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Leaving Normal

Ano: 1992

Realizador: Edward Zwick

Actores principais: Christine Lahti, Meg Tilly, Patrika Darbo

Duração: 110 min

Crítica: Por estes dias vi pela primeira vez ‘Leaving Normal’ (não consegui descobrir como se chama em português, mas no Brasil tem o título ‘Mary & Darly’), um filme completamente esquecido do ano de 1992, por um único motivo; era o único filme do realizador Edward Zwick que eu ainda não tinha visto.

Como a maior parte das pessoas, conheci o nome de Zwick quando me apaixonei, na minha adolescência nos anos 1990, pelo filme ‘Glory’ (1989), uma extraordinária obra-prima, um dos grandes filmes americanos do último quarto de século, que conta com a participação de Mathew Broderick, Morgan Freeman, e então um jovem e desconhecido Denzel Washington (que venceu por este filme o Óscar de Melhor Actor Secundário). E muito embora tenha demorado mais de dez anos a conseguir digerir correctamente ‘Legends of the Fall’ (1994), o épico telenovelesco com Brad Pitt (que hoje até não considero mau, mas quando o vi na adolescência só me apetecia fugir…), a verdade é que cresci a ir ao cinema ver os épicos ‘de guerra’ de Zwick: ‘Courage Under Fire’ (1996), ‘The Siege’ (1998), e depois, com o virar da década, o seu período mais popular que contou com ‘The Last Samurai’ (2003), 'Blood Diamond’ (2006) e ‘Defiance’ (2008). A beleza dos filmes de Zwick é que, apesar de expansivos e grandiosos, não perdem a intimidade e a humanidade das suas personagens. Uns mais bem conseguidos que outros, claro (não consigo gostar, por exemplo, de ‘The Last Samurai’, mesmo após o ter visto três vezes), mas há um fio condutor na sua obra que o tornam indubitavelmente um dos melhores realizadores da sua geração. Por isso mesmo, quando em 2010 mudou de registo para a comédia romântica com ‘Love & Other Drugs’ (o seu último filme até hoje), com Jake Gyllenhaal e Anne Hathaway, a mudança não foi surpreendente, e a sua gestão emocional das personagens provou ser igualmente de primeira água, sem ter que precisar de um contexto épico. ‘Love & Other Drugs’ é um filme ligeiro é certo, mas não deixa de ser uma das melhores comédias românticas, com uma pincelada de dramático, que têm surgido de Hollywood na última década.

E portanto não foi com surpresa que me apercebi que os dois únicos filmes que eu ainda não tinha visto deste realizador que também produz (o seu único Óscar proveio de ter produzido ‘Shakespeare in Love’), eram precisamente deste registo mais leve, que Zwick pareceu ter abandonado quando os seus épicos de guerra se tornaram populares nos anos 1990. ‘About Last Night’ (1986), o seu primeiro filme, que vi há um par de anos, é um das obras mais interessantes do ‘brat pack’ (conta com as interpretações de Rob Lowe e Demi Moore), enriquecido com um argumento extremamente bem escrito de David Mamet. Já ‘Leaving Normal’ era um autêntico mistério para mim, um filme nunca referido, nunca falado, uma estatística num currículo. O anonimato de ‘Leaving Normal’ é tão grande que o filme nem sequer teve, até hoje, um lançamento em DVD, o que o torna extremamente difícil de encontrar. O filme só foi lançado em VHS e em Laserdisc, portanto foi uma cópia de muita fraca qualidade que eu finalmente acabei por ver esta semana.

Para mim, não há grande mistério para o fraco sucesso comercial e mediático desta película. O motivo pelo qual teve luz verde do estúdio é o mesmo que o tornou pouco apelativo para o público. O ano anterior, 1991, tinha tido um grande sucesso chamado ‘Thelma & Louise’, o road-movie feminino de Ridley Scott com Geena Davis e Susan Sarandon. Pois bem, à primeira vista, ‘Leaving Normal’ parece ser um filme quase extraído a papel químico, já que também retrata uma viagem de carro pela América de duas mulheres, que estão a fugir do seu passado para tentar recomeçar de novo. E estou seguro que a promoção visou precisamente na capitalização dessa semelhança (veja-se o título brasileiro), e a Universal terá pensado que iria repetir o sucesso anterior da MGM. Mas é óbvio que o público não vai querer ver dois filmes semelhantes tão próximos um do outro. Uma coisa é uma moda, como a moda dos musicais ou a moda dos filmes desportivos, mas nunca ouvi falar de uma ‘moda do road-movie feminino’ que pegasse. É um nicho demasiado apertado. E o pior é mesmo começar a ver o filme e aperceber-me que, apesar das indubitáveis semelhanças entre os dois filmes, apesar de correr o risco de facilmente resvalar para uma cópia sem sumo e sem chama se o realizador fosse outro, a verdade é que Zwick cria um filme que segue o seu próprio rumo, que tem mérito por direito próprio, e vários motivos de interesse, desde a realização mais ‘artística’ de toda a sua carreira, às fortes interpretações. Contudo, ao mesmo tempo, é um filme emocionalmente instável, que nunca quer ser demasiado dramático (embora por vezes puxe à lágrima), nem quer ter escapes realmente cómicos, para não estragar o seu tom, por isso está no limbo do drama ligeiro e engraçado, o que por um lado o torna mais universal e acessível, mas que por outro o enche de alguma artificialidade.

