Realizador: James Parrott
Actores principais: Stan Laurel, Oliver Hardy
Duração: 29 min
Crítica: Stan Laurel e Oliver Hardy. Laurel and Hardy. Dois nomes indissociáveis na história do cinema. À primeira vista, muitos portugueses poderão não saber a quem me refiro pois por cá trocaram-lhes a ordem e deram-lhes novos nomes, condignos do seu aspecto físico. Laurel era magro e pálido, um desastrado simples e tímido, com um bom coração. Hardy era cheiinho e tinha um bigode à Chaplin; um bem-falante convencido, sabichão e mandão. Estica e Bucha. Bucha e Estica.
Aparentemente duas personagens não podiam ser mais díspares, em termos de aspecto físico, personalidade a até historial dos actores que os interpretavam. Laurel provinha do mesmo background do vaudeville inglês que Charlie Chaplin. Aliás, ambos pertenceram, na mesma altura, à companhia do icónico Fred Karno, tornando-se amigos. Tal como Chaplin, Laurel fez as tournées nos Estados Unidos e até ficou com os papéis de Chaplin na companhia quando este se mudou para o cinema em 1914. Três anos depois, o próprio Laurel fez a transição para Hollywood, tornando-se um faz tudo do cinema mudo (realizador, argumentista), e até tendo algum relativo sucesso como actor. Se Laurel provinha de décadas de trabalho da escola dura do teatro itinerante, já Hardy provinha de uma família abastada de Atlanta, nos Estados Unidos. Desde cedo Hardy teve o bichinho do showbiz e usou o vasto dinheiro da família primeiro para comprar e gerir salas de cinema em Atlanta e depois para rumar a Hollywood e tentar a sua sorte, começando também a entrar em curtas-metragens mudas a meio da década de 1910. Numa daquelas coincidências que só apelam aos fãs, Laurel e Hardy contracenaram pela primeira vez, por mero acaso, na curta ‘The Lucky Dog’ de 1921. Mas não se voltariam a encontrar por mais 5 anos.
Em 1926 quer Laurel quer Hardy faziam parte da companhia do icónico Hal Roch, guru da comédia muda, e produtor de curtas para vários ilustres (já critiquei, por exemplo, o seu ‘Get Out and Get Under’ com Harold Lloyd). A ideia inicial era promover Laurel como a próxima grande estrela a solo da comédia, mas num enorme momento de inspiração Roach e, diz-se, o então argumentista Leo McCarey (que quase duas décadas depois iria vencer dois Óscares de Melhor Realizador), decidiram emparelha-lo com Hardy. E esta foi uma daquelas decisões quase fortuitas, mas que definiram uma era na sétima arte. Juntos, Laurel e Hardy tornaram-se ícones da comédia, primeiro muda, depois sonora, para o qual fizeram a transição com uma enorme graciosidade. Juntos, Laurel e Hardy fizeram nada menos que 106 obras, começando pelas curtas de duas bobinas e prosseguindo nas longas-metragens. O seu impacto e a sua química foi tanta que Laurel nunca mais entrou num filme sem Hardy e Hardy apenas entraria numa única obra tardia sem o seu companheiro, ‘The Flying Kentuckian’ (1949) com John Wayne.
