Realizador: John Newland
Actores principais: Robert Vaughn, Senta Berger, David McCallum
Duração: 88 min
Crítica: Como escrevi na minha crónica ‘Martinis, girls and a gun - sobre a génese do spy-fi’, no início dos anos 1960 o contexto social, político e cinematográfico era o ideal para que o público mundial se deixasse seduzir pelo glamour do espião da guerra fria. E com a entrada em cena de James Bond em ‘Dr. No’ (1962), o mundo da espionagem nunca mais seria o mesmo, e uma gigantesca moda invadiu a sétima arte. Os anos 1960 foram realmente a idade de ouro do spy-fi, onde dezenas de espiões (pode ler o meu top aqui) desfilaram na televisão, no cinema americano e, com gigantesco sucesso, em filmes menores europeus, os eurospy. Mas foi só por volta de 1965, quando os eurospy e series cómicas como ‘Get Smart’ surgiram, que o tom do espião começou a resvalar para a paródia e o autogozo. Até lá ainda havia alguma seriedade e alguma ambição, embora realmente, se até Bond não se levava completamente a sério, como poderiam os restantes?
Em 1964 apenas tínhamos tido três filmes de Bond e o eurospy ainda não tinha invadido o mercado. Em Inglaterra duas magníficas séries de espiões (ainda hoje as considero duas das melhores séries alguma vez feitas); ‘The Saint’ e ‘The Avengers’ deliciavam o público uma vez por semana, mas nos Estados Unidos não havia nenhuma. O produtor Norman Felton não se fez rogado e foi directamente à fonte. Abordou Ian Fleming, o autor dos livros de James Bond, para trabalharem no conceito de uma série. Essa série ganhou forma com o nome de ‘Ian Fleming's Solo’ e mais tarde apenas ‘Solo’, tendo como elemento central o espião de nome espectacular e épico (só Fleming para o conceber) Napoleon Solo.
Contudo, os produtores dos filmes de Bond não ficaram muito contentes. Fleming havia-lhes vendido os direitos de todos os livros de Bond, e a capitalização do nome de Fleming na série significaria uma clara concorrência a um espólio do qual achavam que detinham a exclusividade. Para além do mais ‘Goldfinger’ (1964) estava prestes a sair, e quer no livro quer no filme há um capanga menor chamado Mr. Solo. Esse foi o ponto de partida para um processo judicial em que os famosos produtores da saga Bond, Albert R. Broccoli e Harry Saltzman tentaram impedir que tal série alguma vez visse a luz do dia. Mas com a intervenção do próprio Fleming, as discórdias eventualmente foram resolvidas. O nome do espião manteve-se, mas a série teve obrigatoriamente que mudar de nome e de estilo. Foi assim que nasceu, crê-se que já sem Fleming a bordo, o definitivo ‘The Man from U.N.C.L.E.’.
Com o primeiro episódio a ir para o ar em Setembro de 1964, ‘The Man from U.N.C.L.E.’ retratava, semana após semana, as aventuras do agente Napoleon Solo, interpretado com um carisma algo plácido e adormecido por Robert Vaughn (que no cinema é recordado pelas suas aparições mais sérias em ‘The Magnificent Seven’, 1960, ou ‘Bullitt’, 1968). Juntamente com o seu parceiro russo Illya Kuryakin (David McCallum), Solo trabalha para United Network Command for Law and Enforcement (U.N.C.L.E.), sob a direcção do enigmático Mr. Waverly (Leo G. Carroll, um papel talhado à sua personagem em ‘North by Northwest’, 1959). Os seus arqui-inimigos são a terrível agência do mal THRUSH, que, obviamente, é feita à imagem da famosa SMERSH de James Bond.
Logo na sua primeira temporada, a série tornou-se um sucesso. Num formato familiar e de matiné, encaixou como uma luva na época e acabou por durar 105 episódios em quatro temporadas até 1968. Durante esse tempo, contudo, deu-se a gigantesca explosão do spy-fi. Se filmes menores, feitos por dois tostões em Itália, sem grande história, grandes actores, ou grande imaginação, baseados nas fórmulas estereotipadas do filme de espiões (Bonds de trazer por casa) faziam fortunas nas salas do cinema, porque não entrar nesse mercado, se a série tinha todo o material que era preciso? Produtores de Hollywood não pensam duas vezes quando a oportunidade de fazer uns trocos bate à porta e portanto, com naturalidade, surgiram os filmes de ‘The Man from U.N.C.L.E.’. Mas não foram filmes feitos do zero. Isso daria muito trabalho. Em vez disso, todos os episódios de duas partes foram re-editados, misturados com cenas avulso de outros episódios (uma sequência de acção por exemplo), e a estes acrescentou-se uma ou outra cena extra para colmatar os buracos do argumento ou aumentar o papel de uma “uncle-girl”. Mexeu-se esta mistura e voilá. Assim se criou nada menos que oito filmes, entre 1964 e 1968, que na Europa foram lançados nas salas de cinema e na América foram passados como especiais na televisão.
