Realizador: Ron Howard
Actores principais: Mel Gibson, Gary Sinise, Rene Russo
Duração: 121 min
Crítica: Embora hoje esteja um pouco esquecido (o seu ultimo filme foi ‘Rush’ – quem falou dele pela realização? em que poster é que apareceu escrito ‘do realizador de A Mente Brilhante’?) Ron Howard foi na realidade um dos mais completos artistas do cinema americano das últimas décadas. Começou como child star nos anos 1970 (em filmes da Disney ou em ‘American Graffiti’, 1973), tornou-se realizador de filmes ligeiros nos anos 1980 (‘Splash’, ‘Cocoon’), realizador de blockbusters nos anos 1990 (quem não os fazia nessa década?!) e desaguou em filmes supostos ‘sérios’ e ‘importantes’ na década de 2000. Em 2001 obteve finalmente o Óscar de Melhor Filme e Melhor Realizador por ‘A Beautiful Mind’ (quem acha que devia ter ganho ‘The Fellowship of the Ring’? Eu….) e prosseguiu a década com ‘Frost/Nixon’ (2008) ou ‘Cinderella Man’ (2005), embora não tenha abandonado o ocasional blockbuster (‘The Da Vinci Code’, 2006).
Apesar de nunca ter feito indiscutíveis obras-primas, apesar de ter um estilo Hollywoodesco e bastante americanizado, o seu dom visual é inegável, bem como a beleza das suas composições. Os majestosos espaços abertos de ‘Far and Away’ (1992), a claustrofobia de ‘Apollo 13’ (1995), as chamas de ‘Backdraft’ (1991), as ilusões de John Nash em ‘A Beautiful Mind’ constituem elementos que continuamente seduzem o espectador; imagens vibrantes e cheias de vida que são aquilo que realmente constitui o grande cinema de entretenimento. Infelizmente, no caso de Howard, os produtos finais muitas vezes não fazem jus a estes deliciosos pormenores (veja-se a história fraca de ‘Backdraft’, por exemplo), mas não se pode ter tudo.
O Óscar chegou em 2001, mas acho que, até ver, a década de 1990 foi o melhor período de Howard. ‘Far and Away’, por exemplo, se conseguirmos suportar duas horas de Tom Cruise e Nicole Kidman, é um filme cheio de valências escondidas. E ‘Apollo 13’ (Huston, we have a problem!) é o blockbuster familiar por excelência, e um fabuloso filme no espaço (sim, bem melhor que ‘Gravidade’ – estou a falar do filme, não só da fotografia…). Se pela mesma altura Michael Bay estava a fazer ‘Bad Boys’ (1995) e ‘The Rock’ (1996), blockbusters explosivos e com carradas de adrenalina, os blockbusters de Howard eram muito mais convencionais, de acção e tensão mais inteligente, muito mais all-american, e apontados não só para o fã de acção, mas para todos os públicos, na boa tradição dos anos 1990, que o próprio Howard ajudou a conceber.
E este seu dom, comercial e de entretenimento, não passou despercebido das grandes estrelas. Duas vezes seguidas, Howard trabalhou com o actor mais badalado do momento (quantos realizadores podem dizer isso?). Foi com Howard (em ‘Apollo 13’) que Tom Hanks trabalhou logo após ganhar os seus dois Óscares seguidos de Melhor Actor, em 1993 e 1994. Foi com Howard que Mel Gibson trabalhou logo após ganhar o Óscar de Melhor Filme e Melhor Realizador por ‘Braveheart’ (1995). E este filme foi ‘Ranson’, em português ‘Resgate’.
