Realizador: Wes Anderson
Actores principais: Ralph Fiennes, F. Murray Abraham, Mathieu Amalric
Duração: 100 min
Crítica: O realizador Wes Anderson atingiu algo muito raro nos dias de hoje; criou um estilo. Pode não ser o melhor estilo, ou aquele que apele mais ao público em geral, mas é um estilo único e original, o ‘estilo Wes Anderson’, tal como há o ‘estilo Hitchcock’ ou o ‘estilo John Ford’. E isso torna os seus trabalhos particularmente dignos de atenção porque nos dias que correm são distintos de qualquer outro filme que é feito. E não é o facto de os seus filmes terem sempre este estilo que os torna piores, ou que os torne menos originais. Não é uma questão de serem repetitivos, antes existem no mesmo universo, o que são duas coisas diferentes.
No entanto, como disse, não é para todos. Eu pessoalmente nunca me consegui conectar completamente com os trabalhos de Anderson, apesar de admitir a sua mestria cinematográfica. Até há bem pouco tempo considerava ainda o seu melhor filme ‘Rushmore’ (1998), e gostei bastante da sua passagem pela animação, ‘Fantastic Mr. Fox’ (2009) mas faltava-me qualquer coisa, um je ne sais quoi, um clique, para completamente encaixar no seu universo. E esse qualquer coisa impedia-me de desfrutar em pleno do seu espólio. Contudo a minha esposa é bastante fã de Anderson e o ano passado revi com ela todos os filmes da sua carreira. Fizemos em poucas semanas a viagem que começou com ‘Bottle Rocket’ (1996) e continuou com ‘Rushmore’, ‘The Royal Tenenbaums’ (2001), ‘The Life Aquatic with Steve Zissou’ (2004), ‘The Darjeeling Limited’ (2007) e ‘Fantastic Mr. Fox’. Apesar de considerar todos estes filmes bons, a minha opinião manteve-se e não consegui encontrar a satisfação, não consegui compreender completamente o surrealismo, a emotividade, da sua obra. Obviamente, pensei que ela não existia, pelo menos para mim.
Mas então cheguei ao seu último filme, ‘Moonrise Kingdom’ (2012) que não tinha visto no cinema. Ao ver esta obra-prima em casa, aquele clique finalmente ocorreu na minha cabeça, no meu coração. ‘Moonrise Kingdom’ é brilhante, uma contida e emotiva reflexão sobre o amor, a inocência e a vida, mas ao mesmo tempo não é muito desgarrado do restante universo cinematográfico de Anderson. Enquanto estava a ver o que foi para mim o melhor filme de 2012 (qual ‘Argo’ qual quê), apercebi-me que ele desbloqueou para mim o segredo dos filmes de Anderson, o que foi excelente. Não é que de repente tenha passado a gostar de ‘The Royal Tenenbaums’, por exemplo, (obviamente isso não aconteceu), mas agora há algo de especial a ligar-me aos filmes deste realizador, e uma cumplicidade artista-espectador, que é obviamente o cerne do amor à arte cinematográfica. Para além do mais, sinto que com este filme Anderson atingiu uma nova maturidade. Não é que os seus filmes fossem desprovidos de significado (bem longe disso), mas o surrealismo inerente à sua obra tornou-se mais focado e tirou qualquer dúvida que pudesse existir que era ‘dado por dar’, uma suspeita que ainda me assolava ao ver os seus filmes anteriores.
E eis que Anderson apresenta o seu novo trabalho. ‘The Grand Budapest Hotel’ existe no mesmo universo, possui a mesma maturação, a mesma focagem, a mesma genialidade surreal, e é feito com a mesma alegria quase juvenil que caracteriza todos os seus outros filmes. Com juvenil não quero dizer que o seu trabalho é infantil e imaturo, mas sim que possui uma pureza, uma inocência, uma irreverência, uma paixão dedicada, e uma liberdade desafiadora (de conceitos e convenções), que tão bem caracterizam o seu estilo. Note-se a beleza delicada de cada plano, de como brinca com as perspectivas, com o contraste de formas, tamanhos e cores de objectos. O grande salão do hotel, por exemplo, é um cenário gigantesco mas só parca e geometricamente adereçado. Contudo, quando a câmara se aproxima há um detalhe incrível nos pormenores, na toalha de mesa, nos talheres, naquilo que se vê por detrás das personagens, naquilo que os extras estão a fazer. Note-se como Anderson oferece as cenas com efeitos especiais, de uma forma estilizada, que me trouxeram à memória os enquadramentos do inovador filme checo ‘Vynález zkázy’ (1958). A cena de perseguição pela neve, por exemplo, poderia hoje em dia ser feita sem falha alguma com um computador, mas todo o público saberia que a imagem era falsa. Anderson partilha a ilusão com o público, e estiliza a cena de forma a que fique quase saída de um livro de contos infantis, ostensivamente animada/computadorizada, mas com mais poder para cativar, o que enfatiza mais o conto de fadas que é cada filme, cada história, de Anderson. O mesmo se pode dizer de todas as cenas de subida do teleférico. À medida que o teleférico sobe, passamos da realidade para o mundo encantado do Grand Budapest Hotel, e portanto nada mais natural que praticamente animar esta sequência, ou pelo menos os backgrounds, para enfatizar esta transição. Com esta subtileza Anderson mostra que é não só um grande realizador, mas também um grande cenógrafo, um grande arquitecto de cena. Não é o que está a filmar (Cuaron ao filmar ‘Gravidade’ inevitavelmente está a filmar algo belo pois o espaço é belo), pois esta história poderia dar um filme absolutamente normal de mistério/aventura. É a forma como escolhe filmar que distingue Anderson da maior parte dos realizadores contemporâneos e consequentemente que o distingue este filme.
