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The Wicker Man

Ano: 1973

Realizador: Robin Hardy

Actores principais: Edward Woodward, Christopher Lee, Britt Ekland

Duração: 88 min

Crítica: Se eu fosse um filme de terror/horror não havia dúvidas que a década do cinema em que eu queria estar era a década de 1970. Mais tarde na década os filmes slasher apareceriam em força, através de nomes como John Carpenter ('Halloween', 1978), West Craven ('The Hills Have Eyes'. 1977) ou Tobe Hooper ('Texas Chainsaw Massacre', 1974), dando um novo twist ao cinema por vezes pesado, por vezes kitsch que existia até então. Foi a década que nos deu os melhores filmes de Dario Argento ('Suspiria', 1977, uma obra prima). Foi uma época em que os míticos estúdios Hammer ainda debitavam obras tardias, já longe dos tempos áureos do estúdio e onde Roger Corman ainda dava o ar da sua graça, cada um encimado, respectivamente, pelas figuras incontornáveis de Christopher Lee e Vincent Price. Foi uma década também das primeiras paródias ('Frankenstein Junior' de Mel Brooks, 1974, ou 'Blacula', 1972), que viu surgir Brian de Palma, e que terminou com um dos melhores filmes de terror de todos os tempos, através da mão de Kubrick ('Shinning', 1980).

Se os filmes se foram tornando mais ruidosos e mais sangrentos, e começaram a ficar embrenhados nos seus próprios lugares comuns, no inicio da década o terror conseguia ser ainda maioritariamente psicológico, usando com mestria técnicas cinematográficas, a música e o argumento para mexer com as emoções do espectador, e dependendo menos daquilo que realmente as cenas mostravam. Veja-se a cena no clímax de ‘Suspiria’ em que Jessica Harper caminha lentamente ao longo do corredor. Estamos simplesmente a ver uma mulher a andar ao longo de um corredor, dirigindo-se à porta que se encontra no seu final. Nada mais. Mas a construção é tão boa, a antecipação tão grande, que esta é uma das cenas mais assustadoras, senão a mais assustadora, da história do cinema. Este é o tipo de terror que eu mais prefiro. Não é espalhafatoso, é inteligente, e portanto é muito mais impactante e mexe-me com as entranhas. ‘Shinning’ tem-no. ‘Suspiria’ tem-no. E ‘The Wicker Man’ também.

‘The Wicker Man’ surgiu num ano que ficaria para a história como um dos mais proliferos em termos deste género de filme. 1973 viu o extraordinário ‘Don’t Look Now’ a ser lançado, bem como o seminal ‘The Exorcist’, que se por vezes não é nada subtil no seu terror, é contudo um marco e um quebra-convenções (recentemente vi a versão de aniversário em blu-ray e está fabulosa). Comparado com estas entradas ‘The Wicker Man’ é um filme, digamos, mais pacato, que parece desenrolar-se como um plácido policial inglês até mais de metade; a busca de uma rapariga desaparecida num meio pequeno e excêntrico (o lugar comum da vila inglesa que pontilha o cinema e a televisão desde sempre). Contudo, ‘The Wicker Man’ está só a acomodar o seu público e de repente, à medida que o novelo se desfia e a trama atinge o seu desenlace, o espectador percebe porque é que este filme, passados 40 anos, é ainda de culto, com milhares de seguidores, e percebe também que está a ver, pura e simplesmente, um filme brilhante. 

E ‘The Wicker Man’, o original filme inglês (nunca, nunca confundir com o remake de 2006 com Nicholas Cage) é brilhante não porque é uma fantástica obra de arte (não é), ou porque o seu realizador é um grande mestre da realização (não o é). Aliás, olhando para a filmografia de Robin Hardy, é um pouco difícil de explicar como brotou tamanha obra. ‘The Wicker Man’ é o seu primeiro e praticamente único filme. Nunca fez jus à reputação que ganhou e praticamente voltou as costas ao meio, até bem recentemente, dedicando-se aos seus escritos. Dizem que toda a gente tem um filme dentro de si. E este, mais que certo, era o filme de Hardy. O filme não é uma fantástica obra de arte, nem é o seu realizador um mestre do meio, mas ‘The Wicker Man’ consegue ser brilhante, como disse, por três motivos.

