Realizador: John Huston
Actores principais: Audie Murphy, Bill Mauldin, Douglas Dick
Duração: 69 min
Crítica: Às vezes ocorrem fenómenos misteriosos na sétima arte. Como é que é possível filmes que ficam inacabados ou que são fortemente cortados pelo estúdio, e que são lançados numa versão bem longe daquela que o seu realizador planeou, serem na mesma obras poderosíssimas, fabulosas peças de arte cinematográfica e (quase) perfeitas? ‘Partie de campagne’ (1936) de Jean Renoir, nunca foi acabado, mas os seus 40 minutos são totalmente auto-suficientes e o filme é um exemplo perfeito da beleza pura que o cinema pode conter. Só um punhado de eleitos é que viu a versão integral de 9h de ‘Greed’ em 1924, mas a versão de 140 min que sobreviveu é inquestionavelmente uma obra-prima do cinema mudo. ‘Hakuchi’ (1951) de Akira Kurosawa, só existe numa versão dilacerada de 2h30 (a versão de 4h está perdida para sempre), mas o filme, apesar dos seus ‘buracos’, é uma das melhores adaptações da obra de Dostoevsky. E o mesmo se pode dizer de outro filme lançado nesse mesmo ano de 1951, realizado por John Huston: ‘The Red Badge of Courage’ (em português: 'Sob a Bandeira da Coragem')
Longe da versão original de 2 horas, que nunca foi, nem nunca será vista, a versão definitiva de apenas 69 minutos de ‘The Red Badge of Courage’ com que a MGM, com alguma relutância, brindou o mundo, constitui contudo um dos mais fantásticos estudos sobre o íntimo do soldado em tempo de Guerra que o cinema já produziu. Um paradoxo? Talvez. Mas é a prova perfeita de que a arte nunca pode ser abafada. A versão original de Huston devia ser brilhante. Os cortes só lhe tiraram um bocado do lustro, mas nunca poderiam afectar o seu brilho interior. Pois a alma de ‘The Red Badge of Courage’ é imensa, e quando o filme tem uma alma destas, não há corte que o estrague. ‘Blade Runner’ teve de esperar 25 anos até ver a sua versão definitiva, sem voz off, sem sequências de dia, com a cena do unicórnio. Mas até isso acontecer já era, apesar de tudo, um filme de culto. Nunca veremos a versão original de ‘The Red Badge of Courage’. Mas a que existe já é mais que suficiente para convencer qualquer cinéfilo, e a simplicidade e a linearidade que acaba por ter ajudam em vez de desajudar.
Após a Segunda Guerra Mundial, John Huston, que havia iniciado a carreira com o espectacular ‘The Maltese Falcon’ (1941), teve um enorme pico de produtividade. Com outra obra-prima com Humphrey Bogart, ‘The Treasure of the Sierra Madre’, ganhou dois Óscares para Argumento e Realização (os únicos da sua carreira) e seguir-se-iam ‘Key Largo’ (1949) e ‘Asphalt Jungle’ (1950). Louis B. Mayer, o director da MGM, começou a cortejar Huston para realizar o que seria ‘Quo Vadis’ (1951). Huston nunca se mostrou muito interessado, mas para o tentar convencer Mayer aceitou financiar o filme que Huston realmente queria fazer, a adaptação do livro ‘The Red Badge of Courage’ de Stephen Crane, escrito em 1895. Depois de filmar e montar ‘The Red Badge of Courage’, Huston entregou o filme ao estúdio e rumou a África com Bogart e Katherine Hepburn para filmar ‘The African Queen’ (1951). Isto foi óptimo pois este é um dos melhores filmes da sua carreira. Mas foi mau no sentido em que estava longe, muito longe, quando o estúdio decidiu dilacerar ‘The Red Badge of Courage’, um filme sem um único papel feminino e com cenas chocantes de guerra que nunca tinham sido vistas anteriormente no cinema, e que o estúdio assumiu que o público não iria aceitar. Anos mais tarde, em 1975, a MGM perguntou formalmente a Huston se tinha uma cópia da versão original. Ele disse que não. O estúdio também não a preservou. Só nos resta então comentar e apreciar a versão ‘oficial’ de 69 minutos.
A história do filme, nesta sua versão, é bastante simples, até mais do que a do livro. Conta a história de um soldado da Guerra Civil Americana, Henry Fleming, ao longo de apenas três dias: antes, durante e depois de entrar em acção na sua primeira grande batalha. O filme abre com a voz off de James Whitmore (uma daquelas adições do estúdio para colmatar os ‘buracos’ da versão cortada e para a tentar tornar mais apelativa), que nos fala do livro original, do seu autor e da história que vamos começar a assistir. Diz-nos também que toda a narração que ouviremos daí em diante serão frases retiradas do próprio livro. O filme fica assim com um estilo de ‘documentário literário ilustrado’, o que não é mau de todo (é como aqueles programas do canal História mas com infinita maior qualidade cinematográfica), mas tem o senão de estragar muitos momentos solenes do filme, em que a imagem seria bem mais que suficiente para transmitir as emoções das personagens.