A sua primeira curta em conjunto foi ‘45 Minutes from Hollywood’ (1926), a sua primeira produção com a MGM (que distribuiria todos os seus filmes menos o último, o outlier ‘Atol K’ de 1951) foi ‘Sugar Daddies’ (1927), tornaram-se uma parelha oficial no mesmo ano com ‘The Second Hundred Years’ e a primeira vez que deixaram de ser os escapes cómicos de outras histórias para ser o centro das suas próprias curtas foi em ‘From Soup to Nuts’ (1928). A partir daí, nunca mais olharam para trás, e enquanto muitos se perderam na transição para o sonoro (Buster Keaton) ou deixaram logo o formato curta para se focarem nas longas metragens (Harold Lloyd), Laurel e Hardy só se começaram a dedicar exclusivamente aos filmes em 1936. Até lá tiveram uma produção em ritmo frenético, absolutamente única nos meandros da comédia de topo de Hollywood. Em 1931, ano da sua primeira longa-metragem ‘Pardon Us’, fizeram para além disso uma dezena de curtas. No ano a seguir repetiram a dose. O filme foi ‘Pack up Your Troubles’, mas há uma das suas nove curtas desse ano que merece ser relembrada mais do que as outras. Não só ganhou o primeiro Óscar de sempre de Melhor Curta-Metragem, no ano em que a categoria foi introduzida (o único Óscar de competição da dupla, que receberia o honorário em 1961), como foi o segundo filme da dupla a ser guardado na Biblioteca do Congresso, em 1997. Estes galardões não são mero acaso. A curta é absolutamente brilhante. Estou a falar de ‘The Music Box’, em português ‘Dois Músicos Desafinados’ (ou pelo menos é isso que diz na minha caixa de DVD!).
Realizado James Parrott e com diálogos de H.M. Walker, ambos habitués do estúdio de Hal Roach e que estão por detrás de inúmeras curtas de Laurel e Hardy (embora se diga que Laurel era o grande génio não creditado de ambos os departamentos), ‘The Music Box’ é um remake de uma curta-metragem muda dos próprios (um procedimento habitual na transição para o sonoro): ‘Hats Off’ (1927), hoje considerada perdida. Nunca saberemos de ‘Hats Off’ era boa ou não, mas ainda bem que a refizeram. Em 29 minutos de pura intensidade cómica, Laurel e Hardy reinventam a lenda grega de Sisyphus, que foi condenado a uma eternidade a transportar um gigante pedregulho montanha acima, só para o ver a rebolar montanha abaixo de cada vez que chegava ao topo. Em ‘Hats Off’ os documentos históricos que sobrevivem dizem-nos que o duo tentava transportar uma máquina de lavar. Em ‘The Music Box’ a coisa torna-se mais épica. Estamos a falar de um piano.
Quando a curta abre estamos numa loja de música. Uma senhora rica está a comprar um piano para dar de presente ao seu marido, que faz anos nesse dia. Deseja que o piano seja entregue em sua casa. Muito bem. A cena muda para a rua e vemos que a empresa de entregas é nada mais nada menos que os nossos velhos conhecidos Laurel e Hardy. Numa carroça ainda puxada a cavalo, transportam o piano dentro de um caixote e perguntam a um carteiro onde é a casa que procuram. Ele aponta para uma casa no topo de uma colina, no cimo de uma enorme, mas estreita, escadaria de nada menos que 131 degraus. Não há nada a fazer. Eles vão ter que carregar o piano escada acima.
Isto é o ponto de partida para uma contínua série de gags assentes na ineficácia dos dois desastrados conseguirem chegar ao topo da colina com a caixa que transportam. O espectador já sabe o que vai ter e o filme não perde tempo em criar antecipação. Três minutos depois de começar, já vemos o caixote a cair em cima das costas de Hardy quando o tentam descarregar da carroça e claro, na primeira tentativa de o levar escada acima, a meio o caixote decide iniciar a sua longa e barulhenta descida escada abaixo, sem que Laurel ou Hardy o consigam segurar. A escolha perfeita de não haver qualquer elemento musical na banda sonora com excepção do chocalhar proveniente da própria caixa ainda mais enfatiza o desespero, quer dos protagonistas, quer do espectador. Nas várias vezes que o pacote cai escada abaixo até à rua, e ouvimos os acordes pouco harmónicos de peças provavelmente a partirem-se, o espectador sente a mesma irritação, o mesmo gelar da espinha e contrai a cara do mesmo modo como se tivesse sido ele próprio a deixar cair algo que sabe que irá partir-se. É precisamente na criação desse sentimento incómodo que a curta aposta (que seria impossível de obter tão bem no cinema mudo), e é daqui que extrai a sua comédia. Está a jogar com a nossa capacidade de nos rirmos das coisas que acontecem aos outros que não queríamos que acontecessem a nós. Do alívio que sentimos brota a nossa capacidade de nos podermos rir com o desastre.
