Realizador: George Miller
Actores principais: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult
Duração: 120 min
Crítica: No último mês, tenho-me divertido bastante a ver os trailers e os posters do novo filme de Mad Max, nomeadamente no que concerne o epíteto atribuído ao seu argumentista/realizador George Miller. "George Miller o génio". "George Miller a fabulosa mente criadora". Eu sei que esta gente quer vender o seu peixe, mas olharam atentamente para os filmes que George Miller fez nos últimos 20 anos?! Foram quatro, os dois ‘Babe’ (1995 e 1998) e os dois ‘Happy Feet’ (2006 e 2011). Aliás, o único Óscar da sua carreira surgiu em 2006 quando ‘Happy Feet’ ganhou Melhor Filme de Animação. Sim, o primeiro ‘Babe’ (que não realizou, apenas produziu) tem o melhor uso de animais, misturado com marionetas, animatronics e efeitos especiais da história do cinema, e os filmes de ‘Happy Feet’ não são grande coisa, mas as crianças gostam. Mas é por isso que George Miller é um "génio"? Claramente não viram ‘Babe: Pig in the City’ (1998)!
Mas talvez os senhores que deram este epíteto a Miller estavam a referir-se seu espólio anterior. Antes de enveredar pelos filmes infantis, Miller fez o drama ‘Lorenzo’s Oil’ (1992) e a comédia de terror ‘The Witches of Eastwick’ (1987). Hummm. Também não creio que seja por aqui. Só se for pelos três filmes que fez antes disso: os filmes da trilogia de Mad Max (1979, 1981, 1985). Ah, agora já estamos a chegar a algum lado! Antes de fazer umas escolhas de carreira bastante estranhas, Miller foi um dos principais contribuidores para o look do cinema de acção dos anos 1980. O primeiro ‘Mad Max’ (1979) em retrospectiva não é tão bom quanto a lenda hoje o recorda. Tal como o primeiro ‘Terminator’ (1984), é um filme de baixo orçamento, com acção reduzida, mas um fabuloso ambiente, enorme tensão, e uma inspirada ideia por trás. Herdando do alienismo da década de 1970, mostrando uma Austrália pós-apocalíptica e com um dinâmico Mel Gibson sedento de vingança ao centro, ‘Mad Max’ surpreende, mas é inevitavelmente datado e empalidece comparado com a segunda entrada.
‘Mad Max 2’ (1981), tal como ‘Terminator 2’ (1991), é o melhor filme da sua saga, por um motivo muito simples: liberdade e orçamento. ‘Mad Max 2’ é tudo o que Miller imaginou para o primeiro filme, mas que não teve recursos para executar. Mantém a aura e o ambiente que tão bem tinha funcionado no original, mas é muito mais épico, na história, nos cenários, nas personagens, nos veículos e claro, na acção, na vibrante acção, na acção non-stop durante 90 minutos. E é esta conjugação de elementos que torna o filme memorável e que define, agora sim, o génio de George Miller. Mas é também essa conjugação de elementos que se perde em ‘Mad Max Beyond Thunderdome’ (1985), um produto muito mais eighties e muito mais hollywoodesco, substituindo a insanidade e a arte por uma estilização nobre mas compreensivelmente mais digerível para o público familiar.
A beleza de Mad Max, principalmente a de ‘Mad Max 2’ é que não é um produto familiar. Nasceu de uma mescla de crítica social (a crise de petróleo nos anos 1970) e do cinema de acção alienado pós apocalíptico, não do universo sci-fi com pitadas de comédia, que foi no que a saga se transformou com o terceiro filme. Durante os últimos tempos, estava algo céptico a relação a este quarto filme, porque não sabia bem qual dos Mad Maxs é que George Miller iria reciclar: a fabulosa alegoria, o épico filme de acção ou o filme comercial mais acessível. Tendo em conta o padrão dos remakes da era moderna, seria de esperar uma substituição da inteligência, arte, inovação e dinamismo de (pelo menos) Mad Max 1 e 2, por um gigantesco corrido de efeitos especiais, aliados a uma acção explosiva mas oca. Mas felizmente, não é isso que acontece. Miller escolheu reciclar a aura de ‘Max Max 2’ e foi a coisa mais inteligente que poderia ter feito.
