Realizador: Woody Allen
Actores principais: Colin Firth, Emma Stone, Marcia Gay Harden
Duração: 97 min
Crítica: Woody Allen. Take 49 (se incluirmos curtas e filmes para a televisão). Dizia por estes dias outra blogger cinematográfica portuguesa que, bom ou mau, nunca se deve perder um novo filme de Woody Allen no cinema. Eu concordo com a segunda parte da frase, mas não com a primeira. Isto porque Allen não tem filmes maus. Tem filmes menos conseguidos, não tão interessantes, mas apenas quando enquadrados no universo do seu próprio espólio. Escrevia também Jorge Mourinha, do Jornal Público, que este novo Allen era só rotina. Mas será mesmo? Que significa isso, rotina? Porque faz lembrar os seus filmes anteriores? Porque existe no mesmo universo? Porque não tem nada de novo, de original? Sim, 'Magic in the Moonlight' tem elementos de filmes anteriores. Sim, existe no mesmo universo, no Universo Allen, mas não teria sentido nenhum Allen fazer filmes no Universo de Sergio Leone ou de Tarkovsky. Mas seria estar a mentir dizer que o filme é um mero exercício rotineiro, sem nada de novo para oferecer aos leais fãs.
Para mim uma das coisas que mais me fascina em Allen é como consegue escrever e realizar argumentos originais (repito originais) há quase 50 anos, e ainda ter fôlego para conceber, Verão após Verão, filmes muito acima da oferta contemporânea, e que nos dão motivos para sorrir, para amar a vida e amar o cinema. A sua soberba trilogia com Scarlett Johansson ainda nem sequer celebrou o seu 10º aniversário. ’Midnight in Paris’ (2011) é mágico. ‘Blue Jasmine’ (2013) é um drama profundo, muito bem construído. E até mesmo os seus filmes “menores”, mais leves, como ‘From Rome with Love’ (2012), não são totalmente rotineiros, pois conseguem sempre ter pormenores deliciosos (o cantor de ópera no chuveiro, a personagem de Roberto Benigni) e, se mais nada, captam na perfeição a essência de uma cidade. Ainda recentemente vi ‘Le Weekend’ (2013), passado em Paris, mas que bem podia ser em Pittsburg, tão deficiente era a capacidade do filme captar a natureza da cidade das luzes. E se eventualmente Allen faz filmes maus (‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’, 2010), eles são maus só porque Allen nos habituou a um enorme padrão de excelência, e todos têm, invariavelmente, como escrevi na crónica de ‘Blue Jasmine’:
“aquela magia cinematográfica que caracteriza um grande cineasta, bem como pequenas pérolas, numa actuação, numa cena, numa frase que capta um sentimento, que facilmente fazem esquecer que se calhar já vimos aquele filme antes com outras personagens. Um homem que faz um filme por ano não consegue fazer sempre obras-primas, mas por um lado quando as faz fá-las como ninguém, e por outro quando não as faz, o filme é, mesmo assim, e salvo raras excepções, uma peça cómico-dramática sólida da qual o público pode depender para 1h30 de qualidade cinematográfica que tão rara é de encontrar hoje em dia.”
Neste enquadramento, ‘Magic in the Moonlight’ (em português, ‘Magia ao Luar’) surge com este selo de qualidade, e como algo mais do que apenas ‘mais um’ de Allen. Infelizmente é um filme que tem um fosso enorme entre a sua primeira parte, abrilhantada com todas as características que amamos no cinema deste pequeno nervoso grande homem, e a sua segunda parte, essa assim muito mais agastada, muito mais rotineira, que quase parece ter sido escrita quando Allen estava a dormir, ou a tocar saxofone. Esta dicotomia não eleva ‘Magic in the Moonlight’ ao pódio dos grandes filmes de Allen, mas pelo menos a sua primeira parte proporciona aquela frescura, aquela irreverência argumental (mesmo que rondando temas familiares), que nos permitem embrenhar sempre nas personagens e nas tramas com que o sr. Woody nos brinda há meio século.