Primeiro está extraordinariamente bem escrito. A sua estrutura é divinal, a concepção é perfeita e tem um inequívoco poder. Não é por acaso que o seu argumentista é Anthony Shaffer, escritor de argumentos como 'Frenzy' (1972), 'Sleuth' (1972) e dos vários filmes dos anos 1980 em que Peter Ustinov faz de Poirot. Segundo, apesar do seu tema, e do desenlace dos eventos, está imbuído de um peculiar humor negro que apreciei bastante, e que lhe dá credibilidade. E terceiro, porque o conjunto da equipa; o realizador, o editor, o compositor, souberam exactamente como conduzir o público ao longo de todo o processo, emocional e psicologicamente. Nunca usando truques baixos, twists injustificados mesmo que bombásticos, para enganar o público (um truque dos filmes mais fracos), o filme é uma montanha russa que cativa e vicia, até ao momento que larga a sua maior bomba, e aí termina, no pico, como deve ser. Há algum terror (mas não esperem nada como o ‘Exorcista’), muito do típico humor inglês e do estilo de filmagem britânico, e influências claras quer da revolução sexual dos anos 1960, quer do cinema de alienismo e de quebra com o sistema que os anos 1970 trouxeram. Há também uma aura da filmagem ‘fora de estúdio’, semi-realista (não o chamo, neste caso, neo-realista) que o cinema inglês e americano também lutavam por estabelecer nesta altura, seguindo os passos dos franceses. Tudo isto é importante sim, mas o pacote de ‘The Wicker Man’ vai muito para além disso. Acima de tudo, é um pateticamente brilhante estudo da adoração em massa, da superstição moderna, da histeria colectiva.

O filme abre apresentando-nos dois típicos polícias ingleses, com os seus típicos mas fascinantes sotaques, os seus típicos mas fascinantes maneirismos, e personalidades simples, cristãs e devotas. Num dia rotineiro como qualquer outro recebem uma carta anónima na esquadra que refere que uma criança de uma pequena ilha escocesa perto daquele local se encontra desaparecida. A atenção dos polícias é logo captada, não só pela natureza misteriosa da carta e do crime, mas também da própria ilha. É uma ilha muito peculiar, pois muito pouco se sabe sobre ela. Isolada e de difícil acesso, os seus habitantes raramente são vistos no continente e a sua vida lá é praticamente um mistério para todas as pessoas de fora, incluindo um dos polícias, cuja curiosidade é aguçada. Tudo o que se sabe é que a ilha exporta sempre uma enorme quantidade de fruta, famosa na região. Portanto, esta carta misteriosa torna-se a desculpa ideal para que o polícia se desloque lá para tentar obter mais informações sobre o caso.

O polícia, este herói invulgar, interpretado de uma forma brilhante, inglesa até ao tutano, por Edward Woodward (o papel da sua vida), chega então à ilha sozinho, num pequeno avião, para passar uns dias e investigar. O polícia é um homem simples, religiosamente integro, solteiro (insinua-se também virgem) e que segue as regras. Parece um daqueles homens que se torna polícia para fazer o bem e não por achar que há mal no mundo. O que se segue é uma estrutura tradicional do argumento, em que Woodward visita os principais pontos da aldeia (o bar, a estalagem, a escola) e vai falando com as várias personagens (o líder da comunidade, o estalajadeiro), todas elas com as suas peculiaridades e comportamentos particulares. Mas o que começa por ser apenas um retrato semi-engraçado, misterioso mesmo que convencional, vai-se adensando mais, ganhando contornos mais profundos, mais intensos e mais macabros. Inicialmente, todos os habitantes da ilha sem excepção negam que tal rapariga alguma vez existiu e viveu naquela ilha. Confrontados com o seu nome e a carta todos afirmam nunca a ter conhecido. Mas não é preciso muito para o polícia descobrir a ficha da escola da rapariga e chegar à conclusão que o público já desconfia desde o inicio; estão todos a mentir. Só resta saber porquê e descobrir onde está a rapariga, se está viva ou morta, e exactamente o que é que se anda a passar naquela ilha. De repente, sem hipótese de escapar, o polícia vê-se sozinho numa ilha, só ele contra uma aldeia inteira…

