Realizador: Steve McQueen
Actores principais: Chiwetel Ejiofor, Michael K. Williams, Michael Fassbender
Duração: 134 min
Crítica: Imagine, caro leitor, se todos os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial fossem iguais. Se a sua história fosse sempre: (i) há um judeu; (ii) esse judeu é levado para um campo de concentração onde sofre horrores indescritíveis; e por fim (iii) é salvo pelos aliados ou então morto tragicamente às mãos dos Nazis. E imagine o leitor que sempre que se fizesse um filme assim esse filme ganharia todos os prémios existentes, somente porque é sobre um judeu, vítima de horrores indescritíveis. Pois bem, infelizmente, a maior parte dos filmes sobre o escravo afro-americano, ou sobre os conflitos raciais pre-1960 na América, seguem uma fórmula semelhante, pouco oferecem de novo uns em relação aos outros, mas são, invariavelmente, sempre referenciados como grandes obras, menos pelo que oferecem, e mais pelo seu tema, pelo seu conceito teórico. E isso não pode ser. Agora que começo a escrever estas linhas, na manhã de segunda feira, já sabemos que ’12 Years a Slave’ (em português '12 Anos Escravo') ganhou ontem à noite o Globo de Ouro de Melhor Filme, o que é, obviamente, uma grande palermice, e permitam-me que explique, brevemente porquê.

A grande infelicidade deste tipo de cinema americano é que os filmes não passam para além deste estereótipo e sentam-se à sombra da bananeira (leia-se ‘o seu tema’) para serem reputados. Esquecem-se de todas as qualidades cinematográficas que um filme tem, pode e deve ter. Por outro lado, felizmente, há filmes que sobem (ligeiramente) acima desta condição. ‘The Help’ (2011), por exemplo, foi uma surpresa agradável, porque ultrapassava a estereotipização para se focar no aspecto humano. ’12 Years a Slave’ também, mais pelo seu brilhantismo técnico e de actuação. Contudo, ambos estes exemplos, e outros mais, acabam por se sentir compelidos a seguir as regras estipuladas pelo lobby e revertem, mais cedo ou mais tarde, para a unidimensionalidade da história padrão que estão a retratar. Neste contexto, a simplicidade do argumento de ’12 Years a Slave’ é quase absurda. Há um afro-americano livre, do Norte (Chiwetel Ejiofor) que é raptado e levado para o Sul onde é vendido como escravo. Aí salta de dono em dono, tratado como todos os escravos eram tratados, até ao dia, 12 anos depois, em que é posto em liberdade, quando as autoridades provam quem ele na realidade é. Praticamente só interessa ao filme a parte do meio, ou seja, a forma como ele é tratado, neste caso mal tratado; espancado, chicoteado, forçado a trabalhar, tratado como um cão. Qual o objectivo? Inspirar? Uma história de coragem e perseverança? Não digo totalmente que não, mas o principal que extravasa a tela é quase simplesmente a mensagem: ‘vejam o que os brancos faziam aos afro-americanos antes da guerra da secessão’.

Agora, mais uma vez infelizmente, apesar da qualidade da realização e das actuações principais, apesar daquilo que o filme poderia ser, quase sem esforço (e aí merecer os prémios todos), acaba por ser inevitavelmente atraído para o vulgar, para o banalismo dos lugares comuns característicos de todos os vários ‘filmes de escravo’ que já foram feitos (e que certamente irão continuar a ser), e acaba por se subjugar aos dogmas do tal lobby. Não há um único afro-americano ‘mau’ em todo o filme. Têm todos excelentes personalidades, são todos vítimas e poucos ou nenhuns têm desejos de vingança sangrenta contra os brancos. Apresentam, em vez disso, um ódio ligeiríssimo e contido, que se manifesta através da compreensão e da aceitação trágica e heróica da sua situação. Ejiofor salta, de uma forma ciclicamente enervante, entre um ‘dono mau’ e um ‘dono bom’, sempre alternadamente, sendo que as partes com o ‘dono bom’ são rapidamente despachadas, para que o filme mostre o que verdadeiramente lhe interessa. E a linha da história é previsível, unidimensional e com pouco significado. As personagens retratam uma era sem serem exactamente estereotipadas, mas o filme não consegue evoluir para além do seu monótono enquadramento histórico. Temos que ver o homem a sofrer e a levar chicotadas durante 2h. E basicamente é isto.
