Realizador: Woody Allen
Actores principais: Joaquin Phoenix, Emma Stone, Parker Posey
Duração: 95 min
Crítica: ‘Irrational Man’ (em português ‘Homem Irracional’) é um marco visto que é o 50º filme de Woody Allen. Na verdade, se é ou não é o 50º filme de Woody Allen é um assunto que largamente se debate nos meandros cinematográficos, porque há quem conte ou não conte o seu primeiro filme ‘What's Up, Tiger Lily?’ (1966), o filme que co-realizou com Coppola e Scorsese (‘New York Stories’, 1989) ou trabalhos para a televisão como ‘Don’t Drink the Water’ (1995). Se se contar com todas estas entradas, como eu conto, então estamos a celebrar um feito raríssimo, digno apenas de génios prolíferos como Hitchcock; a meia centena de filmes. E o que mais se salienta no trabalho deste judeu nervoso e com constantes problemas existencialistas que desde o final dos anos 1960 faz religiosamente um filme por ano é a qualidade do seu espólio, que tantas décadas depois não deixa de surpreender. Após 40 anos de carreira Allen ainda conseguiu desencantar da sua cartola ‘Match Point’ (2005) ou ‘Vicky Christina Barcelona’ (2008) ou ‘Midnight in Paris’ (2011) ou ‘Blue Jasmine’ (2013), todos geniais.
Na minha crítica no ano passado a ‘Magic in the Moonlight’ defendi Allen dos que chamavam aos seus filmes ‘apenas’ rotina, rondando sempre os mesmos temas e fazendo recordar os seus filmes anteriores. É verdade que os filmes de Allen existem no seu próprio universo desde sempre, mas é precisamente essa a ideia. São a própria extensão do seu olhar sobre a vida, mas mais ou menos conseguidos (e não nos desenganemos, há filmes de Allen menos conseguidos – ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’, 2010, o exemplo mais recente), estão sempre, como escrevi “muito acima da oferta contemporânea, e dão-nos motivos para sorrir, para amar a vida e amar o cinema” e possuem “aquela magia cinematográfica que caracteriza um grande cineasta, bem como pequenas pérolas, numa actuação, numa cena, numa frase que capta um sentimento, que facilmente fazem esquecer que se calhar já vimos aquele filme antes com outras personagens”.
Em anos recentes os filmes de Allen têm ainda tido outro twist que tenho apreciado bastante. O seu olhar sobre a vida, as suas constantes dúvidas existenciais, que até há pouco tempo tinham sido reflexões egocêntricas, divididas entre o cómico e o dramático, começaram a ganhar uma dimensão universal. É como se Allen, agora a poucos meses de completar 80 anos de idade, estivesse a reflectir sobre o que há depois da vida, e sobre o legado que deixamos para trás. Em ‘Midnight in Paris’, Allen reflectia sobre, como escrevi “O que define uma era? O que faz dela boa? Devemos manter-nos ligados ao passado e à riqueza que nele se criou, ou devemos encontrar a nossa própria magia e riqueza no presente, aqui e agora?”. Em ‘Blue Jasmine’ Allen apresentava, como escrevi “um estudo realista de uma vida, dos sonhos de juventude que se perdem pelo arrastar da corrente do tempo, e da impossibilidade de começar de novo devido à pressão do passado, que se recusa a fugir”. Por fim em ‘Magic in the Moonlight’ Allen fez uma reflexão “sobre a vida e sobre a morte, e sobre o motivo de estarmos no Universo (uma reflexão natural e real, não artística e estilizada como quando Allen tentava imitar Ingmar Bergman nos anos 1970)”, reflexão essa à qual chamei a mais bem trabalhada e profunda de todos os seus filmes. Se em ‘Blue Jasmine’ Allen podia ser algo pessimista, em ‘Magic in the Moonlight’ e em ‘Midnight in Paris’ Allen era esperançoso, como se tivesse que avaliar todas as perspectivas antes de se decidir.