O título e o tema já proporcionaram por aí algumas comparações a outros filmes com elementos mágicos e místicos de Allen como ‘The Curse of the Jade Scorpion’ (2001) ou ‘Scoop’ (2006), (toda a gente se esquece de ‘Alice’, 1990, o mais ‘mágico’ de todos), mas eu sinceramente não concordo. Para mim, a estrutura do filme está muito mais próxima dos seus mais recentes ‘filmes de crime’, embora seja construído de uma forma muito mais leve, e tem uma ousadia simpática mas nevrálgica que há duas décadas seria quase impossível de imaginar que Allen teria capacidade para produzir.
O filme abre em Berlin, na década de 1920, e começa por nos mostrar um espectáculo de magia, rico em espectaculares truques feitos por um dos maiores mágicos do Mundo, Wei Ling Soo. Findo o espectáculo, vemos nos bastidores que esse mágico chinês é na realidade um inglês, Stanley (Colin Firth), um ser egocêntrico, agnóstico, sarcástico e rude, que apenas vive para si e para a sua arte. Mourinha jura a pés juntos que Firth baseou a sua performance em Rex Harrison em ‘My Fair Lady’. Não vejo a relação. Mas sugiro que vejam este filme, e depois vejam a série ‘Fawlty Towers’ (1975). Macacos me mordam se Firth não está a imitar os tiques de voz e todos os pormenores histéricos de John Cleese… Pessoalmente não gosto de Firth, e não é a sua performance aqui que, mais uma vez, me convence – a sua artificialidade britânica e Cleesesca torna-se muitas vezes insuportável. Aliás, esta é uma das coisas que mais me chamou à atenção pela negativa neste filme. Os actores, salvo raras excepções (Eileen Atkins, Marcia Gay Harden) são maus e têm performances demasiado rígidas, nada típicas dos trabalhos de Allen.
De qualquer forma o argumento é bastante simples. Um velho amigo de Firth, outro mágico, Howard (interpretado por Simon McBurney), vai ao camarim após o espectáculo com uma proposta tentadora. Ele é hóspede na casa de férias no Sul de França de uma família rica, que, pensa ele, está a ser ludibriada por uma suposta médium (Emma Stone) e pela sua mãe (Gay Harden). Mas como Howard ainda não conseguiu descobrir os truques que esta médium utiliza, desafia Firth a ir com ele para a tentar desmascarar. Partem então os dois para o Sul de França, onde Firth tem também uma tia rica (Atkins, a melhor actriz do filme). E depois o filme começa a desenrolar-se como um sarcástico jogo de gato e do rato, entre Firth e uma inicialmente tímida Emma Stone, que aos poucos vai desabrochando (infelizmente de uma forma demasiado americanizada). Uma e outra vez ele tenta descobrir os truques dela (como adivinha coisas sobre pessoas que não conhece, como faz levitar objectos numa séance), sem conseguir.
Esta primeira parte, que gira à volta deste relacionamento entre os dois, é sem dúvida o melhor que este filme tem para oferecer. Passado na década preferida de Allen, o filme tem um fabuloso enquadramento cénico. Primeiro, de uma forma muito fugaz, em Berlim, e depois no Sul de França, o enquadramento de época é subtil, mas sempre eficaz, passando para o espectador sem precisar de chamar a atenção para si próprio. Este natural à vontade faz com que este retrato da década de 1920 seja mais honesto que muitas produções espalhafatosamente passadas nela (como ‘The Great Gatsby’) o que vale muitos pontos para Allen. Ao mesmo tempo, a história é cativante, pois como um bom thriller (embora neste caso seja um thriller muito diluído numa comédia romântica), prende o espectador com a sua questão chave. E neste caso a questão é: Emma Stone, fraude ou autêntica? Como inicialmente isto não é previsível, o espectador oscila entre achar que sim e achar que não, e antes de se dar conta já está embrenhado na trama; no contexto, nas personagens, nas cenas, e fica em pulgas para descobrir o segredo.