O primeiro destes filmes foi ‘To Trap a Spy’ (1964); baseado no episódio piloto da série. Destaco neste filme a aparição da fabulosa Luciana Paluzzi, que nesse mesmo ano entraria em ‘Thunderball’ (1964) – a minha bond-girl favorita no meu filme de Bond favorito. Mas o segundo filme foi o ainda melhor ‘The Spy with My Face’ (‘O Espião com a Minha Cara‘). Eu descobri ‘The Man from U.N.C.L.E.’ na minha infância/adolescência, quando os telefilmes passavam regularmente no canal TCM, e pouco mais tarde a caixa dos telefilmes tornou-se a primeira compra que alguma vez fiz no amazon! Nessa altura ‘The Spy with My Face’ era o meu U.N.C.L.E. favorito. Por muitos é ainda considerado a grande obra deste espólio, e se na infância concordava com isso, agora não sei se tenho tanta certeza.
‘The Spy with My Face’ é uma mescla de 80 minutos feito a partir do episódio "The Double Affair", do qual extrai a sua história de base, e do episódio "The Four Steps Affair", que contribui com cenas adicionais. Na sequência inicial, assistimos ao assalto, por parte dos agentes de U.N.C.L.E liderados por Solo, a uma mansão na Austrália, reduto da THRUSH, para recuperarem um micro-filme. Não sei exactamente de que episódio tiraram isto, mas claramente podia encaixar no início de qualquer filme. Aliás, nota-se, com o excessivo uso de slow motion enquanto as letras do genérico vão aparecendo vagarosamente, que o filme está a ganhar tempo e a acumular minutos preciosos. Se não fosse assim, quase impossivelmente chagaria aos 80 minutos.
Após esta sequência de intensidade moderada, mas digamos suficientemente intensa para a época (o que não é dizer muito), o filme translada-se para a América. Aqui, decorrem quase vinte minutos de uma forma completamente descontraída, em que a história é introduzida a conta-gotas. Este tempo é gasto para introduzir melhor o agente a quem não os conhece, mas resume-se a uma ou outra cena que mostram como Solo é um mulherengo charmoso e um agente convencido da sua superioridade. Aliás, enquanto Kuryakin e Mr. Waverly trabalham na Agência, Solo está mais preocupado em sair mais cedo do trabalho para ir ter com a sua mais recente conquista, a hospedeira Sandy (Sharon Farrell). Isto dá azo àquelas cenas de charme romântico do super-agente irresistível que recordo com nostalgia dos filmes Bond de Sean Connery e que agora, infelizmente, já não existem nos filmes com Daniel Craig.
Paralelamente a estes afazeres descontraídos de Solo, vemos os dois agentes THRUSH, Darius (o suave Michael Evans) e Serena (a sedutora Senta Berger, que se tornaria uma veterana do spy-fi) a urdirem o seu plano. Basicamente, estão a fazer cirurgia plástica a um dos seus agentes, para que fique um sósia de Solo. O seu objectivo é raptar Solo e substituí-lo pelo duplo, para que este possa tomar o lugar daquele na misteriosa operação ‘August Affair’, que envolve uma arma nuclear. Depois disso, querem, como de costume, roubar a arma e usá-la para… DOMINAR O MUNDO. Muhahaha.