Dos habitantes da ilha há dois nomes incontornáveis a mencionar. O primeiro o grandessíssimo mestre do terror, um actor majestoso e fabuloso, Christopher Lee, o homem que foi soldado na Segunda Guerra Mundial, que no cinema foi Dracula e vilão do James Bond, que é conhecido da geração moderna como o Sauron da saga do Senhor dos Anéis ou o Count Dooku da saga StarWars, que é um cantor fabuloso, um artista completo, e continua activo hoje em dia, do alto dos seus 92 anos. Em ‘The Wicker Man’, munido de uma épica cabeleira, Lee interpreta o líder da ilha, um homem cativante e prazenteiro, que acolhe o polícia com charme e lhe mostra a ilha e lhe explica os seus rituais de colheita. Há medida que as coisas se vão tornando mais estranhas, a sua atitude mantêm-se impassível. É através dele que a insanidade do segredo da ilha ganha significado. A sua impassividade é reveladora, dá consistência à trama, e a sua presença forte numa máscara fria e insensível, que mais tarde quebra para insana, afecta não só os aldeões, não só o polícia, como o público. Um ‘The Wicker Man’ sem Lee não seria, definitivamente, a mesma coisa.

O segundo nome é a do símbolo sexual inglês Britt Ekland. Dois anos antes já tinha tido um pequeno mas impactante papel em ‘Get Carter’ (a inesquecível cena do telefone...). Aqui vai ainda mais além, e como a supostamente inocente filha do estalajadeiro (um pormenor da história que, a par da presença de Lee, gera alguns paralelismos com o conto de Dracula) tem uma cena tentadora, de sedução, em que dança nua. Um dos marcos do filme, uma das suas cenas mais famosas, que obviamente gerou polémica na altura e que hoje ainda afecta, esta cena até pode, facilmente, ser acusada de fútil, mas a verdade é que serve como uma ilustração perfeita do segredo da ilha. Ekland não está simplesmente a mostrar os seus avantajados peitos numa cena brilhantemente filmada. O polícia, noutro quarto da estalagem, esta a senti-la, e o público está também a sentir uma subtil mensagem, que antecipa o twist que está prestes a aparecer. De dizer também que esta cena, por si, foi suficiente para que Cubby Brocolli, o famoso produtor dos filmes de James Bond, a contratasse para o seu próximo filme: ‘The Man With the Golden Gun’, que também conta com Christopher Lee como o vilão. Reza a lenda (e Roger Moore confirma-o na sua auto-biografia) que Cubby era um homem que gostava de bustos grandes, e que ficou extremamente desapontado quando viu Ekland no plateau, pois os seus seios não eram tão proeminentes quanto ele se recordava da famosa cena de ‘The Wicker Man’. Acontece que Ekland estava grávida quando a filmou… O leitor poderá notar a ver o filme que os planos desta e de outras cenas estão feitos para subtilmente esconder a barriga de Ekland...

Histórias à parte, Ekland e Lee, juntados ao ingénuo, bem intencionado e integro, e no fim paranóico polícia brilhantemente interpretado por Woodward, e ao ensemble cast da aldeia, fazem com que este filme tenha, mais do que um grande punhado de actores, um grande punhado de personagens.