‘Ranson’ não podia esta mais perto daquilo que foi a espinha dorsal do blockbuster americano dos anos 1990. Todas as características que o leitor se recorda, e que agora só aparecem, com algum auto-gozo, em filmes semi-nostálgicos de velhos dinossauros, ‘Ransom’ tem. Mal o filme começa, há pouco tempo para enquadramentos ou construções de personagens. O filme ataca logo a jugular, vai imediatamente ao sumo, claramente demarcando quem são os heróis e quem são os vilões (twists de personalidades são inexistentes), transformando tipos vulgares em heróis do dia (se um familiar está em perigo, sabemos que o nosso herói enfrentará tudo e todos), e, após duas horitas com um arco argumental mais que previsível, dá-nos um final ‘tudo está bem quando acaba bem’. E o pacote está todo envolto por um embrulho cinematográfico que tenta equilibrar de um lado acção, tensão e um ritmo frenético, e do outro um drama emocional profundo, com significado. Mas nem um nem o outro prato da balança são muito bem conseguidos.
Gibson interpreta um milionário da indústria da aviação, que vive uma vida de luxo com a sua mulher (Rene Russo, no pico da sua popularidade, e que já havia sido emparelhada com Gibson em ‘Lethal Weapon 3’, 1992) e o seu jovem filho (o actor Brawley Nolte, filho de Nick Nolte). Na primeira cena, numa festa em sua casa, é lançada a dúvida de que o passado de Gibson, e a geração da sua fortuna, pode estar manchado por qualquer ilegalidade. Na segunda cena, o seu filho é logo raptado. Simples, não? Mas o filme ainda torna a coisa mais simples e mais linear. Na quarta ou na quinta cena, poucos minutos depois, o filme mostra que o raptor é nenhum outro senão um polícia corrupto, interpretado por Gary Sinise (uma boa performance de ‘vilão’). E como se não bastasse o filme também nos mostra todos os elementos do seu gang, que inclui actores como Lili Taylor e Liev Schreiber. Portanto, no final do primeiro acto, o público já sabe quem são os vilões e o que pretendem. O elemento de surpresa é completamente inexistente, e uma boa oportunidade de criar tensão foi passada ao lado. Sem o mínimo de esforço, podiam ter mantido o segredo, o suspense, um pouco mais de tempo, o que só teria valorizado o filme.
Este gang de malfeitores pede então o resgate que dá o título ao filme, e a história prossegue com os trâmites usuais, onde um Gibson cada vez mais irado pressiona a policia para encontrarem o seu filho. As roldanas da polícia também giram como habitualmente, e uma transacção é combinada, numa tentativa de não só recuperar o filho de Gibson, mas também de não ter que pagar o resgate e apanhar os malfeitores. A meio do filme, tudo parece estar a convergir para um final previsível, mas a transacção corre mal e o jogo do gato e do rato recomeça. O filme corre aqui o risco de cair no mesmo padrão e de se voltar a repetir, mas aí joga a sua grande cartada, o que é uma lufada de ar fresco. Gibson decide abdicar da ajuda da polícia e toma o assunto nas próprias mãos. Se fosse uma das suas personagens dos filmes policiais, ou se fosse Liam Neeson nos seus mais recentes filmes, saberíamos o que iria fazer e o que estava para vir. Mas como Gibson é “apenas” um empresário milionário tem umas ideias novas. Primeiro vai para à televisão com o dinheiro do resgate e diz, em directo, que o dará, não aos vilões, mas a quem quer que os apanhe, mortos ou vivos, transformando assim o predador na presa. Depois, vai também sujar um bocadinho as mãos (mais com inteligência do que propriamente com força bruta) – tudo, para no fim voltar a abraçar o filho.