As atenções centram-se num regimento que ainda não viu acção. Há meses que está em manobras e em treinos e os soldados estão impacientes. Entre eles o nosso herói, o soldado Henry Fleming, que, quando finalmente chegam as ordens de que irão para a frente no dia seguinte, começa a duvidar se terá a coragem suficiente para enfrentar a guerra. A forma como treme, escreve uma carta aos pais e começa a perguntar aos outros soldados se acham que se vão acobardar quando a hora chegar, é mais do que prova disso (e como se não bastasse a voz off dá-nos uma ajuda…).
Irónico portanto que o actor escolhido para interpretar Fleming, o soldado acobardado, tenha sido Audie Murphy. Murphy tinha apenas 26 anos quando filmou ‘The Red Badge of Courage’, mas meia década antes havia sido o soldado americano mais condecorado da Segunda Guerra Mundial. Depois da Guerra, James Cagney trouxe-o para Hollywood, mas tirando este filme e ‘To Hell and Back’ (1955), uma espécie de autobiografia que foi um sucesso de bilheteira, pouco mais foi que um actor secundário esquecido. Independentemente disso, em ‘The Red Badge of Courage’ Murphy está brilhante, e diz mais com o olhar do que muitos actores com dez falas. E ao escolhê-lo para o papel, Huston é muito mais do que irónico. Está realmente a demarcar uma posição; que os soldados não são heróis, mesmo os mais valentes. São humanos. E a personagem do soldado Fleming é totalmente humana e consequentemente totalmente credível. Murphy canaliza toda a sua experiência de guerra para o papel, e nós, como espectadores, sentimos isso. Mais, também sentimos que apesar de todas as suas medalhas, o medo antes da batalha não lhe era estranho. Não podia ter sido, pois nunca o poderia interpretar assim, se não o conhecesse. E isso dá uma dimensão infinita à peça.
No dia seguinte, na linha da frente, o soldado Fleming realmente acobarda-se e bate em retirada, deixando os companheiros à sorte. Mas cedo se arrepende e procura regressar à linha da frente para se redimir. O filme segue-o num conjunto de quadros em que procura voltar a juntar-se ao seu regimento e aguardar uma nova batalha em que finalmente poderá provar o seu valor, e provar a si próprio que não se irá voltar a acobardar. Pelo caminho tem conversas com outros soldados, uns feridos que dizem adeus à guerra, e outros que, tal como ele na noite antes da batalha, se sentam à fogueira partilhando histórias. Até que chega o novo dia e a tão esperada batalha, onde o soldado Fleming poderá finalmente (re)nascer como soldado, e mais do que isso, como homem.
Não há palavras para descrever a profundidade de ‘The Red Badge of Courage’. A versão cortada torna o filme bastante simples estruturalmente, e muito directo na sua linha argumental, que segue quase exclusivamente o soldado Fleming nos períodos chave destes três dias. Mas há uma enorme subtileza e um enorme realismo neste retrato, e quando o filme se afasta de Fleming, há sempre um propósito bem claro para o fazer.
Para começar os diálogos são extremamente eficazes. Não há aqui nenhuma da lamechice que costuma pontilhar os filmes de guerra. Tudo surge naturalmente, quer durante quer entre batalhas. Inevitavelmente poderá haver algum excessivo sentimentalismo (algo pelo qual o filme é geralmente criticado), mas parece-me que isso advirá da telegrafia de algumas cenas (principalmente aquelas com as personagens secundárias), do uso abusivo da voz off a narrar passagens do livro (que destrói a ilusão) e da forma como os eventos mais dramáticos não são ponderados. Por exemplo, assistimos à morte de um soldado ferido, numa cena que é forte, mas não muito intensa, e o filme avança logo, cheio de pressa, para o momento seguinte. Reza a lenda que havia uma morte muito mais forte, muito mais chocante, que foi cortada da versão final.
Contudo não há nada de errado com o arco do soldado Fleming, com cortes ou sem cortes. O rosto de Murphy conduz-nos pelo filme, pelo oscilar de emoções. Nele, não é tudo preto no branco, nem salta do medo ao heroísmo num segundo, só porque sim. O miolo do filme, durante mais de 45 minutos entre a primeira batalha em que foge e a batalha final em que prova o seu valor, vai construindo cuidadosamente esta sua alteração emocional. Cada conversa que tem com os seus camaradas, cada evento a que assiste (a procissão dos soldados feridos, a tal morte de um deles, o general a discutir planos numa clareira da floresta e a falar dos soldados como “carne p’ra canhão”, o descobrir que o seu melhor amigo, interpretado por Bill Mauldin, também se acobardou na primeira batalha), contribuem lentamente para a sua mudança. E durante esse caminho todo permanece humano, permanece receoso, dúvida. Não é um herói.
