Realizador: Edgar G. Ulmer
Actores principais: Tom Neal, Ann Savage, Claudia Drake
Duração: 67 min
Crítica: Uma das grandes tragédias do cinema americano actual, pelo menos para mim, é o facto de os denominados “filmes de série B”, serem realmente de série B. Isto para não lhes chamar de série Z. Se o leitor já viu algum filme do canal Sci-Fi sabe de que é que estou a falar. Maus actores, efeitos especiais patéticos, histórias levemente recicladas de grandes sucessos, mas com muita menos qualidade visual, artística e dramática. A única coisa que pode salvar um destes filmes é terem uma qualidade kitsch tão acentuada que “de tão mau se tornam bons”; uma espécie de guilty pleasure para não termos que pensar muito e nos rirmos um pouco com os lugares comuns, enquanto o cérebro está meio adormecido. E de quando em quando, felizmente, lá aparece um desses.
Mas houve uma altura em que não era bem assim. Os filmes de série B sempre serviram para encher a programação. Hoje é da televisão. Outrora foi do cinema. A ida ao cinema era uma experiência de uma tarde, e por um valor do bilhete o espectador via uma curta de animação (Tom & Jerry, Mickey Mouse), uma newsreel, e muitas vezes dois filmes, um mais pequeno, o tal de série B, com pouco mais de uma hora, e outro maior, a main feature, o alvo da promoção e aquilo que na realidade todos queriam ver. Mas os filmes de série B tinham muito mais do que a sua qualidade ‘para encher’. Muitos eram feitos nos mesmos estúdios dos grandes filmes, com muita da mesma experienciada equipa técnica, mas muito menos recursos em termos de cenários, tempo de produção e orçamento. Era o local para novos realizadores e actores se lançarem e experimentarem com a arte, e onde podiam ter muito mais independência, desde que pusessem o produto ‘in the can’ dentro do prazo. Ainda recentemente vi filmes como ‘The Last Outpost’ (1935), com um jovem Cary Grant, e ‘A Man’s Castle’ (1933) com um jovem Spencer Tracy, ambos com muito que se lhe diga. E há também o fabuloso ‘Out of the Fog’ (1941), ‘The Narrow Margin’ (1952) e tantos outros, que usavam as suas restrições para o seu beneficio. Estes dois últimos são filmes noir, um género que muito naturalmente se acomodou na série B; a história urbana estilizada, o p/b e o nevoeiro a esconder a pouca qualidade dos cenários, a proverbial voz off. Há provavelmente melhores noir de série B do que de série A.
E o mais famoso deles todos é ‘Detour’ (em português 'Desvio'). É um pouco difícil de perceber porque motivo é que ‘Detour’ ganhou este título, mas agora até parece sacrilégio dizer outra coisa, e especialistas e não especialistas repetem-no. Foi o primeiro noir, e o primeiro filme de série B, a ganhar um lugar na Biblioteca do Congresso. É presença constante nos livros de especialidade. Está incluído no volume 1 do livro 'The Great Movies' de Roger Ebert. Mas não é um pioneiro do género (não é o primeiro nem foi o ultimo com esta fórmula), nem é aquele que mais fascina (para mim, o melhor noir de série B é, sem dúvida ‘Out of the Fog’, com John Garfield e Ida Lupino). Com 64 minutos, filmado em 28 dias, com actores praticamente desconhecidos, um orçamento mínimo, cenários quase de cartão e uma história que é a epítome do cinema noir, ‘Detour’ nem sequer é um produto secundário de um grande estúdio. É o produto da Producers Releasing Corporation (PRC), um dos poucos outsiders numa época em que o cinema americano era constituído praticamente por sete grandes estúdios. À primeira vista, a PRC estava a fazer uma cópia barata de outros filmes, capitalizando numa fórmula já enraizada. Aliás, o seu duo de actores principais, Ann Savage e Tom Neal, tinha acabado de fazer três filmes menores na Columbia Pictures, e a PRC estava a tentar aproveitar a onda do par.