Em ‘Max Max: Fury Road’ (2015) George Miller merece realmente ser apelidado de "génio cinematográfico". Génio porque negou a tentação de uma era intenta em lucro e em espectáculos visuais apinhados de efeitos computadorizados mas desprovidos de originalidade. Génio porque apesar de estar a fazer o quarto filme de uma saga, trinta anos depois do último, conseguiu reinventá-lo com um sangue e um dinamismo novo. Génio porque mantém a integridade artística num produto claramente de ‘acção’ (e que não tem nenhuma ambição para ser mais que isso) e dá essa acção com uma virtuosidade cinematográfica invulgar nos dias de hoje, ainda assente naquilo que a câmara filma, no que o editor monta e na banda sonora, e deixa o computador para efeitos parcos mas inteligentes, como dar dimensão às cenas de multidão, ou moldar a palete de cores do background. Génio pois este filme poderia ter sido filmado há vinte anos, no sentido em que a sua contínua acção e a adrenalina do público é tudo o que lhe interessa. Por todas estas coisas, Miller prova que ainda sabe o que está a fazer e ‘Max Max: Fury Road’ é um filme surpreendente, dos melhores filmes de acção a surgir nos últimos anos, apesar de não ser totalmente perfeito.
O reverso da medalha é que para ter esta adrenalina do início ao fim, o filme tem muito pouco desenvolvimento das suas personagens. O próprio Max (aqui interpretado de uma forma algo morna por Tom Hardy) é quase um aparte na sua própria história. O início do filme faz recordar o início de ‘Mad Max 2’, no sentido em que uma voz off nos diz umas frases soltas sobre como a Terra atingiu este estado desértico pós apocalíptico. Aqui a voz é demasiado vaga (em ‘Mad Max 2’ até tínhamos direito a uma espécie de newsreel) pois o objectivo é explicar o menos possível. Aliás, essa é uma característica que se mantém ao longo do filme. Quem conhece os restantes Mad Max consegue entender várias coisas. Quem não viu é simplesmente brindado com a mais simples das premissas: estamos no futuro, é tudo um deserto, toda a gente endoideceu, e todos lutam por água e gasolina. O filme sabe bem que para desfrutar da acção não é preciso muito mais que isto, mas o cinéfilo mais exigente sente falta de alguma profundidade.
O primeiro plano mostra-nos Max a olhar para a vastidão desértica. Também ele é assombrado por coisas vagas do seu passado e os flahsbacks de uma miúda, que nunca se percebe bem quem é, atormentam-no. Não é absolutamente claro se este filme se segue a ‘Beyond Thunderdome’ ou se estamos numa história alternativa com um novo Max. Para o espectador jovem do século XXI que não viu os três primeiros filmes é mais um ponto irrelevante, mas o conhecedor fica enervado. Após uma perseguição inicial, Max é capturado por um grupo de guerreiros delinquentes chamados War Boys e levado como prisioneiro para uma cidade. Aí depara-se com a clássica civilização pós apocalíptica. No alto do penhasco, o ditador Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne, que interpretou o papel de Toecutter no primeiro ‘Mad Max!), tem água e uma estufa secreta, e vive rodeado pelas suas concubinas e pelo exército dos War Boys (que mais uma vez não se percebe se são clones, ou resultado de experiências genéticas, ou…). Em baixo, o povo vive na miséria do deserto, desesperado pelas parcas gotas de água que Immortan Joe envia de cima. Joe é uma espécie de Darth Vader, já vive agarrado a uma máscara respiratória, e as suas belíssimas e jovens concubinas são a sua maior possessão: poderão dar-lhe um herdeiro, o doador perfeito para que possa viver mais tempo.