Verdade que este pequeno twist do argumento leva a cenas mais interessantes do que se o filme fosse uma mera reprodução da fórmula rapto-salvamento. E os tête-à-tête, primeiro pelo telefone, e no final cara a cara, entre Gibson e Sinise são intensos, muito embora com alguns diálogos fracos (fã de H.G. Wells, aquele diálogo sobre os Morlocks dá-me vontade de desligar a televisão…). Mas francamente, o público sabe perfeitamente quem é o raptor desde o início, sabe perfeitamente onde ele está, sabe perfeitamente o seu plano e as alterações que têm de improvisar pelo caminho, e sabe perfeitamente onde está o miúdo. Veja-se as cenas quer de ‘Silence of the Lambs’ (1991) quer de ‘The Fugitive’ (1993), em que há o ataque da polícia à casa errada. Sabemos quem é o assassino porque o filme já o mostrou, mas não sabemos o seu nome nem por onde anda. Aqui, cenas análogas não fazem sentido, porque o público sabe o que se passa de todos os ângulos. Não estar completamente às escuras ajuda a que o público fique envolvido nas cenas (veja-se os artifícios do mestre Hitchcock), mas se estiver completamente às claras vai perder o interesse. Os supostamente inteligentes twists no final, quando Sinise, ainda sob a fachada de polícia honesto, vai a casa de Gibson, podem ser inesperados para as personagens, mas não para o espectador, que já sabia, ou pelo menos fortemente suspeitava, o que ia acontecer. Sendo um blockbuster familiar, não há surpresa de que no fim pai e filho se encontrarão. A única surpresa é como é que isso vai acontecer. Mas graças a estas escolhas de escrita de argumento, nem isso consegue ser realmente uma surpresa, o que obviamente faz com que o filme perca tensão e suspense, e consequentemente interesse.
Mel Gibson nunca foi levado a sério como actor dramático (nem sequer foi nomeado para o Óscar de Melhor Actor em ‘Braveheart’), mas aqui, tal como no primeiro ‘Mad Max’ (1979), tal como no primeiro ‘Lethal Weapon’ (1987), tal como no fantástico ‘Edge of Darkness’ (2011), Gibson é muito mais do que um herói de acção intento em vingar-se. Gibson oferece uma profundidade dramática invulgar, não abertamente, mas como nuances da sua performance dinâmica, que não deviam passar assim tão despercebidas dos críticos como geralmente passam. Já Rene Russo está muito mais abertamente, e comercialmente, dramática, chorando na maioria das cenas (a tal profundidade oca que o filme pretende ter), mas é cuidadosamente posta de lado quando a atenção se centra em Gibson. Destaco também a performance de Delroy Lindo como o calmeirão agente do FBI.
Tudo somado, ‘Ranson’ é um blockbuster de entretenimento na vanguarda do género dos anos 1990, e tem uma invulgar componente humana bastante acentuada, mas não muito trabalhada. Contudo, o filme acaba por ser demasiado longo e demasiado previsível, pois o espectador já sabe tudo, e depois tem que se resignar a esperar pacientemente que as personagens descubram aquilo que ele já sabe. O filme fica tão vidrado em chegar ao seu ‘final feliz’, e fica tão contente quando o faz, com música a condizer (a banda sonora é de James Horner, no pico do seu contributo à arte cinematográfica – no ano seguinte comporia a banda sonora de ‘Titanic’), que se esquece de fechar arcos da história e das personagens. Por exemplo, o passado incerto de Gibson, e as suspeitas que foram lançadas no início, que projectavam uma sombra na subcorrente do filme e davam alguma profundidade à sua personagem, são misteriosamente esquecidas e atiradas para debaixo do tapete.
O pai salva o dia. E resto não interessa. Que mais se podia querer de um blockbuster dos anos 1990? Para o bem ou para o mal, era assim que se fazia o cinema comercial (até rimei). ‘Ransom’ pode não ser uma grande obra quando comparado com outros blockbusters contemporâneos (inclusive do próprio Howard), mas é um excelente exemplo de como se fazia cinema familiar de acção, cativante e ritmado, de ‘sábado à tarde’, sem depender de tiros à maluca, violência despropositada ou efeito especiais. Bons velhos tempos da minha adolescência… E por causa disso, é um filme que envelhece bem e que pode ser continuamente revisitado, com a mesma despreocupação e a certeza de um final feliz.
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