As sequências de abertura mostram-nos, de uma forma bastante fluída e bem construída, o crescimento de Marianne. Em criança, os seus pais discutem e estão sempre a mudar de cidade, e ela torna-se numa miúda tímida e introvertida, inocente e um pouco atrasada. A sequência logo a seguir, do genérico (ah, como era bom quando os filmes tinham um genérico inserido na trama!), é fantástica, e com mestria e humor mostra-nos uma crescida Marianne, que ainda não conseguiu assentar, a fazer mais uma viagem de autocarro por meia América para casar com um homem que conheceu pouco tempo antes (fabulosa performance de Meg Tilly, uma actriz que sempre prometeu mas que nunca atingiu aquele nível de super-estrela). Pelo meio Marianne tinha tentado varias profissões em várias cidades, mas nunca tinha criado raízes, e agora tem esperança que o seu momento finalmente chegou, e que conseguiu finalmente encontrar o seu lugar. Mas na cena logo a seguir, saltamos mais uns meses e vemos que o seu casamento não está a correr nada bem e que ela está a ser vítima de maus tratos. Num impulso decide fugir. Andando sem rumo e à boleia, acaba por ir parar à pequena cidade de Normal.

E é nesta cidade que conhecemos Darly (uma igualmente surpreendente e forte Christine Lahti, cujas semelhanças físicas com Geena Davis poderão não ser fruto do acaso…), uma empregada de mesa que nunca conheceu outra vida, mas que agora está pronta para a mudança. Recebeu uma carta a dizer que o seu ex-marido morreu, e portanto ela herdou um terreno no Alasca. Darly decide deixar tudo e começar de novo, nesse remoto local. Mas no momento em que se despede do bar onde trabalha, sai à rua e encontra Marianne a chorar numa paragem de autocarro. As duas formam uma amizade improvável e fazem-se à estrada, rumo ao Alasca.

Em ‘Thelma & Louise’ a fuga das duas mulheres era instigada por um crime, e ambas procuravam uma liberdade que nunca poderiam ter, por terem esse peso na consciência. Já em ‘Leaving Normal’ a sua fuga é emocional; são simplesmente duas mulheres cuja vida nunca correu bem, que tiveram azar nas suas escolhas de vida e de homens, e que se apoiam uma na outra com esse objectivo idílico de chegar ao Alasca. Aí, uma alimentada por uma inesgotável esperança, e a outra porque não tem outra escolha, poderão assentar e tentar recuperar a sua vida.

Obviamente, a sua viagem está cheia de peripécias e encontros com outras personagens, e estes eventos, bem como o ganhar de confiança uma na outra, fazem com que lentamente revelem os seus segredos mais íntimos. Darly é sarcástica e azeda em relação à vida. Quando era adolescente abandonou o seu filho recém-nascido numa maternidade do Alasca e nunca mais voltou. Desde então nunca teve outro emprego senão stripper ou empregada de mesa. Já Marianne é sonhadora, e apesar de dois casamentos que deram para o torto e ter vivido em 7 cidades em 7 anos, ainda tem esperança que vai encontrar o seu lar e o sr. Certo. A realização de Zwick oscila entre este realismo de Darly e a esperança de Marianne. As suas transições de plano, focando o céu estrelado, por exemplo, podem ser um pouco artificiais, mas envoltos pelas conversas entre as personagens pela noite dentro, e pela esperança de Marianne, embalam o espectador para esta espécie de conto de fadas moderno. Para além do mais alguns destes diálogos são bastante bons (crédito para o argumentista Ed Solomon) mas infelizmente estão na corda bamba de tornarem-se repetitivos. Milésimas antes de isso acontecer o filme introduz os tais escapes das personagens secundárias.

Primeiro vão a casa da irmã de Marianne, e ambas vêm o que poderiam ter sido se tivesse levado uma vida ‘certinha’. Depois há os dois camionistas que lhes dão boleia, quando o seu carro se avaria. Um deles (o actor Lenny von Dohler que me recordo bastante bem da série Twin Peaks) vai-se afeiçoar a Marianne e poderá finalmente ser o tal sr. Certo, mas esta hesita, instigada por Darly, porque tem medo de cometer os mesmos erros do passado. Depois há ainda outra empregada de bar que apanham pelo caminho; de cognome 66 (a actriz Patrika Darbo, tão gorda e tão simpática como noutros filmes desses anos 1990 fora em que entra). Nesta fase, parece que afinal o duo se vai tornar um trio, mas logo na primeira cidade em que param, 66 vai conhecer o homem da sua vida num ápice (um estereotipado milionário texano), e desaparece de cena para viver o seu próprio conto de fadas. Esta simplicidade argumental, e a forma como o filme a dá, é completamente artificial, e parece até estar a gozar com as suas duas personagens principais. É mais um elemento de ‘magia’ do filme, que sinceramente lhe retira as ambições dramáticas que anseia ter e impede que seja tomado completamente a sério.

