Realizador: Hiroshi Teshigahara
Actores principais: Eiji Okada, Kyôko Kishida, Hiroko Itô
Duração: 123 min
Crítica: ‘Suna no onna’, em português ‘A Mulher das Dunas’ é uma daquelas raras obras cinematográficas incontornáveis, imortais e magníficas, imbuídas de beleza e mestria, que todos os espectadores devem descobrir por si, e depois ver e rever ao longo da vida a seu bel-prazer. Eu já tinha lido sobre este filme (consta de um ou outro livro que tenho cá em casa), tinha alguma curiosidade é certo, mas nunca tinha tido grande disposição para o ver. O realizador japonês Hiroshi Teshigahara era para mim um completo desconhecido (e ainda hoje é com excepção deste filme, o seu único sucesso internacional) mas a verdade também é que o filme havia ganho vários prémios internacionais, incluindo o prémio especial do Júri em Cannes, e tinha sido nomeado para o Óscar de Melhor Realizador (no ano em que Robert Wise ganhou por ‘The Sound of Music’), bem como para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Pesando todos estes factos, finalmente decidi-me a vê-lo aqui há uns anos quando um amigo italiano mo recomendou veementemente (ele é ainda, até hoje, a única pessoa que conheço pessoalmente que viu este filme para além de mim).
Não sabia bem a história, nem sabia o que iria ver. Não conhecia o realizador, o argumentista nem nenhum dos actores, por isso vi o filme sem um único factor influenciador. Duas horas depois escrevi nas minhas notas habituais que estava, literalmente, com falta de ar, tão comovido que estava com a magnífica obra de arte (sim, de arte!), que tinha acabado de assistir. Eu sei que o leitor não irá acreditar literalmente em mim, mas juro que foi o que se passou. No final do filme estava tão emocionado (e vi-o sozinho, em casa) que parecia que tinha de forçar os movimentos somente para conseguir respirar. Tinha um nó na garganta, um aperto no coração. Literalmente, este filme, usando as palavras da musica vencedora do Óscar de Melhor Música de 1985, “took my breath away”. O que obviamente significa que é magnífico.
Mas este é um filme difícil de descrever. É preciso vê-lo, senti-lo. Por isso mesmo há quem o apelide de enfadonho e demorado (mas eu creio que não é, em um único momento, ‘seca’), há quem o apelide de artístico, filosófico ou metafórico, há quem o apelide de cinema erótico e obviamente há quem o apelido de emocional, belo, impactante, perfeito (esse sou eu!). O filme acaba por ser uma mistura de todos estes adjectivos, com partes mais bem conseguidas que outras, mas tudo somado terá que ser consensual que é, acima de todas estas coisas, uma obra-prima. Esta história lírica e erótica de um amor trágico, onde a vida humana colide contra as forças da natureza, é absolutamente brilhante, lindíssima visualmente, e tem obrigatoriamente que figurar nas fileiras dos melhores filmes alguma vez feitos.
O filme abre com planos belíssimos de um mar de areia infindável. Com estes planos o realizador estabelece imediatamente duas verdades incontornáveis do filme. A primeira a areia, o elemento da natureza que será a peça central da história, e que irá acabar por ter tanto poder e magnetismo que se torna, praticamente, numa personagem principal. A segunda a beleza da filmagem, da fotografia a preto e branco, dos cenários, que é absolutamente perfeita do primeiro ao último segundo de película. De repente, um ponto negro na imensidão do areal. Um professor universitário (o actor Eiji Okada) está a recolher espécimes de insectos no deserto para a sua colecção. Imerso no seu hobby e fascinado com a beleza da paisagem do deserto e à beira mar, perde a noção do tempo. Quando se apercebe, perdeu o último autocarro de volta para a cidade. Aborda uns aldeões que, extremamente prestáveis, lhe indicam uma casa onde pode pernoitar, até apanhar o autocarro na manhã seguinte. O professor segue-os pelas dunas e passado um bocado depara-se com uma casa muito particular. Está no fundo de um desfiladeiro de areia, entre as dunas, e só é acessível através de uma escada de corda que é baixada a partir do topo. Uma vez a corda recolhida, a casa torna-se completamente inacessível, e quem desce não consegue subir. Mas o professor não tem motivos nenhuns para suspeitar dos aldeões, que o prometem vir buscar na manhã seguinte, e desce.