Serena seduz Solo, e este, com a sua superioridade costumeira, deixa-se seduzir, ciente de que é um engodo. Mas depois de mais cenas sedutoras “de quarto”, em que quer Serena, quer o filme, ganham tempo, Solo é tão totó ao ponto de realmente se deixar raptar. É a partir daí, da meia hora, quando se procede à substituição de Solo pelo seu sósia, que realmente o filme ganha muito mais ritmo e muito mais interesse. De repente já temos alguma tensão e suspense. Quando um velho agente e a hospedeira do voo para a Áustria (onde está a base secreta com a arma), que surpresa, surpresa, é precisamente Sandy, não são reconhecidos pelo Solo mau, Kuryakin começa a desconfiar de que alguma coisa de errado se passa. Aí as coisas começam a aquecer e o filme tem algum estímulo, ou melhor, tanto quanto uma série familiar dos anos 1960 poderia ter. Paralelamente, os vilões ainda não mataram Solo e este vai aparecendo amarrado, mas nunca perdendo a compostura. Levam-no também para a Áustria, pois esperam matá-lo lá, para que a culpa do roubo da arma seja posta nele. Mas Solo, inevitavelmente, escapa, e é nas belas paisagens de estúdio (a fingir que estamos na Áustria), que se dá o inevitável showdown de acção, incluindo um Solo bom e um Solo mau a lutarem um contra o outro, os dois vilões, Kuryakin e ainda mais duas meninas inocentes que se metem ao barulho. Não é brilhante mas é tão bom quanto seria possível a partir deste material.
Ontem revi ‘The Spy with My Face’ passados muitos, muitos anos. Consegui reconhecer imediatamente os pontos que me tinham seduzido quando era novo. O filme tem um tom bastante leve e bastante despreocupado, mas apesar da lentidão com que tudo é oferecido, tem carradas de charme e carradas de carisma. A acção é praticamente inexistente, restringe-se à cena final, e quase não se vê explosões, nem perseguições, nem realmente momentos em que sentimos a tensão do perigo. Mas o filme tem a essência do spy-fi, sem a tornar artificial, e uma capacidade de apelo simples e familiar (não lhe vou chamar infantil) que se adequa ao produto que era, e que queria ser.
É injusto criticarmos ‘The Spy with My Face’ como um filme, porque não o é. Se o fosse teríamos que ser mais severos, mas assim sendo, como um episódio expandido de uma personagem que já conhecemos, até não está mau de todo. Lamentamos a ausência de planos de exteriores, a pouca construção da história, a linearidade do argumento. Lamentamos as cenas que não fazem sentido, como quando Sandy encontra o Solo mau nos Alpes e parece esquecer-se que o havia encontrado pouco antes no avião (é o que dá colar material de fontes diferentes…). Lamentamos a pouca aparição de gadgets, o facto de muita coisa ser extremamente datada (aqueles robôs que querem matar Kuryakin, por amor de Deus…), e o facto de Solo, se pensarmos bem, não fazer grande coisa. No final, nem sequer é ele que mata o Solo mau… E por fim, pessoalmente, lamento também a ausência do famoso tema da série, da autoria de Jerry Goldsmsith.
Mas apesar de todas estas lamentações, temos que reconhecer que este é entretenimento familiar spy-fi do bom. Sabemos que no final os maus vão perecer (sem se mostrar uma pinga de sangue, claro), e que os heróis vão acabar aos beijos com as miúdas. O filme tem humor, charme e descontracção, um glamour esbatido mas presente, e apesar de tudo ser morno, apesar de ser mais um numa longa linha de aventuras spy-fi descartáveis e esquecíveis, este filme tem momentos memoráveis. Quanto mais não seja pela dualidade incutida pela aparição de dois Solos. Robert Vaughn deve ter adorado filmar o duplo papel, o Jekyll e Hyde dos espiões, e esta linha argumental, quiçá clássica mas raramente vista num filme deste género, estimulou imenso a minha imaginação em criança. Talvez por isso, na minha mente, este filme era o símbolo da série, representava tudo o que a série tinha conseguido atingir.
Agora, obviamente, consegui captar as falhas e as deficiências deste produto, mas isso faz dele necessariamente mau? Não creio. ‘The Man from U.N.C.L.E.’ nunca foi transcendental, mas foi especial, e não se tornou uma série de culto por acaso. Se hoje pode ser visto com cepticismo e está datado, na altura era um produto televisivo inovador, e como todos temos sempre uma réstia de criança em nós, e a maior parte de nós fica seduzido pelo imaginário destas obras de espiões, ‘The Man from U.N.C.L.E.’ consegue, com as suas limitações e a sua simplicidade, oferecer mais do que memórias nostálgicas. Consegue oferecer entretenimento. Não do melhor que há, mas do suficiente para representar uma era e ainda cativar, mais jovens do que adultos, certamente, e mais fãs do spy-fi do que o habitual cinéfilo. Mas porque consegue isso, não pode ser descartado.
