Realizador: Richard Linklater
Actores principais: Ethan Hawke, Julie Delpy, Seamus Davey-Fitzpatrick
Duração: 109 min
Crítica: Jesse e Celine conheceram-se em 1994 num comboio e passaram um único dia juntos em Viena. Ele um jovem americano sonhador, aspirante a escritor, numa viagem de auto-descoberta pela Europa. Ela uma Parisiense de espírito livre, feminista e de ideias concretas sobre o amor e a vida. ‘Before Sunrise’ (1995), co-escrito (em parceiria com Kim Krizan) e realizado por Richard Linklater, e com Ethan Hawk e Julie Delpy nos papéis principais, foi um estrondoso sucesso nos meios independentes e art-house mas passou um pouco ao lado dos grandes prémios, com a excepção de ter recebido o Urso de Prata para melhor realizador no festival de Berlin. É um daqueles filmes que ganhou uma legião de seguidores fora do mainstream, que se tornou de culto para os poucos que o conseguiram descobrir e descortinar a sua verdadeira essência. Claro que é um filme difícil de agradar a todos. Com o estilo apelidado ‘walk and talk’, ‘Before Sunrise’ consiste quase exclusivamente de longos planos de conversa pelas ruas de Viena, sobre tudo e sobre nada, entre os dois actores principais. Mas a riqueza do filme está em duas coisas. Primeiro na beleza dos diálogos, extremamente bem escritos, naturais e incisivos no que respeita a abordagem do ser humano comum ao amor, às relações e à vida em geral. Segundo, a química entre Hawk e Delpy é inacreditável, e os dois actores são magníficos a suster o filme, como se não estivessem a seguir um argumento mas estivessem, realmente, a improvisar a conversa à medida que vão avançando. A história de amor de ‘Before Sunrise’ é divinal, é uma peça de teatro filmada com dois actores magníficos e um argumento cheio de vida, vitalidade e realidade, completamente credível.
Anos mais tarde Linklater voltou ao seu casal preferido duas vezes. Primeiro no seu filme de animação filosófico ‘Waking Life’ (2001), em que Hawk e Delpy emprestam a voz, numa das curtas-metragens que compõem este filme, a duas personagens que só podem ser Jesse e Celine (embora não se diga o seu nome). Segundo na sequela ‘Before Sunset’ (2004), um filme que surgiu depois da maior aventura de Linklater pelo mainstream Hollywoodesco (‘The School of Rock’, 2003). Nestas duas circunstâncias, o argumento já foi escrito a três, pelo realizador e pelos dois actores. Jesse e Celine deixaram de ser, tal como a personagem de Antoine Doinel nos filmes de Truffaut, do realizador, mas tornaram-se uma parte dos actores que as criaram. Se os documentários ‘Up’ de Michael Apted visitam as mesmas famílias (reais) de 7 em 7 anos para acompanhar a sua evolução, os fimes Before… de Linklater visitam o casal fictício de 10 em 10 anos, e o casal evolui tal como o realizador (na casa dos 50 anos), e os dois actores (ambos na casa dos 40) evoluem. Após 10 anos sem se verem, em ‘Before Sunset’ (com um argumento nomeado para o Óscar), o casal reencontra-se, e depois de um dia em Paris no mesmo estilo ‘walk and talk’, o filme termina em suspenso, mas sabemos que finalmente decidiram ficar juntos.
E a revelação da sua vida em conjunto é finalmente dada em ‘Before Midnight’. Quem não viu os dois filmes anteriores pode perfeitamente ver ‘Before Midnight’ e sorvê-lo-á como um estudo ao mesmo tempo cómico, dramático, romântico e incisivo sobre os problemas conjugais de um casal a atingir a meia-idade. Não é por acaso que menção é feita a filmes italianos dos anos 60 (Rosselini) que focam o mesmo tema. Mas para quem viu os dois filmes anteriores, ‘Before Midnight’ é muito mais, é a continuação de duas vidas que o público aprendeu a seguir, é a identificação perfeita das suas vidas nas nossas próprias. ‘Before Midnight’ tem diálogos tão realistas e actores tão naturais que não estamos a ver um filme fictício, estamos a ver o reflexo daquilo que é ter uma relação, daquilo que é estar junto com alguém, daquilo que é amar tanto e por vezes não ser compreendido, daquilo que é pôr a razão contra o coração e discutir porque nem nós próprios sabemos qual o desfecho dessa batalha, daquilo que é por fim ouvir o coração e saber, não de uma forma lamechas nem sentimental, mas simplesmente de uma forma humana, que o amor está acima de todas as coisas, e que nada na vida é perfeito mas que se o amor existe, então poderá haver uma solução, por mais difícil que seja.
