a ausência da abordagem de questões profundas sobre a existência e o lugar dos humanos no universo. Isto não é necessariamente uma desvantagem (nem todos os filmes precisam de o fazer), mas há um enorme, bastante perceptível, vazio no conteúdo, na substância deste filme, algo que é mais surpreendente vindo de quem vem.
Quando critiquei ‘Robin Hood’, o filme de Scott de 2010, comecei por dizer que sempre gostei do seu trabalho. Isto é, o antigo. O trabalho daquele senhor que contribuiu imenso para o estilo visual de topo do cinema americano com filmes como ‘Alien’ (1979), ‘Blade Runner’ (1982), ‘Legend’ (1995) e mais tarde ‘Thelma & Louise’ (1991), ‘1942: Conquest of Paradise’ (1992) e ‘Gladiator’ (2000), o seu grande triunfo cinematográfico nos Óscares, mas que não lhe valeu a estatueta de realizador (Óscar é algo que Scott ainda não ganhou até hoje…). Desde então, contudo, tenho achado os filmes de Scott muito inconstantes. Scott não envelheceu a madurar o seu estilo, como fez por exemplo Michael Mann. Em vez disso, grandes épicos fez poucos (‘Prometheus’, 2012) e a sua carreira tem sido pontilhada de filmes extremamente ambiciosos mas cujos argumentos têm deixado muito, mas mesmo muito a desejar ('Hannibal', ‘Robin Hood’, American Gangster’, ‘The Counselor’, ‘Exodus: Gods and Kings’). No início da sua carreira, Scott era o expoente do autor americano de blockbusters que continuamente ia contra as convenções do sistema, produzindo assim obras de arte desafiantes e estimulantes. Recentemente, parece ter deixado de ter forças para continuar essa luta e acomodou-se numa posição de ‘antigo grande realizador’. O seu trabalho em ‘The Martian’, por seu lado, é o expoente máximo dessa, chamemos-lhe, preguiça, caracterizado mais uma vez por um argumento fraco e onde até a sua extraordinária mestria visual, na estética da cena, na gestão dos planos, no design de produção, está misteriosamente ausente. Nunca diria que este era um filme de Scott se não o soubesse. Mas também, infelizmente, este é um filme feito no argumento e na produção. O trabalho do realizador, num produto final como este, é mecânico e o filme sairia de forma igual qualquer que fosse o homem por detrás das câmaras.
Como comecei por dizer, ‘The Martian’ é uma historieca fácil de sobrevivência, mas usa o cenário do espaço para dar aquela tensãozinha extra que de outra forma o filme, por aquilo que oferece ao espectador, nunca teria. Quando o filme abre (com uma fotografia pouco impressionante e memorável, que se repercutirá ao longo do filme) estamos em Marte e assistimos aos trabalhos de uma equipa de astronautas americanos. Supomos que estamos num futuro próximo mas não há qualquer tipo de enquadramento, nem das personagens, nem temporal, nem científico. Aliás, o filme não oferece qualquer tipo de explicação científica, nem de como lá chegaram, nem sobre o objectivo da sua missão, nem sobre qualquer outro evento subsequente. Nem sequer se digna de vez em quando a tentar enveredar por algum jargão técnico, só para disfarçar. Quando precisa, alguma personagem lá se lembra de fazer um qualquer tipo de desenho exemplificativo ou uma comparação simplista; nunca para a personagem que está ao seu lado claro (se são todos da NASA, não precisam de ser ensinados), mas sempre para o espectador. E mesmo quando o próprio herói diz algures no filme que usará a ciência para se salvar, em tom ‘frase-trailer’, o espectador fica à espera de algo mais ousado, que nunca chega. O filme foi promovido como um ‘McGyver em Marte’, mas McGyver fazia mais em três minutos de um episódio que Matt Damon faz em todo este filme. Sejamos sinceros, quem escreveu este argumento percebe muito pouco de ciência espacial, e o pouco que usa rouba de outros filmes (o mais notório ‘Apollo 13’, 1995, que serve de inspiração a todo o plano da NASA). E isso é um grande turn off, se não para o público em geral, pelo menos para mim. Até os filmes de ficção científica dos anos 1950 eram mais elaborados que ‘The Martian’.
Logo na primeira cena os astronautas são surpreendidos por uma tempestade. Lutando para chegar à nave, um deles, Mark Watney (Damon, no seu segundo papel seguido de ‘astronauta perdido’ após ‘Intersteller’!) é atingido por um detrito e é atirado para longe. Os seus companheiros assumem que ele está morto e no desespero do momento não têm outra hipótese senão levantar voo sem ele. Até aqui tudo bem, mas parece-me inexplicável como a tempestade marciana tenha proporcionado o cancelamento imediato de toda a missão e a ordem de retorno efectiva dos astronautas à Terra (que recorde-se está a 9 meses de viagem de distância). Quer dizer, não podiam ter ficado a orbitar Marte durante umas horas e regressar ao trabalho depois da tempestade passar? Afinal, deixaram lá todo o seu equipamento, todas as amostras recolhidas, etc. Para quê iniciar logo a viagem de volta para a Terra? Não faz muito sentido. O objectivo, claro, é simples: é estarem longe, bem longe, quando se descobre que Watney não está morto e que ficou, sozinho e abandonado, em Marte. Senão não havia filme.