E a encapsular toda essa magia, mais do que qualquer outro filme de U.N.C.L.E, está ‘The Spy with My Face’, a maneira ideal para explorar este espião se o leitor não o conhece. Tanto quanto eu me lembre, os restantes seis filmes que se fizeram baseados em episódios da série ‘One Spy Too Many’ (1966), ‘One of Our Spies Is Missing’ (1966), ‘The Spy in the Green Hat’ (1967), ‘The Karate Killers’ (1967), ‘The Helicopter Spies’ (1968) e ‘How to Steal the World‘ (1968), não conseguiram reproduzir tão bem aquele que foi o espírito da série. Ou então não tinham, para a minha imaginação adolescente, tanto glamour no plano simples do vilão, nas "uncle-girls", ou na dualidade dos dois Solos, para me apelarem como ‘The Spy with My Face’. E a verdade é que, infelizmente, pouco depois a série começou a descambar, o que se reflecte nestes filmes mais tardios. Com a aparição das obras kitch do eurospy, e com o inusitado sucesso de séries americanas como ‘Batman’ e ‘Get Smart’, ricas em gozo autoconsciente e um exagero dos lugares comuns, os produtores da série tomaram a decisão consciente de seguir pelo mesmo caminho. Pela terceira temporada ‘The Man from U.N.C.L.E.’ já era uma pálida imagem de si própria, cada vez mais próxima do pior que se fez no spy-fi, substituindo a paródia inteligente pela paródia pobre e desleixada. A manobra obviamente não resultou e as audiências caíram a pique. Na quarta temporada houve a tentativa de regressar à seriedade da primeira, mas as audiências não voltaram a subir. A série terminou em 1968 e só regressou para um telefilme em 1983: ‘The Return of the Man from U.N.C.L.E.: The Fifteen Years Later Affair’, a última aparição de Robert Vaughn como Napoleon Solo.
Resta terminar com o motivo pelo qual decidi revisitar ontem esta série. No próximo Agosto estreará pelo mundo ‘The Man from U.N.C.L.E.’ (2015), o novo filme de Guy Ritchie (realizador de ‘Snatch.’, 2000, ou ‘Sherlock Holmes’, 2008). O filme conta com Henry Cavill (o novo Super-Homem) como Napoleon Solo, Armie Hammer (o Lone Ranger) como Illya Kuryakin e Hugh Grant (estão a gozar?!) como Waverly. Por um lado temo que Ritchie faça ao universo de U.N.C.L.E. o que fez ao de Sherlock Holmes (detestei!), e que este filme repita as mais recentes paródias de espiões de época, com muito brilho, muitas gadgets, muitos efeitos especiais e muitos one-liners, mas com o mínimo de substância. Já vimos nas últimas décadas a desgraça que foram adaptações como ‘The Saint’ (1997) com Val Kilmer (péssimo) ou ‘The Avengers’ (1998) com Ralph Fiennes e Uma Thurman (ainda pior!). É muito fácil que esta adaptação siga pelo mesmo caminho…
Mas por outro lado, a verdade é que ‘The Man from U.N.C.L.E.’ nunca teve direito a um filme condigno, com uma história com princípio meio e fim, e com os meios de produção adequados a uma longa-metragem cinematográfica. Está aqui então uma fantástica oportunidade para reavivarem uma lenda da televisão, e fazerem-no com respeito e qualidade, e um cunho de modernidade que falta a esta série extremamente datada. E daí ter revisitado ‘The Spy with My Face’ porque daqui se tira uma importante lição. O filme é claramente humilde e pouco ambicioso, simples e sem grandes recursos, pouco memorável e uma mescla de material já filmado com cenas adicionais para encher. Mas tem essência. Apesar de tudo tem essência, e é isso que o torna fascinante para um público que aprecia o spy-fi, e para um público jovem que consegue colmatar com a imaginação o que claramente falta na tela. A versão de 2015 de ‘The Man from U.N.C.L.E.’ pode ter custado 75 milhões de dólares, ter carradas de efeitos especiais e carradas de humor e clichés. Mas se não tiver essa essência, essa chama, que remonta aos primeiros spy-fi, nada feito. Poucos filmes pós anos 1960 conseguiram captá-la. Será desta? Esperemos que sim!
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