E em ‘Irrational Man’ Allen parece estar de novo a testar o outro lado da balança. A primeira metade do filme tem um tom pesado e pessimista, que a personagem de Joaquin Phoenix, Abe, encarna na perfeição. Aliás, Phoenix parece estar ainda sob a influência das filmagens de ‘Inherent Vice’, da forma pedrada e arrastada como interpreta Abe. Este é um reputado professor de Filosofia que quando o filme começa se muda para uma pequena cidade universitária americana para começar a dar aulas num novo semestre. A sua reputação como professor de Filosofia é imaculada, os seus livros e as suas teorias são famosas (o que obviamente permitirá a Allen introduzir alguns dos seus diálogos costumeiros, mas nunca enfadonhos), mas a sua reputação pessoal deixa muito a desejar. Cedo se espalha pela pequena comunidade como Abe ganhou, em Universidades anteriores, a reputação de ladies man (incluindo ter casos com alunas) e de bêbado inveterado e depressivo. Quando chega Abe nada faz para afastar esta imagem, arrastando-se pelo campus e pelas aulas com aspecto desgrenhado e apresentando pouca vontade de viver e sentir a vida. É uma personalidade depressiva não cómica como nunca se viu num filme de Allen. Aliás o filme não tem uma única piada, o que é surpreendente vindo de quem vem.
No início o filme estabelece este enquadramento entrelaçando duas voz offs, a de Abe e a de Jill, interpretada pela nova musa de Allen, Emma Stone. Aqui, Emma Stone está mais rotineira e apagada, provavelmente porque o seu papel é menos ambíguo que aquele em ‘Magic in the Moonlight’. Aliás achei que Parker Posey, no papel da professora de Química, uma espécie de dona de casa desesperada da pequena cidade, que sonha deixar o marido enfadonho e ir viver para a Europa e que é a primeira a relacionar-se com Abe, muito mais fascinante e até sexy que Emma Stone. Já esta interpreta uma aluna de Abe, de boas famílias e com o namorado perfeito mas que é demasiado romântica para este enquadramento estereotipado. Logo se crê apaixonada pela alma atormentada que é Abe, e iniciam uma relação de amizade, assente num fascínio comum pela literatura e pela filosofia.
Nada neste enquadramento parece afastar-se muito de filmes de Allen anteriores, em particular ‘Husbands and Wives’ (1992), onde Allen também se sentia tentado a ter um caso com a sua estudante interpretada por Juliette Lewis. Em ‘Irrational Man’ o Abe de Joaquin Phoenix é também depressivo mas nada consegue tirá-lo desse estado de letargia, nem a bebida, nem as mulheres, nem o novo emprego. Perdeu a razão de viver e vê a própria filosofia que ensina como uma grande treta. O filme alterna alguns excertos da suas aulas (uma desculpa para algumas discussões filosóficas) com a sua rotina enfadonha, e depois revela o seu abrir gradual de sentimentos. Primeiro com Rita, com quem tenta ter um caso, mas não consegue devido à sua impotência, e depois com Jill, numa relação que vai ficando mais profunda embora ainda platónica (ela queira mais; ele é que com alguma réstia de humanidade se recusa a ceder à tentação). O filme gira constantemente à volta dos mesmos temas, com boas interpretações e diálogos é certo, mas recusando-se a sair do sítio. O filme parece sofrer da própria letargia que caracteriza a personagem de Abe e não tem muita pressa em avançar.
Contudo isto não é uma novidade no cinema de Allen. ‘Match Point’, por exemplo, era um filme que demorava quase 45 minutos a arrancar. Quem conhece os dramas de Allen sabe que têm um sabor monocórdico, mas que se safam do enfado pela criação de um ambiente fascinante, de situações, de personagens, que antecedem a surpresa que está para vir. Antes Allen dava choques emocionais nos seus dramas, mesmo que fossem incrivelmente subtis. Mais tarde, enveredou por choques mais abertos, incluindo actos de inesperada violência (‘Match Point’, ‘Cassandra’s Dream’). Mas mesmo aí não era a violência em si que era importante, mas sim a forma como influenciava as personagens. Em ‘Irrational Man’ não temos um momento de viragem tão forte nem tão profundo como em ‘Match Point’, por exemplo, mas o filme ainda tem uns truques na manga, que o fazem virar bruscamente de direcção, apanhando o espectador de surpresa.
