Realizador: Terrence Malick
Actores principais: Ben Affleck, Olga Kurylenko, Rachel McAdams
Duração: 112 min
Crítica: Em 1998, eu tinha 13 anos, e implorei à minha mãe para que fosse comigo ao cinema, para poder entrar no filme ‘The Thin Red Line’. Mesmo só tendo 13 anos, já tinha visto os dois filmes anteriores do realizador Terrence Malick, ‘Badlands’ de 1973 e ‘Days of Heaven’ de 1978. Já considerava (e ainda hoje considero), ‘Days of Heaven’ um dos 5 melhores filmes alguma vez feitos. Era novo, conhecia pouco sobre o cinema, mas este senhor que tinha feito 2 filmes nos anos 1970 e depois tinha desaparecido de cena completamente fascinava-me, não só pela sua mística (fazer uma obra-prima e voltar as costas ao cinema), mas também pela qualidade especial, artística, pura, de beleza inexplicável das suas obras. Em 1998, o burburinho de que Malick, passado 20 anos, iria voltar ao cinema, começou a criar uma antecipação, uma ansiedade em mim, uma expectativa como nunca senti em relação a qualquer outro filme. ‘The Tin Red Line’ não me desapontou, e considero-o um dos melhores, senão o melhor, filme de guerra alguma vez feito.
Em 2005 o mesmo se passou. Passados 7 anos, Malick anunciava que ia regressar. O homem recluso, professor de filosofia, que nunca dá entrevistas, que não aparece nas cerimónias de prémios e nunca é fotografado iria regressar. De novo a mesma ansiedade, de novo a mesma expectativa. Ver um Malick no cinema. Um privilégio raro, que não podia ser desperdiçado. ‘The New World’ com Colin Farrell, poderia ser pior que os dois filmes anteriores do realizador (que por esta altura já era o meu preferido), mas tinha todas as suas características, toda a sua beleza intrínseca. E finalmente, o ano passado, outros 7 anos depois, ‘The Treee of Life’ foi anunciado. Se antes o trabalho de Malick era só conhecido de alguns bravos cinéfilos, com a Palma D’Ouro Malick tornou-se, por breves momentos, um ‘household-name’. Muita gente que nunca tinha visto um Malick foi ao cinema. Mas deparou-se com o trabalho mais épico, mais extremo, mais intimista, do realizador. Um filme que, tal como ‘Ryan’s Daughter’ (1970) de David Lean, é tão bom, mas tão bom, que quase se torna impossível de ver, tão belo ao ponto de se tornar insuportável. ‘The Tree of Life’ é uma obra prima do cinema, de cinema puro e verdadeiro, mas é um filme que precisa de muito estômago cinematográfico para ser visto.
E eis que, nem um ano depois, Malick apresenta um novo filme. Depois de ter deixado 5 anos, depois 20, depois 7 e depois mais 7 anos entre filmes, 1 ano pareceu-me muito estranho. Foi demasiado cedo e toda a excitação, a antecipação para o momento de êxtase alguns meses depois (o finalmente estar na sala no dia de estreia a ver um Malick) não se abateu sobre mim. Era como se intimamente sentisse que 1 ano era demasiado pouco para que Malick pudesse amadurecer, fazer crescer e desabrochar uma nova obra. E ontem, ao ver o filme no cinema, achei que ele reflectia exactamente essa, digamos, precipitação. ‘To The Wonder’ é um trabalho com todas as características belíssimas do cinema de Malick, que nenhum outro realizador da história conseguiu apresentar. A câmara é sempre balética e nunca se eleva acima do olhar humano. A fotografia (do grande Emmanuel Lubezki) é pura, natural e cristalina, com uma excelente utilização da luz natural, e fabulosos planos em contra-luz. Os actores não seguem um argumento escrito, mas um argumento emocional, onde Malick capta pequenos momentos da vida diária em cortes rápidos mas sempre em movimentos delicados. A câmara não filma a acção, a câmara é parte da acção, faz parte do círculo íntimo das personagens. A banda sonora é repetitiva mas melodiosa, uma espiral de sentimentos em crescendo. E a voz off reflecte a poesia da alma das personagens e apenas complementa aquilo que o visual está a explicar. Mas o senão de ‘To the Wonder’ é que já vimos todas estas características, toda esta beleza, em trabalhos anteriores de Malick. E a já as vimos melhor.
