Realizador: Kevin Spacey
Actores principais: Kevin Spacey, Kate Bosworth, John Goodman
Duração: 118 min
Crítica: Aqui há umas semanas estreou nas salas de cinema portuguesas o filme ‘Love & Mercy’, uma biografia, ou como se diz em inglês, um biopic, sobre o líder dos Beach Boys. Hoje em dia, este tipo de extravagância biográfica, “baseado numa história verídica”, de cantores ou compositores famosos do século XX não é propriamente uma novidade, mas é muito mais realista e dramática do que outrora foi.
Durante décadas, salvo raríssimas excepções, estes biopics foram uma prerrogativa do cinema televisivo. Frank Sinatra, Dean Martin e muitos outros tiveram o seu simpático ‘filme HBO’, um drama leve e fantasioso, focando-se na lenda, nas músicas, na fofoca, na vida amorosa e só levemente na personalidade. Aliás, era esse o estilo que havia marcado o musical biográfico na idade de ouro de Hollywood. Filmes como ‘Yankee Doodle Dandy’ (1942) com James Cagney a interpretar George M. Cohen (que lhe valeu o Óscar) ou a ‘Night and Day’ (1946), com Cary Grant a interpretar Cole Porter, eram épicas comédias musicais, que não se importavam nada em adulterar os factos reais em prol da espectacularidade e do entretenimento que as músicas destes génios proporcionam. Não procuravam (nem queriam) ser dramas realistas sobre o homem atrás das canções. Queriam celebrar o legado musical destes artistas. E conseguiam-no, com enorme sucesso.
Contudo, naquilo que tem sido a tradição do cinema pós moderno, quanto mais se conseguir convencer o público de que o filme é ‘baseado numa história verídica’, e que os seus dramas realmente ocorreram (mesmo que isso não seja totalmente verdade), melhor. Quando mais temos acesso à informação, quanto mais a arte de fazer cinema se banalizou, quanto mais as redes sociais se expandiram, o cinema pareceu esquecer-se da sua componente de entretenimento escapista. Foi-se de um extremo ao outro do espectro. Cantar e dançar no meio da rua só porque sim, só porque a música o incitava, ficou démodé. Perder duas horas de filme a focar-se nos dramas íntimos de um cantor, tentar provar desesperadamente que tudo e todos estavam contra ele, que era um génio incompreendido, e que todas as suas falhas eram perdoáveis porque simplesmente tinha talento na sua profissão escolhida tornou-se o bê-á-bá destas adaptações. Um exímio banqueiro com problemas de droga é um drogado. Um exímio músico com problemas de droga é um incompreendido que tem mais talento do que aquele que um ser humano consegue suportar nesta mera existência e por isso merece ser louvado como um mártir. Escrito assim parece uma patetice… Lá está.
É por estas razoes, que não vale a pena continuar a discutir, que ‘Beyond the Sea’ (em português 'Bobby Darin - O Amor é Eterno'), tal como a recente obra-prima de Clint Eastwood ‘Jersey Boys’ (2014) são casos à parte no biopic musical moderno. Focam-se nas músicas, na fantasia e na lenda. Em ‘Beyond the Sea’ são as músicas, e a forma como o realizador as interpreta, que constituem a base do filme. A compreensão da personagem é feita através da música. Os juízos de valor são feitos através da música. E é assim que deve ser. Quando ouvimos um álbum cada um de nós tem a sua própria interpretação. Ao conceber o filme desta maneira o realizador permite que ocorra essa mesma ambiguidade na forma como o espectador recorda quem foi Bobby Darin, e aquilo que as suas músicas significaram, ou significam, para si. Ao mesmo tempo, permite que novos públicos, que não sabem quem foi Darin e que não conhecem as suas músicas, entrem no seu universo. Se o filme se focasse no drama da sua vida não creio que se conseguisse atingir este objectivo tão universal. Como todo o filme é um gigantesco videoclip, um musical “à antiga” e não uma história "real", tal conexão é possível.
‘Beyond the Sea’ é um filme sobre, não a vida, mas o legado musical do cantor/actor Bobby Darin, que faleceu em 1973 aos 37 anos de idade (não, não foi de overdose, foi com problemas de coração) e que em 1962 chegou até a ser nomeado para um Óscar de Melhor Actor Secundário. Reza a lenda que este projecto já andava a rondar Hollywood desde 1987, quando Bruce Willis estava associado ao papel principal e Barry Levinson à cadeira de realizador. Muitos realizadores e actores depois (incluindo Johnny Depp e Leonardo DiCaprio) a pasta foi finalmente parar a Kevin Spacey. Por esta altura Spacey já havia ganho os seus dois Óscares (Actor Secundário em ‘The Usual Suspects’, 1995, e Actor Principal em ‘American Beauty’, 1999), e o seu poder em Hollywood aliado à sua paixão por Darin finalmente catapultaram este projecto para a frente. Spacey acabou por assumir o papel principal (outra coisa não seria de esperar), mas também o de argumentista (em parceria com Lewis Colick) e até o de realizador, um cargo que só havia desempenhado uma única vez no pouco visto ‘Albino Alligator’ de 1996. Na minha opinião Spacey beneficiou de alguma popularidade destes ‘projectos pessoais’ após o bem-sucedido ‘Frida’ (2002), o labour of love de Salma Hayek, mas também do ressurgimento do musical pós ‘Chicago’ (tal como descrevi na minha crítica a ‘Nine’) e até, arrisco-me a dizer, da nova versão de ‘Beyond the Sea’, a mais popular música de Darin, cantada por Robbie Williams para a banda sonora de ‘Finding Nemo’ (2003).