Quando o filme começa a dar pistas de que Stone poderá ser autêntica, e quando mesmo o céptico Firth começa a converter-se (e obviamente apaixonar-se por ela), a história ganha uma valência inesperada. A reflexão, tão bem oferecida nos diálogos “à la Allen”, sobre a vida e sobre a morte, e sobre o motivo de estarmos no Universo (uma reflexão natural e real, não artística e estilizada como quando Allen tentava imitar Ingmar Bergman nos anos 1970), é, sem dúvida alguma, a mais bem trabalhada e mais profunda de todas as suas comédias-românticas e talvez, arrisco-me a dizê-lo, de todos os filmes que alguma vez fez. Isto porque os seus dramas são geralmente pessoais e não universais, focam-se nas pessoas e não abordam o todo, a humanidade, o cosmos. Mas no caso de ‘Magic in the Moonlight’ esses acordes dramáticos, mesmo que por breves momentos, existem - veja-se, por exemplo, a cena do observatório. Allen sempre teve receios sobre o que há depois da vida, mas eram reflexões geralmente egocêntricas. Agora, com 80 anos, é irónico que use uma personagem egocêntrica, que nem sequer é interpretada por si próprio, para tentar descortinar essa verdade mais universal.
Contudo, o filme peca por rapidamente abandonar estes pensamentos e regressar ao seu agnosticismo de trazer por casa, e ao seu estilo de comédia romântica leve. Logo cedo na trama, a química (se é que alguma vez existiu) entre Firth e Stone esgota-se, o desfecho torna-se previsível (eu adivinhei-o passado meia hora de filme), o segredo é revelado sem um estrondo (o filme avança como se nada fosse e as personagens fazem o mesmo), e os elementos que tanto interesse deram à primeira parte do filme desaparecem, ou melhor, continuam a existir, mas não avançam. Na marca dos 70 minutos, o filme já deu tudo o que tinha a dar, e se tivesse essa duração (qual era o mal?), ainda podia ser considerado como uma boa e sólida obra. Em vez disso, a última meia dúzia de cenas constitui uma desnecessária e arrastada repetição, que faz bastante mal ao filme. Stone: ilusão, magia ou dura realidade? Firth: orgulho ou amor? Stone: amor ou o conforto da boa-vida? (o filho da família rica está sempre a bombardeá-la com propostas de casamento). Firth: acreditar em nada ou abraçar uma nova visão da vida? São questões que se repetem e repetem e repetem, como raramente se vê Allen a fazer. Não me parece obrigatório que um filme tenha que ter sempre pelo menos 90 minutos, mas se é para tê-los, não se pode encaixar uma história de 70 em 90 minutos sem lhe acrescentar qualquer coisa. Neste caso, infelizmente, não se acrescenta nada.
Por ter, no global, um mau conjunto de actores, por ter sido bem desenvolvido apenas a metade, por não se ter capitalizado no 'segredo' como um elemento forte da trama, e por este ser rapidamente abandonado em prol de uma química romântica que, sinceramente, não é a melhor, este é um filme atípico de Woody Allen, como só de dez em dez anos nos oferece (‘Melinda & Melinda’, 2004, por exemplo). Ao mesmo tempo, há alguns desequilíbrios. Veja-se como a personagem da mãe da vidente (Gay Harden) praticamente não volta a aparecer depois das cenas iniciais. Como reage ao ‘segredo’? Qual o seu futuro?. Veja-se como Emma Stone, inicialmente tão confiante, muda de personalidade quase 180º, como se fosse quase uma pessoa diferente depois do primeiro segredo ser revelado. Veja-se como há tanto trabalho para construir a viragem emocional de Firth, mas depois as suas mudanças de emoção no final são completamente abruptas. São arcos de personagem pouco dignos de Allen, e contrastam com o retrato exaustivamente trabalhado de Cate Blachett o ano passado em ‘Blue Jasmine’.
Mas por outro lado, os fãs do género (sim, porque Woody Allen é um género por si próprio) vão encontrar uma excelente captação de uma atmosfera – Sul de França na década de 1920, à partes que permitem pequenas (e algumas até grandes) risadas, diálogos fluídos, e personagens que, mesmo seguindo um padrão usual, mesmo não completamente convincentes, ponderam, mesmo que fugazmente, questões incisivas e importantes sobre a vida, embora seja claro que estas reflexões saem da alma do realizador, não da sua, tornando-as ainda mais ocas.
Tudo somado, ‘Magic in the Moonlight’ é mais que rotina, mas é abaixo da média. É sem dúvida bem melhor que o último filme de Allen com videntes ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ (o seu pior filme dos últimos 20 anos, para não dizer de sempre) mas está claramente abaixo do seu espólio recente. Woody sabe fazer melhor e dita a tradição que esse melhor mais que provavelmente virá já no próximo ano, pela mesma altura. E nós vamos estar cá para vê-lo, e aplaudir.
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