A casa tem uma única ocupante; uma jovem viúva, cujo nome nunca é revelado (a belíssima actriz Kyôko Kishida), que vive neste sítio remoto com um único objectivo, que é também o seu único trabalho: evitar que a casa seja consumida, enterrada, pela areia, que constantemente avança. Todos os dias ela afasta a areia da casa e limpa-a do telhado, das paredes, de todas as divisões. E no dia seguinte faz o mesmo. E no dia seguinte. E no a seguir a esse. E é na manhã depois de ter chegado que o professor se apercebe que foi enganado pelos aldeões. Eles levaram-no para ali de propósito, para trabalhar como escravo. Obviamente que o professor procura logo escapar, mas após algumas tentativas para escalar o desfiladeiro de areia torna-se óbvio que isso é impossível. Está preso. Uma vez por semana os aldeões vão lá dar-lhes comida através de um elevador de cordas. Se ele não trabalhar bem que pode morrer à fome. Resignado, o professor junta-se à mulher. Todos os dias cavam e limpam a areia, que no dia seguinte volta a conquistar terreno, numa rotina patética, cíclica e trágica.
Este é o enquadramento da história, que só por si já detém grande interesse. Mas não é nada quando comparado com o que está para vir. Isto foi apenas o criar da atmosfera, o despertar do interesse do público, o oferecer de uns ‘vilões’ e um propósito para o professor escapar para se vingar ou para voltar à sua vida, emoções estas que pontilham a subcorrente de todo o filme até ao final. Têm interesse claro e dão profundidade à história, mas isso para mim não é o verdadeiro filme nem a essência da sua genialidade. O verdadeiro filme começa quando o professor inicia a sua rotina trágica ao lado da mulher. Dia após dia, sós um com o outro, têm que aprender a viver juntos neste espaço confinado, sufocante e enlouquecedor, com dois inimigos: eles próprios e a areia, infindável, em todo o lado, que se infiltra inevitavelmente na casa, na sua pele, na sua mente. Portanto há uma dupla batalha. A primeira contra a natureza, e o seu poder, não obstante tudo o que o ser humano possa tentar fazer para a parar. A segunda contra a existência, contra a insanidade. Se se recusarem a trabalhar, não é só uma questão de os aldeões deixarem de mandar a comida e a água necessários para a sua sobrevivência. É também uma questão da areia conquistar a sua casa (o único local físico onde poderão ainda estar a salvo dela) e as suas almas. Antes do professor chegar, a mulher estava conformada com a sua existência, mas ela própria começa a mudar. Por outro lado o professor tenta uma e outra vez escapar, mas vai quebrando emocionalmente. Ambos começam com o passar do tempo a ficar cada vez mais paranóicos. E como não existe mais nada senão um, o outro e a areia, uma (quase) inevitável tensão erótica começa a despoletar entre eles, que acaba por explodir, e ambos embarcam numa relação sexual animalesca.
Obviamente, sendo este um filme japonês dos anos 1960 do (quase) mainstream, nada é mostrado explicitamente (ou seja, não há cenas de sexo), mas como todos os bons filmes pré 1970, consegue ser completamente explícito na sua subtileza e muitos pormenores na fotografia são mais ricos a mostrar a relação erótica entre estas duas personagens do que seriam inúmeras cenas de nudez ou sexo. Contudo, apesar de muitas vezes o filme ser rotulado devido a esta nuance da história, não creio que devemos considerar que seja isso o seu pormenor mais importante. A relação é uma consequência da sua condição, e uma parte que faz sentido no contexto das personagens e do filme. Ou seja, não é forçada, nem é este erotismo subjacente o objectivo do filme. O verdadeiro objectivo é que aos poucos, a natureza começa a ganhar. E a natureza não é apenas a areia. É a natureza animal dos seus corpos desesperados, que primeiro se revela no seu desejo sexual e depois vai quebrando as convenções das suas ‘personagens’, mostrando quem cada um deles realmente é… E é este arco, esta decadência e degradação emocional que constitui a mestria deste filme.