Um dia num café, Abe e Jill escutam uma conversa numa mesa ao lado, de uma mãe que irá perder a custódia dos filhos para um pai negligente, somente porque o advogado do pai conhece o juiz e entre os três fizeram um arranjinho corrupto. Ao discutirem a injustiça desta situação, Jill e Abe matutam se o mundo seria um lugar melhor sem esse Juiz corrupto. Para Jill isto é apenas mais uma conversa filosófica. Mas para Ave não. Sedento por um acto que dê um significado e um objectivo à sua vida e um propósito que lhe dê energia para continuar a viver, Abe decide em segredo que irá matar o juiz, num plano que faz lembrar ‘Strangers on a Train’ (1951) de Hitchcock. Fá-lo-á? Levará a sua deturpada convicção filosófica até ao fim? E como é que isso afectará o seu olhar sobre a vida, as suas relações com Jill e Rita e, mais importante, a sua relação consigo próprio e com o seu eu (ir)racional?
‘Irrational Man’ é mais um filme de Allen que se debruça sobre a moral por detrás da obra ‘Crime e Castigo’ de Dostoiévski, que certamente (só pode) será uma das suas preferidas. ‘Crimes and Misdemeanors’ (1989) foi a sua primeira grande obra dramática a reflectir sobre as consequências emocionais de um crime, e com ’Match Point’ Allen foi muito mais longe, deixando o criminoso safar-se incólume, o que desagradou muitos críticos. Por isso, Allen respondeu com a obra-prima ‘Cassandra’s Dream’, um filme que mostra o quão difícil (física e emocionalmente) é matar, e depois desemboca num estudo fabuloso sobre o remorso, onde os criminosos têm a paga que merecem no final. ‘Irrational Man’ existe neste universo de questões, revisitando-as mas não as repetindo, pois como de costume pondera uma nova perspectiva. Uma das riquezas de ‘Irrational Man’ é que a personagem de Abe e a sua complexidade nunca foram vistas em filmes anteriores de Allen, por isso as suas escolhas e os seus sentimentos também serão originais e gerarão reacções novas e genuínas no espectador. Da mesma forma que, após tantas musas e heroínas femininas, Allen ainda conseguiu criar a personagem de Cate Blanchett para ‘Blue Jasmine’, seduzindo completamente o seu público, o Abe de Phoenix também cativa e até ao final o seu arco emocional fascina-nos. Mas isso não é suficiente e ‘Irrational Man’ é claramente o pior filme de Allen no universo ‘Crime e Castigo’.
O problema, creio eu, parece estar na pouca energia que o filme possui, apesar da atracção das suas personagens, e na história simples e eficaz, mas inevitavelmente linear que contém. O filme, obviamente, não tem o ambiente romântico de outras entradas de Allen que nos fascinavam pela sua fotografia, quer fosse o Sul de França em ‘Magic in the Moonlight’ ou os restantes destinos europeus do passado recente de Allen. Mas mesmo os seus dramas ‘walk and talk’ na América tinham a energia da sua localização (Manhattan mais proeminentemente), que também se reflectia nos interiores (os famosos apartamentos de Allen), enquanto ‘Irrational Man’ é geograficamente anónimo e tem pouco sabor, tirando o sítio à beira mar (o que aparece no poster), para onde Abe constantemente se retira para reflectir, e uma engraçada cena na feira popular. Mas se o lado dramático nos deslumbrasse completamente nem notaríamos esta, chamemos-lhe, falha. Contudo, o desenrolar da história de ‘Irrational Man’ parece ficar constantemente a meio termo.