Depois do polícia descobrir a campa da rapariga, de a exumar e descobrir apenas os ossos de um animal, e mais tarde ver que o seu avião foi sabotado e não tem hipóteses de escapar, o calor da acção adensa-se e o filme atinge o seu estado mais perfeito. Lentamente, o policia já tinha visto que que os habitantes daquela ilha incorriam em actividades pagãs, que faziam oferendas aos deuses para obterem boas colheitas, que repeliam Deus e Cristo (para horror do polícia), que haviam expulso o padre, e que idolatravam em vez disso deuses do sexo e do prazer. Praticas sexuais à vista de todos chocam-no, o conteúdo das aulas da escola ainda mais e a cena de sedução de Ekland parece ser a gota de água. Ou ele capitula ou, se persistir em tentar descobrir o segredo, coisas irão acontecer… O polícia começa a pensar que na ilha fazem sacrifícios humanos e que mataram, ou irão matar, a rapariga desaparecida, como sacrifício para terem uma boa colheita. Aliás, a foto de uma espécie de 'rainha da colheita' desse ano não consta do quadro de honra, supostamente porque se ‘partiu’. O policia suspeita que era precisamente uma foto da menina desaparecida e persegue essa ideia, vasculhando a ilha obsessivamente, e quando está prestes a descobrir o segredo, o que aconteceu à rapariga e aquilo que a ilha esconde, então o filme larga a sua bomba e mostra exactamente, num final climático, poderosíssimo e surpreendente, o que é que  estes pagãos, flower-power, andam a tramar. Ainda o público se está a recompor do choque, já os créditos estão a rolar. Rivalizando com outros filmes cujo último minuto os eleva a patamares extraordinários (de 'I am a Fugitive from a Chain Gang' a 'Usual Suspects' a 'Memento'), ‘The Wicker Man’ tem um final ao mesmo tempo brilhante e patético, fascinante e inacreditável, sublime e que completa o círculo do filme. Sem o contar arrisco-me a dizer que será do agrado da maior parte dos espectadores. Se por mais nada, porque ao menos não é ‘limpo’, ou seja, está bem longe do 'tudo está bem quando acaba bem', e dá uma volta de 180°, fazendo-nos repensar sobre todas as personagens e todas as cenas, tal como deve ser. Pode até ser um pouco previsível à medida que o filme se vai desenrolando, mas isso não lhe tira a força inerente. A originalidade existe, sem dúvida, mas neste caso a forma como se chega ao final também é de saudar. Estamos a falar de um filme que não se acanhou e que arriscou, com um tema controverso e planos ousados, mas que saiu por cima; um brilhante estudo sobre crenças e histeria de massas, tal como se mostra de uma forma muito inteligente nos planos derradeiros do filme, dez anos à frente do seu tempo.

E o que é que é o Wicker Man, o homem de palha? Bem, para saber isso, o leitor tem que ver o filme, mesmo até à última cena. É uma viagem que vale a pena. Essa última cena é a ideia que gera tudo o resto. Quando a ideia é boa, a construção também, e os actores também, então o pacote vale a pena. Este pode não ser um filme de terror por excelência, mas é como se um filme baseado num romance da Agatha Christie decidisse no final dar uma volta macabra, paranóica e sangrenta. Quem é que não quer ver isso? 

Em 2006, algum iluminado decidiu fazer um remake, ainda por cima com Nicholas Cage como o polícia. Nunca vi, e duvido se quero ver. Mas suponho que a atenção dada ao filme original tenha tido algumas boas consequências. Hardy, que até então apenas tinha feito mais um filme, 'The Fantasist', em 1986, provavelmente usou a publicidade para iniciar outro projecto, que foi lançado com pouco mediatismo em 2011, ‘The Wicker Tree’ (terá chegado a Portugal?!), e que foi até eclipsado pelo próprio lançamento da versão restaurada do clássico de 1973, de volta aos cinemas. E como se isso não bastasse, recentemente li que Hardy está a planear o terceiro filme, para completar a trilogia, 'The Wrath of the Gods', a ser lançado em 2015! Estes filmes serão bons? Não faço ideia. Mas ‘The Wicker Man’ é magnifico, e até ver melhor, para mim esse já me chega.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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