Claro, a batalha final em que Murphy é retratado, agora sim, como um herói, poderá ser excessivamente forçada, mas perdoamos. E perdoamos primeiro porque é um herói apenas para o filme e para os seus camaradas (e para o espectador, se quiser), mas nunca para si próprio. No final, ele sabe que não ganhou nada, apenas não perdeu a coragem. Segundo porque enquadrando as personagens está um filme brilhantemente filmado, das melhores realizações que Huston concebeu na sua carreira. O filme tem uma fotografia imaculada, um design de produção fabuloso (estamos literalmente dentro da guerra civil) e, para 1951, um ousadíssimo realismo de guerra que, com raras excepções, não se viu em filmes até então. Obviamente vemos pouco sangue e as cenas mais chocantes foram cortadas da versão final, mas mesmo assim, na minha opinião, foi este retrato de ‘The Red Badge of Courage’ que ajudou a moldar todos os filmes de guerra subsequentes. Outro filme de guerra quebra-convenções dos anos 1950, ‘Paths of Glory’ (1957) de Kubrick vem-me mais do que uma vez à memória quando assisto a ‘The Red Badge of Courage’, e parece-me óbvio que Kubrick foi influenciado por Huston. Veja-se a cena em ‘The Red Badge of Courage’ em que o General vai de posto em posto elevar a moral dos soldados repetindo exactamente as mesmas frases feitas e as mesmas promessas ocas. Vimos exactamente o mesmo no filme de Kubrick. Em ambos os filmes, de uma forma subtil, sem precisar de se dizer mais nada, é-se tão poderoso e tão incisivo como se se estivesse a filmar um soldado a morrer de uma morte atroz. Da mesma forma, apenas recorrendo a imagens simples mas bem construídas, no final sabemos que na guerra nunca há vencedores, e que todo o heroísmo a maior parte das vezes é em vão.
‘The Red Badge of Courage’ foi, tal como Mayer tinha previsto, um fiasco de bilheteira, mas não é de espantar, já que o filme foi fortemente cortado e muito pouco promovido. Contudo, as discussões internas na MGM entre Mayer e o seu painel de administradores sobre principalmente ‘Quo Vadis’ e ‘The Red Badge of Courage’ tiveram consequências históricas. Louis B. Mayer foi obrigado a demitir-se do cargo de director da MGM, um cargo que ocupava desde 1924 num estúdio que ajudara a criar. Foi o princípio do fim da era dos estúdios e dos seus ‘ditadores’.
Se hoje em dia ‘The Red Badge of Courage’ pode parecer um filme de guerra extremamente simples e linear, sem grandes (ou nenhumas) ramificações e pouca intensidade dramática, é inegável a humanidade da sua mensagem e a estrondosa mestria da sua realização. Por vezes, as coisas mais simples são as mais eficazes, e é por isso que eu disse no início desta crítica que os cortes conseguiram de certa forma ajudar em vez de desajudar. A guerra cinematográfica não é bem retratada só se for horrenda e explosiva, e se tiver cenas extremamente realistas de devastação. É bem retratada se retratar com profundidade os homens que a viveram. ‘Saving Private Ryan’ (1998) é um excelente filme de guerra moderno porque aborda com mestria ambas estas facetas. Os melhores filmes de guerra clássicos de Hollywood, como ‘Battleground’ (1948, também da MGM, e que também teve de colidir com Mayer) ou ‘The Red Badge of Courage’ poderão ser, obviamente, bastante mais fracos para os padrões de hoje em termos da espectacularidade bélica do conflito, mas compensam grandemente com a sua alma e com a sua humanidade. E como disse no início, a alma de ‘The Red Badge of Courage’ é imensa.
Dilacerado, a versão que conhecemos de ‘The Red Badge of Courage’ acaba por ser, mesmo assim, uma alegoria simples e poética, uma história inspiracional linear mas profunda, com uma realização íntima e épica ao mesmo tempo. Se algum filme é um hino ao soldado desconhecido, é este. E só nos resta sonhar o quão grandiosa seria a versão original. Pode ser que um dia surja. Se encontraram a versão integral de ‘Metropolis’ num cofre na Argentina, talvez um dia encontrem a versão que Huston submeteu ao estúdio, antes de partir para África. Quem sabe, talvez seja precisamente em África que ela esteja…
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