Mas apesar de tudo, e talvez por ter ao leme o experienciado realizador Edgar G. Ulmer (um ex-assistente de Murnau que sempre marinou na realização de surpreendentes filmes B como "The Black Cat", 1934, com Boris Karloff e Bela Lugosi), ‘Detour’ tem uma intensidade que prende, é viciante como só os noir (como ‘The Narrow Margin’) conseguiam ser, e tem um je ne sais quoi, na forma estilizada como está filmado, na moral sarcástica, nos diálogos de policial de cordel, que o tornam único, sedutor e memorável. Dizer que é o melhor parece-me estar a esticar a corda (um daqueles lugares comuns vitimas de efeito bola de neve, que as pessoas repetem já sem saberem porque o estão a repetir), mas ‘Detour’, apesar das suas óbvias falhas (cénicas e argumentais), tem realmente qualquer coisa de transcendental. Não é um “de tão mau se torna bom”. Nem de perto nem de longe. É simplesmente um dos melhores filmes alguma vez feitos que aproveita, sempre a seu favor, todas as limitações da produção, e todos os lugares comuns da sua construção. Todas as falhas são viradas ao contrário e usadas para adicionar um elemento à historia. É incrível.
Mas apesar de tudo, e talvez por ter ao leme o experienciado realizador Edgar G. Ulmer (um ex-assistente de Murnau que sempre marinou na realização de surpreendentes filmes B como "The Black Cat", 1934, com Boris Karloff e Bela Lugosi), ‘Detour’ tem uma intensidade que prende, é viciante como só os noir (como ‘The Narrow Margin’) conseguiam ser, e tem um je ne sais quoi, na forma estilizada como está filmado, na moral sarcástica, nos diálogos de policial de cordel, que o tornam único, sedutor e memorável. Dizer que é o melhor parece-me estar a esticar a corda (um daqueles lugares comuns vitimas de efeito bola de neve, que as pessoas repetem já sem saberem porque o estão a repetir), mas ‘Detour’, apesar das suas óbvias falhas (cénicas e argumentais), tem realmente qualquer coisa de transcendental. Não é um “de tão mau se torna bom”. Nem de perto nem de longe. É simplesmente um dos melhores filmes alguma vez feitos que aproveita, sempre a seu favor, todas as limitações da produção, e todos os lugares comuns da sua construção. Todas as falhas são viradas ao contrário e usadas para adicionar um elemento à historia. É incrível.
A história de 'Detour' é bastante simples (não podia ser outra coisa com apenas uma hora de duração!). O filme começa com um vagabundo (Tom Neal) a entrar num bar. Sentado ao balcão, começa a recordar-se, em flashback e com narração em voz off, falando directamente para o espectador, dos eventos que o levaram de Nova Iorque, onde tocava piano num clube nocturno, até àquele bar, agora na condição de vagabundo.
Um dia a sua namorada decide mudar-se para Los Angeles. Pouco tempo depois, Neal decide ir atrás dela. Sem dinheiro para a longa viagem, inicia uma longa odisseia à boleia pela América. Inevitavelmente, está no sitio errado à hora errada, e o carro errado dá-lhe boleia, mudando o seu destino para sempre. Ao volante está um capanga da pior espécie (interpretado por Edmund MacDonald), que quer o azar que morra subitamente, aparentemente de morte natural, pouco depois. Sozinho no meio da estrada, e receando ser acusado de homicídio deste completo estanho, Neal não tem a decisão mais inteligente da sua vida. Decide enterrar o corpo na valeta, ficar com a carteira do morto (carregada de dinheiro suspeito), e seguir viagem no carro com uma nova identidade.
Contudo, quer o destino também que pouco depois uma jovem esteja a pedir boleia na berma da estrada. Neal decide parar (atendendo às circunstancias não parece, de novo, uma atitude muito inteligente), e assumindo ser o homem que enterrara pouco antes, dá boleia à jovem. Mas esta, interpretada brilhantemente e de uma forma completamente neurótica por Ann Savage, por coincidência (ou não) conhecia o morto. Mal se apercebe que Neal se está a fazer passar por um homem que não é, começa a chantangeá-lo. Depois, quer obriga-lo a continuar a fazer-se passar pelo morto, para obter uma herança de família. A tenção entre os dois vão aumentando e aumentando ao longo da viagem, na rua, em manhosos quartos de hotel, até atingir enormes proporções e consequências desastrosas…
‘Detour’ foi feito por tuta e meia, e tem muitos truques de fotografia para o mascarar. Nos exteriores, o jogo de sombra e luz é constante e não há noite que não tenha uma forte dose de nevoeiro. Os interiores são todos pequenos, nus e claustrofóbicos. E em todas as cenas no carro não é segredo para ninguém que estão parados dentro de um estúdio. Mas todos estes elementos assistem à tenção da trama, e enrolam o espectador neste universo pulp estilizado de criminosos mesquinhos e decadentes. Para os fãs do género, o filme vai ganhando pontos cena a cena, não só por estes enquadramentos visuais, de um artificial realismo (passe o paradoxo), mas também por ter um argumento de ritmo rápido e diálogos saídos directamente do universo de Raymond Chandler ou Dashiel Hammet, mas escritos pelos seus menos talentosos irmãos mais novos. São diálogos quase quase a roçar o piroso e o cheesy mas sem lá chegar, o que nos permite sorrir de prazer, mas não de gozo, ou seja, mantém-se a seriedade e a compostura do filme, mas há a perfeita consciência de que na vida real ninguém fala assim. Vimos isso em ‘The Maltese Falcon’. Vimos isso em ‘Narrow Margin’. E vemos isso aqui. Exemplo: "There ought to be a law against dames with claws".