E aqui entra mais um pormenor inexplicável desta película. Como Watney, Damon tem talvez uns dois segundos de hesitação, dois segundos esses que constituem 90% da profundidade emocional da sua personagem. A partir daí, e da frase, dita sem intensidade nenhuma “Não, não vou morrer aqui”, Watney transforma-se numa espécie de super-herói, daqueles que sabe sempre tudo o que deve fazer, nunca hesita, nunca teme, e tem recursos infindáveis na manga. Raramente temos um plano de introspecção, e quando temos é abafado logo pelo ‘heroísmo’ certo e seguro que se segue inevitavelmente. Assim sendo, Watney inicia os seus pobres macgyverismos em Marte para conseguir sobreviver. Chamo-os pobres não por não serem inventivos (até são), mas porque são sempre demasiado, oh demasiado fáceis, para gerarem qualquer tipo de tensão, excitação ou nervosismo no espectador. Quem iria gostar de futebol se já soubesse todos os resultados anteriormente? Quem pode torcer por um herói que tudo o que faz, faz bem, e se algo por acaso corre mal em três segundos o resolve?! Pior ainda, todos os recursos de Watney são incrivelmente pedantes, exacerbados pelo facto de ele narrar tudo o que está a fazer, com um elevado grau de presunção, para as câmaras da base: “Vejam como eu sou espectacular”. Encontro muito pouca humanidade nesta personagem. É 'apenas' um herói cinematográfico.
Paralelamente, na Terra, os especialistas da NASA (incluindo o seu director Jeff Daniels, o director de voo Chiwetel Ejiofor e o consultor Sean Bean que ainda consegue inserir uma private joke do Senhor dos Anéis – de longe o melhor momento do filme), lutam para arranjar um plano para trazer Watney de volta. Muito fazem, muito especulam, muito giram à volta dos mesmos assuntos, mas com muita pouca consequência e, como disse, acabando por encontrar um plano estranhamente semelhante ao de filmes espaciais anteriores. Ao mesmo tempo, os tripulantes da nave (incluindo Jessica Chastain, Michael Peña e Kate Mara) estão prestes a chegar à Terra após nove meses, mas poderá ser mais eficiente voltarem para trás e serem eles a ir resgatar o amigo que deixaram para trás, antes que a sua comida ou oxigénio acabe…
Há duas coisas que para mim não funcionam, de todo, em ‘The Martian’. Primeiro é essa personalidade extremamente convencida de Watney. No final do filme, ele diz que não houve um segundo da sua aventura que não tenha pensado que não iria morrer. A sério? Não parece. Claro que ele tem uns brevíssimos momentos de desespero de quando em quando (é uma condição sine qua non) e o seu corpo sofre, magro e com escoriações, de subnutrição (embora nota-se claramente que não é o corpo de Damon – a sua cara e corpo nunca são filmados ao mesmo tempo), mas não é nesses momentos que o filme se foca, nem é a emotividade desses momentos que fica a perdurar no filme e no espectador. Ele podia ser presunçoso e convencido apenas por fachada, para encontrar forças para sobreviver mais um dia, mas as partes mais emocionais do filme tinham de ser subtis o suficiente para revelar isso, mesmo que nada fosse mostrado. Mas não revelam e de subtil o filme tem pouco. Watney é assim porque os heróis cinematográficos modernos são assim. E mais nada. Portanto os seus supostos sacrifícios finais não são mais que actos de heroísmo fácil e superficial, como quando o herói de acção salta de um avião para um autocarro sem pensar duas vezes. Não é por ser estar no espaço, nem por este ser supostamente um filme 'sério', que a psicologia das suas atitudes vai ser diferente da de, por exemplo, Jason Statham em ‘Crank’ (2006). Sabe que vai morrer por isso arrisca tudo. Ok, e depois?!
A segunda coisa está na forma como a realização e a edição geram a passagem do tempo. Estamos a falar de quase quatro anos de período fílmico que, estranhamente, passam como se fossem um par de semanas. O filme de quando em quando coloca uns intertítulos para assinalar a passagem do tempo, mas isso não é suficiente. Watney ainda aparece com barba, mais desgrenhado, mais cansado, mais magro, mas até a sua viagem de 50 dias pela superfície de Marte para chegar a uma antiga nave passa com a brevidade (e a facilidade) de uma sequência musical. Mas nenhum dos senhores da Terra altera um milímetro ao longo desses quatro anos, nem em discurso, nem em aparência, e de igual forma os outros astronautas da nave, que passam quase três anos lá fechados enquanto viajam para trás e para a frente no espaço, não parecem sofrer qualquer mutação. Qualquer personagem deste filme, em qualquer uma destas três frentes, aparece apenas quando é conveniente (o próprio Damon desaparece durante quinze minutos numa altura em que o foco está na missão de salvamento da Terra), sempre na forma como foi descrita nas cenas iniciais, sem qualquer alteração física, psicológica ou discursiva, por mais anos que passem. Incrível, especialmente para os viajantes espaciais. E que dizer da sequência final em que, após se ter estabelecido anteriormente que as ligações rádio até Marte têm um atraso de meia hora, parece no entanto, através da montagem do filme, que os cidadãos americanos estão agarrados à sua TV para assistir ‘em tempo real’ ao desfecho da aventura?!