Por fim, quando finalmente chegam ao Alasca, descobrem que a suposta casa só está semi-construída. Para além do mais, dois jovens índios estão a viver no terreno sozinhos, já que o seu pai está na prisão. Sem dinheiro e com um sonho só parcialmente erguido, Marianne e Darly vão lutar nesta pequena cidade no Alasca, no seio de uma família pouco ortodoxa (já que ‘adoptam’ os índios), para alcançar a sua paz. Conseguirão? Encontrarão o amor, os alicerces de uma vida? Ou reverterão para as velhas hesitações, para o velho medo, para o mesmo desejo de fuga, de mudança, só por que lhes falta coragem?

Marianne berra a Darly num momento mais tenso “Just because you’re leaving it doesn’t mean you are not still in the same place”. Com um final mais Hollywoodesco (e nada trágico, ao contrário de ‘Thelma & Louise’), ‘Leaving Normal’ procura dizer-nos que por vezes fugir não é a solução, e podemos avançar mais parados, se paramos no sítio onde o destino nos leva. E as várias escolhas, por vezes más, por vezes fortuitas, da vida (a sua escolha de percurso rumo ao Alasca, por exemplo, é sempre feita ao acaso), têm uma razão de existir, e a felicidade encontra-se muitas vezes no final de um caminho torto. Por vezes precisamos ‘fugir do normal’, ou melhor, daquilo que é o normal para os outros, para encontrar o nosso próprio normal. É uma mensagem digna? É sim senhora. Mas não é uma que só por si consiga conceber uma grande obra-prima cinematográfica. ‘Leaving Normal’ acaba por ser tão bom quanto esta mensagem, ou seja, é um clássico produto levemente dramático e de entretenimento do anos 1990, com as pinceladas de humor e tragédia ‘facilmente digeríveis’ que esta década tão bem soube proporcionar ao seu público.

A realização intimista e sonhadora de Zwick e as fortes interpretações (tal como a química entre Lahty e Tilly) são o maior trunfo da película. Contudo, a forma como as tragédias pessoais são minimizadas, e entrecortadas pelos escapes cómicos secundários, tornam o filme bastante desequilibrado e com um tom difícil de entender. É impossível levar a sério o encontro de 66 com o seu texano, e depois estar emocionalmente preparado para logo em seguida ouvir, por exemplo, a revelação dramática que Darly abandou o seu bebé. Já vários filmes na história do cinema aliaram o drama pungente à comédia, mas tomaram sempre ou um tom surreal, ou um de humor negro. ‘Leaving Normal’ não tem nem uma coisa nem outra.

Depois há personagens absolutamente inúteis, como os dois jovens índios. O filme resultaria igual sem eles, mas até se percebe a ideia; os quatro juntos formam uma ‘família’. Mas se assim é, o filme está a provar uma coisa que hoje em dia chama mais à atenção do que propriamente no início dos anos 1990. Marianne e Darly são o pai e a mãe! Tirando uma pequena piada no final, em que Darly diz a Marianne que só falta darem um beijinho, não há qualquer insinuação lésbica. Aliás, Marianne fica em contacto com o seu camionista, antevendo que em breve se irão reencontrar e continuar a sua história de amor. Mas olhando para o desenrolar do filme, não é bem essa a mensagem que parece transparecer…

No final, acho que duas coisas são bastante injustas em relação a este filme. Primeiro a sua comparação com ‘Thelma & Louise’. Os filmes seguem rumos bastante diferentes e cada um tem o seu valor, optando por estilos e desenlaces distintos. Segundo o facto deste filme ter sido completamente esquecido. Não vou dizer que é o pior filme de Zwick, já que não consigo gostar de ‘The Last Samurai’, mas anda lá perto. Contudo, é um daqueles dramas leves dos anos 1990 perfeitos para ver na TV, enroscado no sofá. É uma história que chega a cativar, com bons diálogos, bem filmada e bem interpretada, onde nos rimos um pouco, onde choramos um pouco (sim, caiu-me uma lágrima perto do final), onde chegamos a torcer pelas personagens, mas nunca é forte nem duro nem profundo, para não abalar nem chocar em demasia o espectador. Tem aquela esperança irreverente fruto da década em que foi feito e está destinado à maior parte dos públicos, mas o misturar de géneros e as constantes oscilações de tom são o seu maior problema. Um ‘chick-flick’ inteligente, mas também muito indeciso. Faltou-lhe um pouco de focagem na história de base para ter mais mérito, um pouco de coragem para eliminar elementos mais ‘comerciais’ para ter mais interesse, e a publicidade inerente a um actor famoso (ambos os papéis são daqueles que poderiam dar Óscares) e mais afastamento temporal de ‘Thelma & Louise’ para ter mais mediatismo. Contudo, não posso deixar de admitir que foi um filme que me entreteve, e que constituiu de certo modo uma agradável surpresa. Talvez também o possa ser para o leitor.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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