Num dia aparentemente normal, uma caravana de veículos é enviada a Gas Town para buscar gasolina. A líder deste grupo é Furiosa (Charlize Theron, uma figura imponente, mais até que Max…), a condutora do gigantesco camião cisterna. Mas o que ninguém sabe é que ela escondeu no camião as concubinas grávidas (onde se inclui a modelo Rosie Huntington-Whiteley de ‘Transformers 3’), que anseiam pela liberdade. Uma vez no deserto, ela muda bruscamente de rota e tenta a fuga, com o objectivo de chegar a um lugar idílico que se recorda da sua infância: The Green Place. Isso faz com que Immortan Joe reúna o seu massivo exército de War Boys e parta atrás dela, numa perseguição de veículos praticamente contínua que demora quase duas horas de filme, atravessando diversas paisagens áridas e cruzando-se com outras personagens excêntricas que vão aparecendo pelo caminho. E onde entra Max no meio de tudo isto? Bem, ele é levado, amarrado, por um War Boy chamado Nux (Nicholas Hoult, o Beast dos mais recentes filmes dos X-Men, e que terá importância mais à frente no filme), para servir de reserva de sangue e órgãos. Obviamente, Max irá conseguir escapar e não tem alternativa senão juntar-se relutantemente a Furiosa e ao seu grupo, que prosseguem deserto fora para escapar ao exército que as persegue e atingir a tão esperada liberdade. Até porque, mais do que ninguém, Max conhece o deserto e é um mestre em perseguições automóveis…
A história linear tem vantagens e desvantagens. Como disse, o filme tem um ambiente fabuloso, um design de produção épico, e ao contrário de inúmeros filmes recentes de acção, sente-se aqui o peso dos veículos, das explosões, das batalhas. Olhando para o filme, não é imediatamente perceptível que estes elementos foram feitos num computador (até porque muitos não foram) e isso é meio caminho andado para que entremos neste universo e ele nos afecte com a sua credibilidade. Assim sendo, Miller mantém um elevadíssimo ritmo durante toda a duração da película. Os seus cortes temporais, usando regularmente o fade in / fade out levam-nos de uma noite à manhã seguinte, por exemplo, mas são breves escapes para respirar, antes que o filme ataque de novo com os ruídos incessantes dos automóveis, dos berros, das explosões e da constante banda sonora centrada na guitarra eléctrica (que um War Boys constantemente toca – quem o ensinou?!). Horas depois de ter visto o filme, ainda estava com os ouvidos a zumbir. Recordamos ‘Mad Max 2’, recordamos ‘Speed’ (1992), recordamos ‘The Rock’ (1996). Recordamos os melhores filmes de acção non-stop alguma vez feitos, aqui exacerbado pela impetuosidade das perseguições e explosões na tradição dos mais bem conseguidos Mad Max. Miller dá uma lição ao cinema de acção da era moderna, aos ‘Pacific Rim’ ou ‘300: Rise of an Empire’ desta vida. E é maravilhoso.
Mas esta virtuosidade, que fará as delícias de todos os fãs de acção, tem um grande senão. O filme avança a tanta velocidade que esconde com subtileza que não tem história nenhuma e a pouca que tem está muito mal explicada e muito pouco ramificada (a divisa é quanto menos é dito melhor). Se em termos de enquadramento isto é menos importante, em termos das personagens já não cai bem. Aliás, o filme é exímio em ser completamente aleatório na personagem em que se decide focar, quer essa personagem venha a perecer pouco depois (um destino comum a muitos secundários deste filme) ou não. A personagem de Nux, por incrível que possa parecer, é a que tem o melhor desenvolvimento de personagem. As outras restringem-se ao básico da sua ‘missão na vida’. Mas o elemento mais desapontante é mesmo Max. Se Stallone conseguiu filmar Rocky e Rambo com mais de 60 anos, então Mel Gibson também poderia ter reincarnado Mad Max. Para o que Max faz neste filme, provavelmente teria sido bem mais sucedido que Tom Hardy. Mas todos sabemos porque não foi contratado. Primeiro porque Mel Gibson é hoje em dia persona non grata em Hollywood depois de gravações suas a gritar insultos racistas terem sido lançadas na internet há um par de anos. Quem é rápido a acusar não é rápido a perdoar, e assim sai da ribalta, pela porta pequena, um dos grandes actores do nosso tempo. Pessoalmente acho isso uma estupidez. Segundo, porque os estúdios já estão a esfregar as mãos de contentes por mais uma franchise, e já se fala que este ‘Mad Max’ vai originar uma trilogia.