Enfim, creio que já desanquei neste filme o suficiente. Isto é meramente a minha opinião, mas achei ‘The Martian’ um exercício simplório, mal gerido e mal filmado, muito abaixo das capacidades de Ridley Scott. Matt Damon tem uma excelente interpretação como Watney, mas a psicologia da sua personagem deita tudo a perder. E esta constatação pode servir para todos os restantes elementos deste filme que tinha tudo, sinceramente, para ser intenso, mesmo sem abdicar da sua forte veia inspiradora. A palavra-chave deste filme é “facilidade”, a mesma facilidade que caracteriza o cinema americano moderno e os seus heróis. Anteriormente tínhamos suor e luta e dificuldade, momentos de insegurança e incerteza, e sacrifícios que tinham de ser feitos para chegar a um final feliz. Sentíamos a dor das personagens, o peso da passagem do tempo, o esforço da sua dedicação e um olhar revelava-nos o seu conflito interior. Ainda este fim de semana vi o icónico filme francês ‘Rififi’ (1955), onde o roubo da joalharia demora mais de 30 minutos e sentimos a enorme tensão e o enorme esforço das personagens, tanto que um alfinete a cair leva o espectador ao desespero. Mas agora já não é assim. Nos filmes de roubo tudo acontece com enorme charme e à vontade (veja-se a trilogia ‘Ocean’s'), e em filmes como ‘The Martian’ também. É o contraste entre o esforço que Luke Skywalker teve para se tornar um Jedi, ao longo de três filmes e só conseguindo após grande sofrimento e tentação do lado negro da Força, e a enorme facilidade com que Rey o faz em ‘The Force Awakens’. Suponho que seja um sinal dos tempos.
‘The Martian’ merece as suas 7 nomeações para Óscar, sem dúvida. Isto é, se interpretarmos os Óscares como a expressão máxima do comercialismo fácil e acessível, dos filmes superficialmente épicos mas sem conteúdo, inspiradores em fachada mas sem profundidade dramática, e em que sabemos sem sombra de dúvida, tal como o herói, que tudo vai acabar bem, desde o primeiro segundo. No final é suposto aplaudirmos e sentirmo-nos inspirados, como quando Sandra Bullock se erguia na areia no final de ‘Gravity’. A quem se consegue sentir inspirado felicito, pois é capaz de ter tido uma experiência cinematográfica interessante. Eu não consigo, pois para isso acontecer tenho de me unir à personagem, e percorrer o seu arco emocional, do desespero à glória, com ela. Nada disso consegui fazer em ‘The Martian’, porque nunca senti realmente o perigo, nem a dor, nem a dificuldade. E, cinematograficamente falando, tirando o rol de grandes actores, tudo é moroso (a realização, o ritmo, o argumento) e desprovido de sabor estético. É do mesmo tipo que filmou ‘Alien’ e ‘Blade Runner’?! A sério?! Não parece. Acho que a contrariedade constante, e a tristeza cansada estampada na cara de Sean Bean ao longo de todo o filme é mais que suficiente para reflectir a minha opinião. Ele pode estar a retratar os sentimentos da sua própria personagem, mas num enorme pedaço de ironia está a retratar os sentimentos dos espectadores.
Um filme banal, baseado numa história banalíssima, um oco filme de sobrevivência para as massas nas pisadas de ‘Gravity’ e com uma profundidade rivalizando a de ‘Armageddon’, que nunca surpreende, que nunca choca, que nunca tem surpresas, e que se pudesse bem gostaria de ter estampado no início ‘baseado numa história verídica’ só para completar o seu quadro de filme-Óscar na perfeição. Eu chamei a ‘Intersteller’ um filme monumental e escrevi “A partir de agora, a ficção científica vai passar a ser julgada por 'Intersteller', como foi um dia revolucionada por '2001'". E até poderia acrescentar como um dia foi julgada por ‘Blade Runner’ do próprio Scott. ‘The Martian’ é dar cinquenta passos atrás nesta vertente, é abdicar da arte pelo comercial, da inteligência pelo lucro, da subtileza pelo espalhafato oco. É abdicar de grande cinema em prol de cinema que dois dias após a cerimónia dos Óscares irá ser esquecido para sempre, varrido para baixo de um tapete de banalidades. Esperemos que com ‘Alien: Covenant’ (2017) Scott regresse ao Cinema. Mesmo.
0 comentários:
Enviar um comentário
Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).