Realizador: Robert Wise
Actores principais: Susan Hayward, Simon Oakland, Virginia Vincent
Duração: 120 min
Crítica: ‘I Want to Live!’ (talvez em português se chame ‘Quero Viver’... quem sabe?!) é um grande filme, mas tem uma aura estranha que eu não consigo exactamente descrever. Este filme é baseado em factos reais (algo que é inúmeras vezes repetido durante o filme – talvez por ser prática pouco comum na altura), e portanto o argumento depende muito de documentos como registos de tribunal, transcrições de relatos de testemunhas, cartas reais entre os intervenientes da história, etc, o que proporciona ao filme uma sensação estranha de realidade, terra-a-terra, que não é hábito existir na ficção do cinema. Mas ao mesmo tempo, o estilo de montagem, a fluente banda sonora ao estilo jazz, e a impactante performance central de Susan Hayward (um papel que lhe valeu o Óscar de Melhor Actriz), transportam o filme para um plano quase sonhado, de fábula. Por existir esta dicotomia entre o real e a ilusão em quase todas as cenas, especialmente nos primeiros dois terços do filme, é que digo que este filme existe num plano difícil de caracterizar.
‘I Want to Live!’ é realizado pelo grande Robert Wise. Por esta altura Wise estava num período de transição artístico. Já tinha deixado a sua marca no género de terror/ficção científica poucos anos antes, e agora evoluía para um estilo mais emocional, mais dramático, até que culminaria, na década de 1960, com dois épicos musicais que lhe valeriam, pessoalmente, 4 Óscares (num total de 15 conquistados) – ‘West Side Story’ (1961) e ‘The Sound of Music’ (1965). O facto de ter iniciado a sua carreira como editor (fez a montagem, por exemplo, de 'The Magnificent Ambersons’, 1942, de Orson Wells) poderá ajudar a compreender o ritmo acelerado com que o filme começa.
Começamos por ver pequenos sketches da vida de Barbara Graham (Hayward), uma mulher de personalidade forte, mordaz e com um aguçado sentido de humor, mas que provém de um bairro pobre. Passa a maior parte do tempo em bares de reputação duvidosa com indivíduos ainda piores, basicamente a fazer o que lhe apetece com quem lhe apetece. O filme passa rapidamente de cena em cena, de episódio em episódio, de ano em ano, mas permite, mesmo assim, que o público consiga formar uma ideia da sua personalidade, e que crie alguma empatia com o seu carácter. Barbara vive apenas para o momento e pouco pensa no futuro e nas consequências das suas acções. Mente, falsifica cheques, e entra e sai várias vezes de estabelecimentos prisionais por crimes menores.
Um dia contudo, Barbara decide endireitar a sua vida. Casa com o empregado do bar para tentar começar a construir uma vida respeitável, e tem um filho dele. Contudo, depressa descobre que o seu marido é viciado em droga (outro tema pouco falado em filmes da época, e que teve a sua primeira grande abordagem em ‘The Man with the Golden Arm’, 1955, de Otto Preminger, com Frank Sinatra no papel principal). Na noite fatídica, Barbara discute mais uma vez com o marido. Quando este desaparece, Barbara vai ao bar ter com os velhos amigos. O que ela não sabe é que estes estão a planear um assalto. Mais tarde, vai ter com eles outra vez, e quando estes são apanhados pela polícia, ela também é. São acusados de matar uma senhora idosa enquanto roubavam a casa dela. Ambos os homens apontam o dedo a Barbara para se tentarem safar e ela, sem álibi, sem amigos, sem apoio, e com um cadastro grande, é presa fácil para advogados astutos e para a polícia. E então o filme finalmente desacelera o ritmo, e todos os passos, desde o julgamento, à prisão, até à convicção e finalmente à sua morte na câmara de gás são dados com extremo cuidado e muita atenção ao pormenor.
Este filme pertence inteiramente a Susan Hayward. Todos os outros actores que interpretam os advogados, os jornalistas, os padres, os guardas, os polícias, e os outros criminosos, apenas flutuam à volta dela, e pouco ou nenhum interesse têm para o espectador. O público olha apenas para Hayward, fixamente, esperando o próximo floreado da sua actuação. Acresce a isto o facto de na altura, em 1958, o caso estar ainda fresco na mente do público, portanto ninguém na audiência tinha dúvidas sobre o desfecho dramático da peça (a execução). Portanto ainda mais crédito tem que ser dado à figura dramática de Hayward, que consegue cativar e guiar o público pelo seu arco trágico, mesmo sendo já o seu destino conhecido à partida. Sabemos perfeitamente que a mulher de mau carácter mas inocente daquilo que a acusam, impotente contra o sistema, vai morrer no fim, mas o filme não perde um milímetro de interesse por causa disso. Poderá até ficar mais interessante, por essa mesma razão.
O pico da carreira de Hayward (uma actriz pouco recordada hoje em dia), ‘I Want to Live!’ é muitas coisas. É a história de uma personagem forte cuja única fraqueza é o seu amor pelo seu pequeno filho, uma personagem que não se verga perante o sistema, nem se quebra face às muitas injustiças que lhe são feitas, mas que vai cedendo emocionalmente a pouco e pouco à medida que a sua hora da execução se aproxima. É um ataque pouco disfarçado ao sistema judicial e à pena de morte, dado de uma forma fria e directa, sem cedências sentimentais para efeitos de dramaturgia cinematográfica. E é também uma afirmação de que pessoas más se podem endireitar, mas que neste Mundo a sociedade dificilmente sabe perdoar e o sistema raramente esquece o passado de uma pessoa.
A forma como o filme se estrutura na primeira hora e meia, em termos da direcção de Wise e da montagem, dão-lhe a estrutura estranha de que falei no início. Contudo, estas mesmas técnicas cinematográficas aplicadas na última meia hora, que retrata a última hora de vida da prisioneira, elevam o filme ao patamar de obra-prima. É como se Wise soubesse que estas técnicas resultariam brilhantemente no final do filme, e portanto optou por ser coerente e usá-las no filme todo, o que na primeira 1h30 parece um pouco inexplicável. Mas quando o filme desabrocha, desabrocha como poucos, e Hayward mantém-se a brilhar até ao seu sopro final. Mesmo assim, não creio que por tão boa que seja a performance de Hayward, seja melhor que aquela que Elizabeth Taylor teve em ‘Cat on a Hot Tin Roof’, igualmente nomeada para o Óscar nesse ano. Infelizmente, todos sabemos que a Academia tem a tendência para preferir actores a fazer de personagens reais que tiveram algum tipo de tragédia ou drama na vida… Mesmo assim é uma grande performance, um nada exagerada, mas que constitui, na sua essência, o próprio filme. Este é o maior elogio que posso dar a Hawyard. Ela é o filme.
Acima de tudo, ‘I Want to Live!’ demarca uma posição social, tão relevante hoje como foi na altura do seu lançamento.
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