‘Before Midnight’ não é uma mera repetição do estilo dos dois filmes anteriores. Em termos cinematográficos até poderá ser, mas não em termos argumentais. Se no primeiro filme as personagens estavam na casa dos 20 e portanto tinham conversas de uma vida por descobrir e de um amor por encontrar, e no segundo filme estavam na casa dos 30, a começar a assumir responsabilidades e a ponderar em assentar, agora, na casa dos 40 anos, e com duas filhas, as personagens, e inevitavelmente as conversas, são diferentes. Mas há outra coisa que é diferente: em duas sequências, Jesse e Celine não estão sozinhos, e há outras personagens que entram nos diálogos. Estas sequências são as piores, a meu ver, pois estragam um bocado a magia que a estrutura a dois destes filmes proporciona. As duas personagens vivem num universo à parte, só delas, que aqui é penetrado por outras que falam do mesmo modo, o que soa estranho. Tirando estas duas sequências (Jesse no aeroporto a deixar o seu filho da primeira mulher, agora adolescente, e Jesse e Celine a almoçaram com a família grega que os acolhe durante as férias) o filme tem exactamente a perfeição natural dos dois anteriores.
Em três sequências: no carro com as filhas a dormir no banco de trás; a passearem por marcos turísticos gregos, e finalmente num quarto de hotel pago pelos amigos para que possam ter ‘uma noite romântica longe dos filhos’, Jesse e Celine têm os diálogos a dois que são a essência do filme, do casal e, pela identificação tão clara com a realidade, do espectador. Aqui falam/discutem sobre a sua vida a dois dos últimos 10 anos, sobre os sacrifícios que tiveram de fazer para estarem um com o outro, sobre aquilo que abdicaram, sobre aquilo que ainda sonham fazer, sobre as suas filhas, sobre as rotinas do dia-a-dia, sobre o rumo que a sua vida tomou, e inevitavelmente sobre o papel do homem e da mulher numa relação e claro, sobre o amor, todos os amores, do básico, ao carnal, ao humano. Cada personagem tem um ponto forte a acrescentar à discussão: Celine tem a proposta de um emprego melhor mas que vai contra os seus princípios e Jesse pondera voltar a viver nos Estados Unidos para estar perto do filho adolescente da primeira mulher. Tudo isto é pano para mangas para conversas/discussões, humoristico-dramáticas, em que os dois actores voltam a brilhar. Tirando o facto de Delpy mostrar exageradamente os seios na cena do quarto do hotel (sem necessidade nenhuma, não se percebe porque anda ali nua de um lado para o outro), estas sequências a dois roçam a perfeição.
Cada um destes três filmes tem o seu significado especial para a geração à qual as personagens/actores/realizador pertenciam, a casa dos 20, dos 30 e dos 40 respectivamente, mas a verdade é que ‘Before Midgnight’ poderá bem ser aquele filme cujo argumento mais acerta na muche no que se refere às relações entre dois seres humanos. Esta trilogia, e todos os filmes ‘Jesse e Celine’ que virão, são o legado de Linklater à história do cinema. Não importa se tirando estes filmes só faça obras pouco memoráveis. Quando a ‘Escola de Rock’ e outros filmes que tal forem esquecidos, os filmes da saga Before… continuarão a ser lembrados. Podem não ser brilhantes em termos de técnica cinematográfica, mas são estudos de personagem fabulosos, com argumentos/improvisações magníficos e actores perfeitos.
Espero continuar, nem que seja de 10 em 10 anos como tem sido até agora, a ver filmes com Jesse e Celine. Que Ethan Hawk e Julie Delpy vivam até aos 100 anos, para que Jesse e Celine possam viver igualmente até aos 100. O 'Before Twilight' de 2070, com ambos os actores num lar de terceira idade, será igualmente magnífico, estou certo. Nestes filmes actores e personagens misturam-se e a naturalidade/realidade do argumento e da actuação são o prato forte que está há demasiado tempo (quase 20 anos) a ser esquecido na lista de grandes obras cinematográficas. Numa era em que o cinema que chega da América (e um pouco por todo o resto do Mundo) está já muito batido e com falta de ideias originais, os filmes Before… de Linklater oferecem a maior originalidade de todas: a vida e o amor, o mais perto possível que a ficção pode estar da realidade.
‘Before Midnight’ é um filme imperdível, e mesmo tendo duas sequências com outras personagens que estragam um pouco a beleza do universo a dois que é o cerne desta saga, ouso dizer que é o melhor filme que vi no cinema em 2013. É um filme de sentimentos abertos, real sem ser lamechas nem puxar ao sentimentalismo, incisivo e pungente, terno e delicado, cómico ou emotivo quando tem que ser, e com uma força motriz assente em duas actuações magníficas. Hawk e Delpy podem falar pelos cotovelos em sequências sem cortes imbuídas de naturalidade, mas quando é preciso o filme sabe calar-se, e um olhar, uma expressão ou um gesto é suficiente. Um grande argumento, uma grande realização, um grande local de filmagens (as ilhas gregas) e dois grandes actores. O amor e a vida. Num filme. Em três filmes em 20 anos. E (espera-se) em muitos mais com o passar do tempo. Perfeito. Falar sobre o amor e a vida não é fazer porcarias como ‘Valentine’s Day’ ou ‘New Year’s Eve’. Falar sobre o amor e a vida é fazer ‘Before Sunrise’, ‘Before Sunset’ e ‘Before Midnight’.
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