O filme abre no presente. Por mais maturidade que Anderson tenha, para mim os seus filmes continuam com uma grande falha que me é difícil de digerir, os longos (longíssimos) monólogos em voz off que introduzem a historia e todas as personagens com um excruciante detalhe. Pior ainda quando essa voz off é dada por Jude Law, um actor que em geral me enerva bastante. Começamos o filme a ouvir a voz de Tom Wilkinson, que interpreta um escritor no presente que conta como nos anos 1960 esteve hospedado uma temporada no Grand Budapest Hotel, um gigantesco e decadente hotel no topo de uma montanha, no fictício estado de Zubrowka, na Europa de Leste. Aqui transitamos para Jude Law, o mesmo escritor mas em novo, que nos conta a rotina do hotel e das suas estranhas personagens, e de como uma noite janta com o misterioso dono desse Hotel, Zero Mustafa, um senhor idoso interpretado pelo glorioso F. Murray Abraham, um actor fabuloso muitas vezes esquecido, e que já venceu um Óscar de Melhor Actor (outro pormenor geralmente esquecido) por ‘Amadeu’ (1984). Zero passa o jantar a contar ao escritor como ascendeu de um mero paquete a dono do Hotel, e aqui transitamos, finalmente, para o período entre as guerras mundiais, onde a verdadeira história do filme se passa. Esta dupla camada de voz off até chegarmos ao cerne do filme (e que se repete em sentido inverso no final) é provavelmente o único momento menos conseguido de toda a película. Anderson tem um fraco pelos enquadramentos e pelas contextualizações, e aqui, tal como noutros filmes, parecem-me um pouco exageradas, longas de mais, e até algo enfadonhas. Mas a parte do meio do filme, o seu verdadeiro cerne, é pura perfeição. Ao longo de quase 1h30min o filme prende-nos e enrola-nos na sua brilhante história; brilhantemente concebida, actuada e filmada.
O gerente do Hotel é Gustave M., uma interpretação de Ralph Fiennes que é tão fabulosa que sinceramente não tenho adjectivos para a descrever. Apenas de dizer que se no próximo Fevereiro lhe derem o Óscar (pois sim, filmes de Março não têm hipótese nos Óscares…) não seria nada injusto, e um prémio bem merecido para um homem que já teve tantos e tão bons papéis, mas nunca a estatueta. Gustave é mas do que o gerente, é a alma do próprio Hotel. Algo afectado, e sempre imaculadamente vestido e rigoroso (mas humano) na sua gestão do hotel e do pessoal (um papel inicialmente atribuído a Johnny Deep), Gustave mantém o Budapest Hotel como uma instituição de renome, e uma famosa paragem nas várias temporadas do ano para senhoras ricas e abastadas, que Gustave trata sempre com especial atenção (até de mais, já que vai para a cama com elas, independentemente da idade!). No auge da década de 1930 o Budapest Hotel é o sitio para estar hospedado se se é rico, e o jovem Zero (o estreante actor Tony Revolori, numa performance acertada mas não surpreendente) surge neste meio como um mero paquete, e logo no seu primeiro dia o destino atira-o para a alçada de Gustave.
Uma senhora idosa (uma grande caracterização de Tilda Swinton) morre e Gustave suspeita que ela lhe tenha deixado algo na herança. Viaja com Zero para a leitura do testamento onde a família da viúva (liderada pelo seu filho gótico Adrien Brody, uma das personagens menos conseguidas do filme) espera receber toda a fortuna. Mas há ainda problemas legais, a viúva foi aparentemente assassinada e o herdeiro da fortuna é ainda incerto. Só se sabe que pelo menos um quadro valiosíssimo foi deixado a Gustave. Brody não quer deixar Gustave levar nada, portanto este, num momento de loucura, e com a ajuda preciosa de Zero, rouba o quadro, e ambos regressam ao Hotel e escondem o quadro, para na cena seguinte Gustave ser injustamente acusado de matar a velha.