É portanto sem surpresa que ‘Beyond the Sea’ tenha os mesmos tiques desses musicais contemporâneos; a estrela de Hollywood a usar a sua própria voz para cantar as canções (por mais que Spacey se esforce, se isto é uma homenagem a Darin, porque não se usa a voz dele?!), e a quebra do espaço/tempo fílmico quando entram os números musicais, para que mais facilmente o público moderno os aceite. Mas pelo menos neste filme, ao contrário de outros, esta quebra faz sentido, precisamente porque se assume que todo o filme é uma fantasia e que a história não irá ser contada de uma forma directa. Logo na primeira cena, Darin está no plateau de um estúdio, onde se está a interpretar a si próprio num filme sobre a sua vida. O filme dentro de um filme, e a gradação tripla Spacey a interpretar Darin a interpretar Darin conduzem-nos imediatamente para a ilusão do entretenimento, onde a fachada luminosa e glamorosa escondem as verdadeiras pessoas que nunca iremos conhecer. Tudo o que alguma vez iremos saber é aquilo que elas nos revelam através da sua arte. Quando Darin conhece o jovem actor que o irá interpretar em criança neste filme dentro do filme (o actor William Ullrich, não propriamente a criança mais talentosa de Hollywood…) ocorre um qualquer fenómeno metafisico entre ambos, que só o espectador tem o privilégio de ver. Como o proverbial Fantasma do Natal Passado de Dickens, Darin e o seu jovem eu viajam pelos momentos mais marcantes da sua vida. Mas não são os momentos reais. Ou melhor, são, mas estão envoltos pelo manto do sonho e da fantasia. Como se diz em ‘Jersey Boys’, isto é verdadeira história, mas como cada um a recorda. ‘Beyond the Sea’ pode ser a ‘verdadeira história’ de Darin, mas é aquela que é contada ao som das suas músicas, numa longa sucessão de quase-videoclips.
Esta ideia de base é interessantíssima, ousada para um realizador pouco experiente procurando a arte na sua criação (geralmente são os estreantes que mais experimentam, e ainda bem), mas é tão ousada que parece haver algum medo. No final, quando se iniciam os créditos finais, o filme tem o cuidado de dizer que “algumas liberdades foram tomadas a contar a história” (como se ainda não o tivéssemos percebido!), não vá algum espectador ficar ofendido. E, apesar do que escrevi em cima, e apesar desta escolha ser de louvar, nem tudo são rosas em conceber o filme formalmente desta maneira. Do lado positivo, o filme tem um ritmo fantástico, flui bem e consegue sempre cativar o espectador com a sua sucessão de cores, coreografia de movimentos, excelente design de produção e animada musicalidade, tal como um velho musical de Hollywood. Isto torna as cenas vivas e apelativas, e deste modo a essência da arte de Darin passa para o espectador, sem que sejam necessários muitos diálogo ou grandes cenas dramáticas.
Mas a má consequência desta consciente preocupação pela ilusão, pelo escapismo e pela magia inerente às canções de Darin, é que precisamente falta emoção e drama. O lustro existe, mas não o conteúdo, como se se tivessem esquecido dele ou o tenham simplesmente descartado. No final de contas, o lado emocional tem sempre que existir, por mais ténue que seja, mesmo que esteja apenas subjacente às sequências musicais, para dar força às personagens e criar um elo unificador da fantasia. Em ‘Beyond the Sea’ esse lado praticamente não existe e quando finalmente surge, não é nada convincente. Não se pode ir do oito ao oitenta. O filme tem pouca ou nenhuma profundidade, não pensa nas causas e nas consequências das acções das suas personagens, e estas são completamente superficiais e cliché, algumas parecendo feitas de plástico (bonitas por fora, ocas por dentro e altamente descartáveis). Tal, precisamente, como as personagens dos videoclips de música. O mais berrante exemplo é da personagem de Sandra Dee, o amor da vida de Darin (interpretada por Kate Bosworth), que na primeira metade do filme, quando se conhecem num estúdio de cinema, é completamente desmiolada, mas na segunda metade, quando dá jeito ao filme para marcar pontos emocionais ao retratar o drama conjugal, de repente ganha um cérebro e uma personalidade. O restante rol de actores secundários (John Goodman como o manager, Caroline Aaron como a irmã ou Brenda Blethyn) vê-se igualmente limitado pelas suas personagens, sem grande capacidade para se transcenderem. Apenas Bob Hoskins, no papel de cunhado de Darin, consegue ser a excepção, em mais uma fabulosa interpretação deste muitas vezes pouco recordado grande actor.