Após a construção da história, a segunda meia hora pertence completamente aos dois actores principais, que vão faiscando um contra o outro com uma química bastante visível (provavelmente herdada dos filmes da Columbia). Savage fica cada vez mais neurótica, possessiva e ambiciosa, aumentando a fasquia da chantagem e provocando Neal até aos limites. Neal, por seu lado, faz o percurso de inocente vítima das circunstâncias até um homem patético e fraco que tenta lutar e resistir ao destino, sem o consegui, atirando-se assim à sua misericórdia. Ou não. Não nos podemos esquecer que a história está a ser narrada por Neal, ou seja, estamos a ouvir o que ele nos quer contar. Num momento chave da trama, o que ele narra e o que o espectador está a assistir não são exactamente a mesma coisa. E aí está o busílis da questão. E aí está a pérola dentro desta ostra enferrujada que é ‘Detour’. Há mais do que aquilo que salta à vista se a história for somente interpretada pelo seu valor superficial. Ao mesmo tempo, a evolução emocional que se desenvolve na interacção entre os dois, Neal e Savage, é soberba e hipnotizante, e portanto é aqui que o filme, que já tinha convencido na concepção do seu universo, nos dá o seu coração e a sua moral.
‘Detour’ simplesmente diz-nos que ninguém pode fugir ao seu destino, e enrola-se nos mesmos pensamentos tortuosos que atormentam a personagem de Neal. Se o carro não tivesse parado, se não me tivesse dado boleia, se eu não lhe tivesse dado boleia… Mas o carro efectivamente parou e deu-lhe boleia. E ele efectivamente parou e deu boleia a Savage. Destino lado a lado com escolhas. E depois há ainda a lei de Murphy. Tudo o que pode correr mal, corre mal. E no caso de ‘Detour’, tal como no caso de muitos filmes de terror dos anos 1930 e 1940 (mas também do resto do cinema até hoje), tudo tem a ver com aquele pequeno desvio que se faz da estrada principal, aquele segundo de viragem. Há quem vá parar a mansões macabras. Há quem se depare com um assassino em série. E há quem conheça uma mulher fatal, com é Ann Savage, dos pés à cabeça, e a passar por todas as tentadoras curvas.
‘Detour’ é um conto de fadas negro sobre o destino, num contexto de uma América pouco glamorosa, das estradas secundárias, mergulhada ainda no rescaldo da depressão. Pode ser simples, linear e até ingénuo, mas esconde um pouco mais, e são essas características que o tornam mais pungente e mais impactante, por causa do jogo de contrastes e da “brincadeira” com os lugares comuns do género. Não tem a qualidade e o lustro de noirs contemporâneos, mas não é o universo que está a retratar também sujo e decadente? E pode ser essa a grande explicação para o filme ter ultrapassado gerações.
Uma outra explicação (ou pelo menos algo que terá ajudado bastante), é o facto de o copyright do filme não ter sido renovado, e portanto nas últimas décadas se ter tornado de domínio público (ou seja, se o leitor tiver uma cópia ou se vir no youtube não está a cometer nenhuma ilegalidade). Mais do que um filme com qualidade, mais do que um filme memorável, ‘Detour’ é, acima de tudo, um filme que facilmente se torna bem-amado, e que todos podem compartilhar, repetindo a frase-feita “melhor filme B de sempre”. É bem-amado porque apela ao nosso instinto de ver algo decadente e a roçar o rasca, ao nosso sorriso de ver algo carregado de piropos, bruta-montes e dames, ao nosso sentido de aventura e até nos dá, completamente de graça, uma pequena moral sobre o destino. Mas nada disto causa o gozo. Tudo causa um enorme respeito, e é esse respeito pelo filme que hoje se mantém, e que é de louvar, visto que quando foi feito tinha um objectivo simples e directo de encher tempo antes do filme principal. Só por ‘Detour’ ser melhor que muitos filmes principais, já merece um lugar de destaque. Pelo resto, merece ainda mais.
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