O que se segue, com demasiados pormenores e twists para contar nesta critica, é um filme que vai cruzando vários géneros, o de aventura, o de roubo, o de fuga de prisão, o de comédia, o de espionagem, o de acção, e até o de guerra, já que tudo é enquadrado perante a ameaça de uma nova força, os ZZ, uma óbvia analogia aos nazis e às SS. Há assassinatos, algo mórbidos mas não assustadores (são mais, de novo, estilizados) perpetrados pelo capanga de Brody (um sempre excelente e sem medo de gozar consigo próprio Willem Dafoe), há romance, há heróis, há vilões, há perseguições montanha acima, montanha abaixo, há testamentos secretos, e há revelações, não surpreendentes, mas mesmo assim estimulantes para o filme e para o seu ritmo.
E tudo isto é maravilhosamente enquadrado. Gustave, superficialmente, poderá só querer provar a sua inocência e ter a herança que lhe é devida, mas pelo caminho o filme vai revelando uma sucessão de outros valores; o ‘coming of age’ de Zero, a amizade entre Gustave e Zero, a nostalgia das eras passadas (sem chamar à atenção para isso Anderson filma o filme quase todo no rácio 4:3), o valor da honestidade, a beleza da poesia, a simplicidade do amor, a abertura à variedade étnica e social (uma preocupação constante de Anderson que se reflecte na sua escolha sempre internacionalmente variada de actores) e claro, a subtil critica aos Estados totalitários e à intolerância racial. E a forma como tudo isto é dado ao público é mais uma vez triunfal. Absolutamente todas estas mensagens surgem como consequência da história, como parte integrante da narrativa, sem que uma única seja forçada ou imposta no espectador. A força do filme está assente, como deveria ser, e tão raro é de encontrar hoje em dia, na sua história e nas suas sumptuosas interpretações. As várias aparições especiais de habitués de Anderson; Bill Murray, Jason Schwartzman, Owen Wilson, Jeff Goldblum, não são meros cameos, que ostensivamente a câmara exibe, como acontece noutros filmes. Cada um deles, por mais breve que seja a sua contribuição, representa uma personagem com personalidade e profundidade, que cativa, que perdura, e que deixa saudade quando não volta a aparecer. Até algumas aparições bem bizarras (como Edward Norton como um comandante das ZZ ou Harvey Keitel como um velho prisioneiro, que parece Brando em Apocalyse Now) fazem sentido no nunca anárquico, mas extremamente surreal estilo do filme. A geometria cenográfica, o xadrez intrincado mas perfeito entre as personagens, o surrealismo da peça, mas a sincera emotividade que verte de cada plano, de cada personagem, torna Anderson um digno sucessor de Alan Resnais, e do seu trabalho majestoso em 'L'année dernière à Marienbad' (1961). O leitor pode argumentar que esta associação entre filmes não faz sentido. Mas para mim até faz. Pois tal como o filme de Resnais, está aqui outra obra prima, que é óbvia e cosncientemente uma ilusão artificial, mas que não deixa de ser, por causa disso, um brilhante estudo de vidas, de famílias, de sentimentos cruzados, de pessoas, perdoem-me o lugar comum, todas diferentes, todas iguais. É este o cinema de Anderson. Inadaptados, excêntricos, minorias e pessoas absolutamente normais, todas iguais, todas com uma história para contar e todas procurando encontrar o seu lugar no Mundo.
‘The Grand Budapest Hotel’ é um grandioso monumento cinematográfico porque dá-nos estas vidas, estas histórias, sempre de uma forma engraçada, interessante, ritmada, e humanamente dramática, com uma invejável cenografia e interpretações imaculadas (nunca é de mais salientar o trabalho central e genial de Fiennes). Se ‘Moonrise Kingdom’ foi o melhor filme de 2012, ‘The Grand Budapet Hotel’ é o forte candidato ao melhor filme americano de 2014. Anderson está no topo da sua capacidade criativa cinematográfica, e todos desejamos que lá permaneça. Filmes como ‘Capitain America Winter Soldier’ podem já estar a quebrar recordes de bilheteira para 2014, mas é aqui, em pérolas como esta, que está o verdadeiro cinema. Numa das últimas frases do filme, o velho F. Murray Abraham diz a Jude Law sobre a personagem de Ralph Fiennes: "He retained the illusion with remarkable grace". O mesmo se pode dizer de Anderson em relação a ‘The Grand Budapest Hotel’. Ele balançou um elenco estelar, uma história intrincada e vários géneros de filme num produto trágico-cómico cheio de elegância; estética, formal e humana.
E se Tony Revolori, o Zero jovem e Murray Abraham, o Zero velho, não são absolutamente nada iguais um ao outro (um parece indiano o outro um americano branco) – a segunda falha do filme depois das voz off – isso não interessa nada, pois a alma de ambos é a mesma. O filme é visualmente perfeito mas mesmo que não fosse também não interessaria. E também não interessa se muito do que se vê é cómico, mórbido ou simplesmente surreal ao tom de um Tim Burton (como a cena dos dedos cortados), e não ‘artístico’ para agradar a um público mais selecto. A alma está no sítio certo e isso sente-se. E quando se tem alma, tem-se (quase) tudo. Neste caso, bem que podemos apagar o quase.
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