Por fim, a montagem ao sabor das músicas e dos momentos marcantes da vida de Darin (os seus primórdios como músico, a sua fama, a sua perda do Óscar, a sua doença) é muitas vezes demasiado preguiçosa, o que faz com que o filme perca força. A determinada altura Darin diz em voz off “e então assinei o meu primeiro contrato discográfico”. Como, quando e porquê? Não sabemos. Na cena a seguir, lá está Darin a gravar num estúdio, sem que saibamos como foi lá parar. Estamos a alimentar a lenda? Ou isso não interessa, são apartes desnecessários, porque só as músicas interessam? Talvez… E talvez por isso o inteiro namoro a Sandra Dee antes do casamento, por exemplo, se resuma a três minutos; o tempo do número musical que dá título ao filme. Não desgosto deste tipo de abordagem, como frisei no início, mas em ‘Beyond the Sea’ divido-me, porque apesar da espectacularidade cénica com que tudo é dado, sobram grandes lacunas pelo meio, quer formais, quer emocionais.
A única maneira de desculparmos, ou pelo menos mantermo-nos em sintonia com a visão de Spacey, é assumirmos que tudo é uma grande ilusão do showbizz. Se o fizermos, dois terços do filme resultarão bem, com set piece atrás de set piece musical, e uma história fina por trás para as ligar. Se as set pieces forem boas, a história pouco importará. Que o diga Fred Astaire ou Gene Kelley. E neste caso até o são. Contudo, nesta era moderna só isso não torna (infelizmente) um filme sustentável, e lá está, o medo parece sempre vir ao de cima neste filme. Um medo assente na ilusão de que um filme precisa de ter 'drama' para ser aceite criticamente. Mas ter conteúdo emocional não implica que tenha necessariamente que haver ‘drama’. Aqui essa confusão ocorre, várias vezes.
Assim sendo, no último acto, nos anos 1960, quando a carreira de Darin abranda e ele começa a abraçar causas politicas, o filme decide que há coisas demasiado sérias para serem tratadas em musical. Portanto enquanto Darin apoia Keneddy, se manifesta contra a guerra do Vietname e se torna um hippie flower power, o filme decide adoptar um formato dramático convencional, e as músicas desaparecem durante mais de 20 minutos. Escusado será dizer que isto desequilibra o filme completamente, que não parece decidir-se sobre aquilo que quer ser. Como disse não se pode, só porque convém, saltar do oito para o oitenta. Especialmente porque tudo aquilo que o filme perde com esta manobra volta a recuperar no final, na última cena. Após a sua morte, Darin (ainda vivo pois a sua lenda ainda está viva) e o seu jovem eu dançam um fantástico dueto, a cena mais bela, poderosa e artística de todo o filme. Aqui voltamos de novo à magia, à fantasia, à ilusão da vida e obra de Darin. Portanto, para quê 20 minutos ‘sérios’, mas não mais eficazes? Para dar uma suposta credibilidade ao filme? Não precisava…
E não precisava porque o verdadeiro objectivo de ‘Beyond the Sea’ é ser um filme sobre a lenda do homem e não sobre o homem, ser sobre o mito da vida e não sobre a verdadeira vida, ser sobre as músicas e não sobre a realidade da sua existência, e, mais importante que tudo, ser sobre o cantor e não sobre o homem por detrás das canções. Este é o ponto diferenciador. O filme é um produto da ilusão, a ilusão que o público, Spacey e outros milhares de fãs têm deste cantor. Esta assumida abordagem, o conceito sobre o qual Spacey assenta o seu filme, quase o tornam absolutamente brilhante. Não se suportando no formato espectáculo-Broadway que tem marcado o musical americano dos últimos 15 anos, mas nos moldes do cinema mais clássico, ‘Beyond the Sea’ oferece duas horas de entretenimento prazenteiro, descontraído e animado, e Spacey demonstra um enorme talento (mesmo!) para deslumbrar com o seu canto e a sua dança. No final as canções permanecem com o espectador e é isso o que interessa.
Mas é suficiente? Não. Falta o ‘quase’. O medo e a pressão do convencionalismo acaba por arrastar este filme para as malhas da banalidade que Spacey tanto tentou evitar. Em ‘Jersey Boys’, Clint Eastwood conseguiu unir o real e o ilusório, desmistificar a realidade para a recontar através das canções e do afecto do público pelo artista. Spacey dez anos antes tentou a mesma coisa mas morreu na praia. ‘Beyond the Sea’ é um filme cheio do brilho das luzes do espectáculo, mas esse brilho ofusca completamente o lado emocional. O filme é uma grande homenagem às canções, mas o seu exagerado artificialismo fantasioso e algum impingido drama no último terço impedem que desfrutemos em pleno do entretenimento, como acontecia no cinema clássico, pontilhado de personagens secundárias divertidas e cenas musicais de cortar a respiração. ‘Beyond the Sea’ é animado, extrovertido e até artístico, mas é pouco profundo, no drama e no espectáculo, para ser memorável.
0 comentários:
Enviar um comentário
Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).