Não vi ‘Shame’, mas foi famoso pelas suas cenas explícitas de depravação. Como tal esperava que McQueen filmasse cenas de tortura a escravos com um enorme realismo, estilo ‘Passion of the Christ’ no Sul Americano. Mas tal não acontece. Há cenas fortes, é certo, mas sempre, ‘para a família’, 'para o público alargado’. Ou seja, para render na bilheteira e todos poderem ver sem ficarem muito chocados. A reacção do público esperada é aquela exactamente que ocorreu ontem atrás de mim no cinema. A rapariga passou o filme todo a dizer coisas como ‘Coitadinho’, ‘Ai Jesus’, ‘Ai Meu Deus’, cada vez que um afro-americano era chicoteado ou tratado como gado. E é este o tipo de reacção que o filme quer gerar, especialmente para o público pouco familiarizado com História Mundial. Mas este retrato, tirando ser feito por um realizador de qualidade, pouco se afasta, em termos de argumento, ritmo e significado, daquilo que se pode encontrar num documentário do Canal de História. Aliás, não vejo grande diferença entre outras reconstituições que já vi nesse canal e este filme. A única diferença é que esta adaptação custou muito mais dinheiro e chega a um público mais alargado. O mesmo público que está apenas interessado em ficar ‘comodamente chocado’ com estas cenas, mas que depois exclama, como exclamou esta menina atrás de mim ‘Ai que seca’, no tal plano de 45 segundos, belíssimo, sem diálogo, sem música, da cara de Ejiofor.
Portanto, resumindo, para mim ’12 Years a Slave’ é um filme que me deixa um sabor amargo. A realização e actuação são excelentes. Consegue reproduzir emoções somente por imagens, como na extraordinária cena em que Ejiofor começa a cantar com convicção após todo o mal que lhe foi feito (a melhor cena do filme), em vez de o fazer com frases infindáveis (e inevitavelmente ocas) de argumento. Mas por outro lado debita cena após cena no mesmo tom, não sai de uma rota já há décadas pre-estabelecida para este tipo de filme, por mais enfoque que tenha no emocional/humano acaba sempre por descair para o lado do histórico, e por fim estraga tudo com a sua necessidade de ‘transmitir a mensagem’ – aquela mensagem que o lobby nunca quer deixar ninguém esquecer, para poder continuar a exercer a sua chantagem. A personagem de Brad Pitt, por exemplo, nem sequer é introduzida filmicamente. Simplesmente aparece a meio de uma cena, prontinha para debitar um conjunto de frases anti-escravatura (ainda ninguém o tinha feito), completamente artificiais mas que farão certamente chorar a Oprah.
Acho que este é um filme que poderá merecer ser visto. Não para educar, não para chamar a atenção para um drama social, não porque é uma obra-prima. Mas apenas porque tem qualidade, nomeadamente ao nível da técnica cinematográfica. Ao nível da história, do arco da personagem e da mensagem já está mais que batido. Mas é daqueles filmes que simplesmente é crime criticar, é crime não galardoar. Será apregoado como uma maravilha, ganhará prémios e chocará comodamente o seu público, como o conto de fadas social, ostensivamente inspirado numa história verídica, que é, e isso certamente fará os produtores muito felizes. Mas para mim perdeu-se aqui uma excelente oportunidade de criar um filme com uma enorme dimensão, cinematográfica, emocional, humana. Depois de ter começado tão bem, deixou-se cair no cliché, no conforto do lugar comum. E quando isso acontece não há nada a fazer.
E já agora, será que alguém pode tocar o tema do filme 'World Trade Center' (2006), composto por Craig Armstrong, a Hans Zimmer, compositor de '12 Years a Slave'? É que as semelhanças entre os temas dos dois filmes são, no mínimo, suspeitas...
E já agora, será que alguém pode tocar o tema do filme 'World Trade Center' (2006), composto por Craig Armstrong, a Hans Zimmer, compositor de '12 Years a Slave'? É que as semelhanças entre os temas dos dois filmes são, no mínimo, suspeitas...
Mike, subscrevo integralmente esta critica. Este é o pior filme de Steve McQueen em The Hunger (2008), a técnica, as cenas explicitas levadas ao limite e a simplicidade nos planos são sublimes. Abr.
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