‘To the Wonder’ é Malick a imitar Malick. É um trabalho rotineiro do realizador, que provavelmente o fez com uma mão atrás das costas. Visto isoladamente, ou seja, se nunca tivesse visto um filme de Malick, provavelmente acharia este filme genial. Mas estando já habituado a um grau de beleza e mestria praticamente insuperável, ‘To the Wonder’ desaponta um bocadinho. Fez-me lembrar a rotina presente nos filmes de Woody Allen. Allen faz um filme por ano, sempre com estruturas cinematográficas (e muitas vezes com histórias) semelhantes. Nenhum dos seus filmes é propriamente mau, pois têm sempre as (boas) características associadas ao seu trabalho. Mas alguns são mais bem conseguidos do que outros, pois alguns são mera rotina, ‘mais um’, um reciclar de ideias que já se viram antes e mais bem feitas. O novo filme de Malick é a mesma coisa, e talvez seja a consequência do pouco tempo de espera e maturação entre filmes. ‘To the Wonder’ não deixa de ser um filme magnífico, muito bem feito, mas é ‘rotina-Malick’ e não ‘arte-Malick’.
A história prossegue a visão auto-biográfica iniciada em ‘Tree of Life’. Se este era influenciado pela infância de Malick no Texas e pelo seu olhar sobre o significado da vida, ‘To the Wonder’ reflecte a vida amorosa de Malick e, como contraponto, o seu olhar sobre a religião. Tal como a personagem de Ben Affleck, Malick também casou com uma francesa (aqui protagonizada pela ex-bond girl Olga Kurylenko) e trouxe-a para o seu Texas natal. Mais tarde separaram-se e Malick teve um romance com uma ex-namorada de liceu (aqui protagonizada por Rachel McAdams).
Affleck raramente abre a boca e raramente surge na voz off. O filme é contado na perspectiva de Kurylenko, a mãe solteira que se deixa levar para a América por um homem que poderá não a amar tanto como ela o ama. No Texas, Malick aproveita para dar umas bocas à especulação imobiliária e aos problemas ambientais do ‘urban sprawl’ desenfreado no Texas, que já tinha apresentado no documentário ‘The Unforeseen’ (2007). Affleck vive naqueles bairros de vivendas em extensão no meio de nenhures e faz análises ambientais para as imobiliárias. Quando o casal se separa, o filme tem o seu maior desequilíbrio. Seguimos Kurylenko de volta a Paris e o seu desespero, mas não seguimos Affleck. O seu rumo é seguido da perspectiva de McAdams. É nela que a câmara se foca e é ela que faz a voz off. Isto é algo inexplicável, pois quando Kurylenko regressa à América e o casal se reúne, McAdams não mais volta a aparecer no filme. Ela foi o escape, portanto não se percebe porque é que o filme lhe deu tanta atenção. Claro que sabemos também que Malick filma milhares de horas e milhares de ideias e personagens, e depois descarta muita coisa na sala de montagem. O que lhe interessa é a ideia, a essência, e não a linha da história. Mesmo assim, se o centro deste filme é o casal, ou pelo menos a psicologia e os sentimentos de Kurylenko, não se percebe os 20 minutos de atenção em McAdams, nem a completa falta de percepção da personagem de Malick/Affleck. Não sabemos nada, ou quase nada sobre ele. Malick continua aqui a alimentar a sua própria mística, o que neste caso faz algum mal ao equilíbrio emocional do filme. Sabemos mais sobre o Padre da paróquia (Javier Bardem), que está com problemas com a fé, do que sobre um dos elementos do casal. A introdução de Bardem também é algo inexplicável. Parece que Malick achava que a história de amor do casal principal (e dos seus confortos/escapes, quando se separam, com outras pessoas) era insuficiente para encher o filme, e por isso necessitava de outra história secundária.
Mesmo assim, o cerne, o amor do casal que se apaixona (na belíssima cena inicial em Paris), se une, discute e separa, volta a unir-se e volta a separar-se, está muito bem conseguida. Malick consegue captar, tal como o título do filme em português tão bem descreve ‘A Essência do Amor’. O amor são as pequenas coisas, os pequenos sorrisos, as pequenas carícias. E nisso, ‘To The Wonder’ é maravilhoso. Infelizmente, é um amor unilateral, pois só o absorvemos da perspectiva de Kurylenko. E depois há essas duas, chamemos-lhe, distracções, a personagem de McAdams (em detrimento da do próprio Affleck, que praticamente só faz figura de corpo presente) e a de Bardem.