A química romântica fica a meio termo, já que há mais energia e tensão sexual entre Phoenix e Posey do que entre Phoenix e Stone, atirados para os braços um do outro só porque o argumento diz que sim. A reflexão existencialista fica a meio termo, dada por pequenas pontadas que vêm e vão, que andam e círculos mas não evoluem. ‘Magic in the Moonlight’, apesar de ser ‘apenas’ uma comédia romântica, apesar de ter personagens muito menos convincentes e trabalhadas que ‘Irrational Man’, tinha essa reflexão mais bem executada, e conseguia ficar com o espectador muito depois de este ter visto o filme. O mesmo não acontece em ‘Irrational Man’. E por fim o próprio thriller fica a meio termo, porque não tem profundidade dramática suficiente, nem o escape do humor negro, ambos que Allen sabe fazer como um mestre, mas que aqui, por algum motivo, não o faz. Será o peso da idade? Será a incapacidade de aprofundar ou brincar com um material que, com a sua idade avançada, finalmente encara como inevitável e com o peso receoso do realismo, e não “apenas” com a neura de outros tempos? Aqui tocam-se questões pertinentes mas fica-se sempre pela reflexão superficial; das emoções, das ambições, dos remorsos, como se as personagens se esquecessem das experiências por que acabaram de passar. Às vezes, depois do momento de viragem, as personagens discutem coisas com a mesma atitude que discutiam no início do filme, como se estivessem apenas a tomar café…
Gostei bastante da personagem de Abe e das ideias por detrás do filme: até que ponto podemos esticar a nossa liberdade de existir e as nossas convicções filosóficas; qual o preço da expressão do nosso ego; qual o valor da vida humana quando comparado com a satisfação de outra vida; podem os homens ‘jogar a Deus’? Mas sinto que desta vez a veia prolifera de Woody Allen, ‘um-filme-por-Verão’, jogou contra ele. Se havia argumento que precisava de mais uns mesitos de maturação era este. O material está todo lá, e o potencial de actuação e realização também, obviamente. Mas, pelo menos para mim, não houve um clique no filme, um momento em que tudo se encaixou no sítio devido.
Terminei a minha crítica a ‘Magic in the Moonlight’ dizendo que era “mais que rotina, mas abaixo da média” (da de Allen, claro está), e que “Woody sabe fazer melhor e dita a tradição que esse melhor mais que provavelmente virá já no próximo ano, pela mesma altura. E nós vamos estar cá para vê-lo, e aplaudir”. Infelizmente não foi desta vez. Claro que ‘Irrational Man’ é muito mais cinema que a maior parte dos filmes que estrearam por estas semanas nas salas portuguesas. Com Allen, não há que enganar. Mas o seu espólio é tão grande que a comparação é inevitável. Este não é o melhor Allen. Depois de ‘Midnight in Paris’, ‘Blue Jasmine’ e até certo ponto ‘Magic in the Moonlight’, ‘Irrational Man’ é uma pálida imagem das reflexões existencialistas que Allen está com queda para realizar na sua terceira idade. Depois de ‘Crimes and Misdemeanors’, ‘Match Point’ e ‘Cassandra’s Dream’, ‘Irrational Man’ não consegue explorar tão bem a temática criminal. Poderá ser suficiente para o espectador ocasional, que receberá uma história simpática que flui com o toque natural do mestre, boas personagens e boas interpretações, e algumas reflexões ‘vintage Allen’, mas para os fãs incondicionais falta qualquer coisa. Mas sem stress. Como Woody Allen provavelmente vai ultrapassar Manoel de Oliveira em idade, temos sempre “para o ano”.
Concordo com tudo em absoluto. Falta apenas falar na músicas escolhidas para o filme. Neste Allen tem a rara capacidade de conseguir misturar um musicas de jazz com clássicas sem perder coerência e estética. Talvez o consiga por ter escutado centenas de vezes Gershwin. Boa Crónica. Abraço
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