Mas o que a curta proporciona é muito mais do que o desastre pelo desastre, tão característico das curtas do cinema mudo. Muitas curtas, à falta de inspiração, optavam pela destruição total de tudo e mais alguma coisa, a pensar que assim estavam a gerar comédia. Embora ‘Music Box’ para aí caminhe, consegue construir-se em crescendo para que a ‘antecipação’ se junte à montanha russa do ‘incómodo’ e do ‘alívio’ para nos mexer realmente com os nervos. É um efeito que se encontra nos melhores filmes de terror. Mas paradoxalmente (ou não) também existe, nos mesmos moldes, nas melhores comédias. Quando acontece essa conjugação perfeita de elementos, ficamos tão embrenhados na curta que já não conseguimos sair dela. O mesmo motivo permite que consigamos apreciar ainda mais a estupidez (se formos ambiciosos podemos chamar-lhe o surrealismo) inerente à peça. Quando finalmente chegam lá acima, transpostos os degraus, transpostos os vários obstáculos humanos pelo caminho (a empregada, o policia, um senhor irritadiço), os nossos amigos descobrem que havia uma estrada que contornava a colina e que ia ter à porta da casa. Que fazem eles? Voltam a transportar o caixote escada abaixo para o trazer de carroça pela estrada. Parvo e estúpido? Completamente. Mas ainda mais nos enerva e é esse o objectivo.
Mas a enorme beleza desta curta é que não se fica por aqui. A escalada era apenas o princípio. Não respondendo ninguém à campainha, Laurel e Hardy decidem que irão colocar o piano dentro de casa. Encontrando a porta fechada e vendo uma janela aberta no primeiro andar, decidem fazer entrar o piano por aí. Adivinham-se enormes peripécias para o conseguirem fazer. E depois de tudo isso passado, os senhores ainda decidem que, já que conseguiram entrar, porque não instalar o piano na sala, no andar de baixo? Mais escadas e mais desastre inevitável. E, para culminar, os donos chegam a casa, e um deles é o próprio senhor irritadiço que tinham encontrado lá fora nas escadas…
‘The Music Box’ é brilhante. E é brilhante porque não só nos faz rir com o infindável desastre que proporciona, e que tão bem se adequa às personalidades que Laurel e Hardy cultivaram no ecrã, como oferece esse magnífico oscilar de sentimentos ao espectador, por vezes tão enervante (no bom sentido, claro está) que quase apetece desviar os olhos do ecrã. Mas não desviamos, e contraímo-nos mais um bocadinho quando vemos o piano a cair uma outra vez, soltando de seguida uma enorme risada. E a própria realização propicia essa antecipação do momento de humor. Veja-se o plano, filmado do topo das escadas, em que vemos o chapéu do dono da casa, que Laurel havia atirado, cair muito lentamente até à rua. Ainda demora alguns segundos a rebolar pelos degraus, mas o plano é sustido. E quando achamos que o filme só estava à espera que o chapéu chegasse à rua, é aí que, ainda sem que o plano mude, aparece um camião para o pisar. Susteve-se a piada durante 20 segundos, para esta simples, mas engraçada, punchline. E o resto da curta segue a mesma fórmula, de uma forma incrivelmente eficaz.
A curta poderá pecar por não ter propriamente uma grande história, e obviamente não tem personagens nenhumas para desenvolver; são o Laurel e Hardy que conhecemos das curtas anteriores e pronto. Ao mesmo tempo, as gags não são propriamente rebuscadas e engenhosas, não nos fazem rir com a sua invenção como as que Buster Keaton tirava da cartola, por exemplo. Mas nenhum destes elementos é propriamente uma desvantagem no produto que ‘The Music Box’ quer ser. O humor, tal como a história, é simples e universal. A curta é falada, mas os diálogos, de circunstância, bem que podiam ser dispensados. Tirando o som da destruição e do piano a partir-se (esse sim indispensável para a curta resultar), todo o humor é obtido de uma forma física, o que é uma enorme mais-valia. A cara impávida de Laurel perante o desastre, ou os desabafos mímicos de Hardy para a câmara valem mais que mil frases de diálogo. E o intertítulo (o único do filme, tirando o inicial) que aparece após a oitava ou nona tentativa de subirem as escadas, dizendo "Nessa tarde", para finalmente os mostrar a chegar ao topo com o caixote, gera tanta gargalhada como uma punchline bem dita. De novo, artifícios do cinema mudo que só enriquecem esta curta-metragem.