Mas pelo que se assistiu aqui, bem que podia ser uma trilogia com Furiosa. Tal como contada, a história podia ser exactamente igual com Furiosa a assumir o protagonismo, em vez de o dividir, em partes iguais, com Max. Este Max fez-me lembrar Wolverine no último ‘X-Men: Days of Future Past’ (2014); só está lá porque é da praxe, mas na maior parte das cenas fica a um canto a assistir. Claro que intervém nas cenas de acção, mas não tanto como seria de esperar, e reparte o peso com Furiosa, com Nux e outros. Max deixou de ter a sua aura, deixou de ser o ser trágico solitário que se torna insano num mundo desértico depois de perder a família. Agora é mais um que para ali anda, e não é ele, e só ele, o herói desta história. Nem é, como o tentam pintar, o homem sem nome de poucas palavras a fazer recordar o pistoleiro do velho Oeste. Miller até se dá ao luxo de, numa cena, não mostrar o talento de Max. Numa noite, enquanto arranjam o camião, a comitiva de fugitivos sente o aproximar do perigo. Max diz “eu trato disso”, e pouco depois regressa, ensanguentado mas com armas e mantimentos. No interregno, a câmara manteve-se nas mulheres amedrontadas e em Furiosa. Se louvei tal artifício em ‘Mission Impossible 3’ (o roubo da rabbit’s foot), porque fazia aumentar a tensão e o assalto ao McGuffin era irrelevante para o rumo da história, aqui não o posso fazer. Seria mais uma desculpa para a acção e para podermos ver, finalmente, o ar da graça de Max. Até porque a pausa não contribui para a tensão nem para ficarmos a conhecer melhor alguma das personagens. Mas quando Miller nega a grande explosão final com um simples fade out, aí sim já foi inteligente, pois os nossos heróis já estão a salvo e essa destruição seria completamente gratuita.
Esqueçamos a fraca profundidade das personagens e o uso descartável de inúmeras personagens secundárias que têm mortes pouco dignas logo após serem introduzidas, só para o filme ter uma artificial intensidade. Esqueçamos as lamechas mensagens semi-ambientais e de esperança na humanidade que o filme, mais uma vez porque é da praxe (não fosse este um filme de Mad Max) vai debitando, como a clássica velhota que se lembra dos velhos tempos e tem um saco cheio de sementes para cultivar um dia. Esqueçamos o feminismo claro da peça, com uma história de base que parece quase roubada de ‘Children of Man’ (2006). Esqueçamos alguma estupidez no final só porque soa bem terminar assim (como é que aqueles no cimo do penhasco aceitam logo estes salvadores, e até ligam imediatamente a água?!). Esqueçamos isso tudo e o que sobra é “simplesmente” o melhor filme de acção que vi no cinema desde ‘Dredd’ (2012). Um filme intenso, ruidoso, furioso, rockeiro, mas com uma enorme sinceridade e uma enorme mestria na realização, até ao ponto de ser chamado uma obra de arte (as cores, a fotografia, os enquadramentos, as magníficas localizações no deserto da Namíbia). Miller poderia não ser um ‘génio’ até agora (talvez por ‘Mad Max 2’), mas consegue, se não isso, pelo menos ser um enorme visionário, ao interligar o estilo clássico e pós-moderno para proporcionar uma incrível experiência ao espectador. Este é daqueles filmes de acção futuristas pelos quais os outros têm de se gerir a partir de agora. É daqueles filmes inteligentes que usa os efeitos especiais não como uma maquilhagem para ficar mais bonito por fora, mas realmente como um arma para se melhorar. E por isso é que, apesar de ser “só um filme de acção” tem que ser elogiado, e Miller merece todo o crédito. Se é para reciclar uma franchise, então é assim que se deve fazer.
Mas só há uma coisa que apesar de tudo, o filme não é: insano. Os outros Mad Max eram-no. Aqui, perdeu-se essa irreverência. Note-se a seriedade de Furiosa e do próprio Max, e a suposta intensidade dramática que tentam transmitir. A insanidade está toda do lado dos maus. Os bons são aqueles humanos fora de tempo que só desejam uma vida melhor e um recomeço. Muito da magia de Mad Max estava na dualidade do próprio Max. Este Max não tem dualidade nenhuma, é um ser morno e adormecido que tenta ser um Clint Eastwood pós apocalíptico. Mas não temam, há uma solução fácil para isto. É só trazer Mel Gibson de volta na próxima sequela. Ele recoloca essa insanidade em Max, e no filme, num segundo. E aí este filme de acção passará de muito bom a perfeito.
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