‘Suna no onna’ é um estudo brilhante da natureza humana, filosófico, existencialista, que tal como as grandes alegorias consegue ser perfeitamente bem-sucedido num espaço fílmico extremamente confinado. Existe uma aura de fantasia em todas as cenas que a impactante fotografia a preto e branco enfatiza, mas ao mesmo tempo uma enorme credibilidade de emoções e personagens. O argumentista Kôbô Abe (adaptando o seu próprio romance) e o realizador Hiroshi Teshigahara fizeram um trabalho fabuloso. Particularmente Teshigahara tem um desempenho brilhante na gestão de todo o filme, o que o coloca taco a taco com outros mestres japoneses contemporâneos, Kurosawa ou Mizogushi. Esta é reconhecida como a sua melhor obra, o que provavelmente é verdade (só vi este filme, por isso não posso afirmar), mas este trabalho deixa sem dúvida a curiosidade de saber se Teshigahara manteve este extraordinário domínio fílmico no seu restante espólio que, diz-nos o imdb, consiste em apenas mais 6 filmes e alguns documentários e curtas-metragens. Mas mesmo que não tenha mantido, resta-nos ‘Suna no onna’, uma obra de arte imortal, para testemunhar o seu génio, que não pode ter sido fruto do acaso.
Quando, literalmente, empurrado até ao abismo, um homem não consegue escapar ao seu verdadeiro eu e nunca conseguirá derrotar o extraordinário poder da natureza. A areia tem, neste filme, um poder hipnótico, que a câmara capta e o espectador sente na pele, causando-lhe pele de galinha e arrepios na espinha (pelo menos a mim causa!). Quando há uma derrocada e mais uma duna desaba sobre a casa, a força da areia é suficiente para destruir os nervos e as emoções humanas. E cada um deles é uma nota que vibra na tela, como os violinos na cena do chuveiro de ‘Psycho’. Cada sussurrar da areia e do vento é uma punhalada nas personagens, mas também no espectador. Ao longo de mais de 2 horas, ‘Suna no onna’ poderá demorar o seu tempo a relevar-nos, com uma tentadora paciência, os pormenores de cada um destes nervos, desta descida até ao abismo. Mas quando estes nervos são destroçados, então o espectador irá sentir isso com uma força avassaladora, centenas de vezes mais impactante do que se não tivesse sido tão excruciantemente preparado. O final é trágico, irónico, mas algo previsível. Contudo, é aberto à interpretação, e a sua mensagem não é totalmente clara. O que ainda é melhor, pois assim cada espectador pode atribuir a sua própria interpretação aos eventos. Eu tenho a minha. Resta-lhe a si, leitor, descobrir a sua. É esta mensagem subjectiva, aliada às poderosas imagens que nos acompanham desde o primeiro plano até ao último, e a todos os sentimentos que explodem na tela, mesmo que de uma forma contida, de permeio, que tornam este filme inesquecível.
Um estudo profundo e intenso da natureza humana, uma obra existencialista ímpar, uma belíssima obra de arte, e um pedaço de cinema ao mais alto nível, 'Suna no onna' é um daqueles trabalhos que só muito raramente surgem no cinema mundial, e que tocará o coração de todos os espectadores sensíveis a este tipo de odisseia. Obviamente não é um filme para todos, mas recomendo-o vivamente àqueles que são apaixonados por cinema apaixonante, balético e poético, àqueles sem medo de ver cinema sem acção mas a transbordar de emoção, àqueles que consideram (por vezes) o cinema não entretenimento mas arte. Para esses, arrisco-me a dizer, ver este filme será, como foi para mim, a experiência de uma vida. Mas cuidado com a falta de ar. Tomem precauções!
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