Todos estes elementos se conjugam para contribuir para a universalidade deste trabalho e justificar a forma fácil como não ficou datado passadas tantas décadas e como pode ser apreciado hoje como na altura do seu lançamento. Aliás, a curta podia passar-se nos dias de hoje sem se mudar uma única cena e um único adereço, talvez com excepção da carroça puxada a cavalo. Nenhum elemento fílmico é datado e o humor que existe em cada cena fará sempre rir, por mais que a humanidade evolua, porque parte da manipulação das emoções mais básicas de cada ser humano. Contudo, ao mesmo tempo reconhecemos, com nostalgia, que nunca poderá haver uma curta igual. Hoje continuam a haver pianos para transportar, continuam a haver casas no topo de escadarias e continuam certamente a haver desastrados. Mas nenhum deles é como Laurel e Hardy e aí está toda a diferença. A grande mais valia de ‘The Music Box’ não é o facto de ser hilariante (é-o facilmente) nem o facto de culminar em épica destruição depois de uma curta inteira a construir desastre (embora o tenha aos magotes). É sim, para além destas coisas, o modo como Laurel e Hardy a atravessam com o seu ar despreocupado, como o seu contraste gera tanta faísca e como existem num universo só seu, alheio a tudo o resto. Um universo em que destruir meia casa para entregar um piano já meio partido é um acto completamente justificável. Porquê? Porque era esse o seu propósito. O resto são apartes (para eles) e momentos de diversão (para nós).
‘The Music Box’ abriu caminho para outros grandes clássicos do duo nos anos 1930, como ‘Sons of the Desert’ (1933), ‘Way Out West’ (1937) ou ‘Block-Heads’ (1938). Mas nenhum tem a irreverência e o dinamismo cómico que tem ‘The Music Box’. Com pouco menos de meia hora, e se o leitor nunca viu ou há muito que já não vê uma curta desta dupla, não há melhor modo para (re)começar. Não há aqui um despoletar das personalidades ou da dicotomia dos seus egos (esses já estavam bem moldado e poucas alterações sofreram) nem uma revolução no seu status quo. Não é uma curta de charneira, que marcou um estilo ou uma época. É simplesmente, no meio de um gigantesco espólio girando sobre os mesmos temas e as mesmas estruturas de piadas, um ponto de luz brilhante onde tudo se encaixa na perfeição. Quando tudo o resto for esquecido, as piadas simples, os momentos de grande enervação, a enorme antecipação do desastre e por fim a consumação do próprio desastre que ‘The Music Box’ contém, ficarão. Em qualquer altura é remédio santo para fazer rir. No final de contas, não era esse o objectivo das curtas de comédia? Oito décadas depois, esse objectivo contínua a ser cumprido com enorme sucesso, mas principalmente, enorme à vontade.
Não preciso ir mais longe para atestar à longevidade e à popularidade desta curta do que dizer que se hoje formos aos famosos degraus em Silver Lake, Los Angeles, eles ainda existem, praticamente tal como foram filmados em 1932. E como se chamam? Ora a placa dir-nos-á que estamos precisamente nos ‘The Music Box Steps’. Já muitos locais por esse mundo fora tiveram direito a filmagem. Mas quantos ganharam o nome da película? Poder-me-ão dizer que é o poder do riso. Pode ser, mas é também o poder do grande cinema.
Sera que em Meio a internet de hoje não achamos esse curta perdido? heheheehe sonhar é possivel, ótimo Texto, obrigado!
ResponderEliminarAcho que só se descobrirem uma bobina há muito esquecida num cofre de um coleccionador, como aconteceu com a versão integral de Metropolis...
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