Kurylenko tem uma performance magnífica e é o centro do filme. Ela é o espírito livre e emocional que encarna perfeitamente o universo cinematográfico de Malick. Bardem e Affleck não têm muito jeito para as voz offs, Affleck também não é lá grande coisa a mostrar sentimentos sem palavras, mas McAdams está surpreendentemente bem (nunca gostei dela como atriz). Como todos sabemos a maior parte dos actores famosos quer entrar num filme de Malick (mesmo que seja de graça), para ganhar reputação, e Malick não se importa de os usar porque assim obtém mais financiamento. É um ‘arranjinho’ que às vezes não resulta muito bem, porque devido à forte ligação emocional que o público acaba por ter com as personagens, é necessário actores com um enorme número de camadas emocionais, e que consigam ser credíveis com um gesto, um olhar, uma palavra.
Depois de ter trabalhado com Ennio Morricone em ‘Days of Heaven’, Hans Zimmer em ‘Thin Red Line’, James Horner em ‘The New World’ e Alexander Desplat em ‘Tree of Life’, todos reputados compositores, Malick usou em ‘To the Wonder’ Hanan Townshend, que havia tocado algumas músicas em ‘Tree of Life’, mas que compõe aqui a sua primeira banda sonora. É um trabalho que se adequa às imagens de Malick mas que não se distingue, e soa ao mesmo que as composições de Desplat para ‘Tree of Life’.
No final, como disse, ‘To the Wonder’ é um trabalho rotineiro, por vezes desleixado, de Malick, mas que existe na genialidade do seu universo cinematográfico. É uma delícia para o olhar e sacia a alma. É belíssimo, puro, delicado e ao mesmo tempo emocionalmente épico e intimista. Mas para quem adora ‘Thin Red Line’, para quem ama ‘Days of Heaven’, para quem ficou arrebatado e com falta de ar com ‘Tree of Life’, ‘To the Wonder’ é uma espécie de Malick trocado por miúdos e fácil de digerir. Com 70 anos, suponho que Malick se terá reformado da sua profissão de professor. Os seus próximos filmes ‘Knight of Cups’ e ‘Voyage of Time’ já foram filmados e estão no extenso período de pós produção que caracteriza os filmes deste génio. Serão lançados em princípio um em 2013 e outro em 2014. Para um homem que fez 4 filmes em 40 anos, isto é incrível. Malick parece ter-se decidido voltar completamente para o cinema, e está a planear uma reforma digna de Manoel de Oliveira. Se estes filmes forem tão bons como os primeiros de Malick então o mundo cinematográfico vai ser revolucionado, vai ser inundado por uma nova ‘nova vaga’, se ele passar a produzir um filme por ano. Se forem todos como ‘To The Wonder’ vou começar a ficar triste. Não queremos que Malick se torne num novo Woody Allen. Não quero ir ver os filmes de Malick como rotina, gostar deles porque são bons sim, mas ter pena por soarem sempre familiares e ficar sempre a ansiar por algo que me tire o fôlego. Tive a sorte de poder ter ansiado anos por ‘Thin Red Line’ ou por ‘Tree of Life’, e por poder ter sido arrebatado na sala de cinema por ambos, nas respectivas semanas de estreia. Isto foram momentos marcantes na minha vida (cinematográfica). ‘To the Wonder’ já não o foi. Não quero perder essa magia, já que neste momento o único realizador que a dá é Malick. Se Malick se tornar uma cópia de Malick, haverá alguém que possa tomar o lugar de Malick? Isto é uma pergunta filosófica que só Malick, o maior filósofo da história do cinema, poderá responder.
Continuarei sempre a ansiar pelos seus filmes e a vê-los, porque são uma forma de fazer cinema única. É óbvio que depois de ter chegado ao limite com ‘Tree of Life’, a descompressão era mais que necessária. Espero que a simplicidade rotineira (isto é, para os padrões de Malick) apresentada em ‘To the Wonder’ seja essa descompressão, e que Malick regresse depressa à sua melhor forma. ‘To the Wonder’ é um excelente filme, não tão profundo nem tão trabalhado como outras obras do realizador, mas um grande filme considerando o contexto geral das obras que hoje chegam às salas de cinema. Isto é cinema a sério. Ainda a semana passada vi ‘Iron Man 3’ e por amor de Deus, é como comparar um quadro de Boticelli àquelas sanitas cheias de latas de Coca-Cola que se vê no museu de arte moderna de Nova Iorque. ‘To the Wonder’ bem que poderá ser a melhor forma de introduzir Malick a quem desconhece os seus filmes, mas simplesmente não satisfaz quem considera Malick um deus do cinema.
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