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Martinis, girls and a gun - sobre a génese do 'spy-fi'

Spy-fi: a genre of spy fiction that includes elements of science fiction.


‘James, aguenta-te’ grita a lindíssima Lois Chilles, esticando um braço para Bond, que está literalmente por um fio no teleférico do Pão de Açúcar, a desfrutar de uma vista soberba (mas pouco confortável) da praia de Copacabana.

‘Esse pensamento já me tinha ocorrido’ responde um sempre plácido Roger Moore, levantando a sobrancelha…

Jean-Luc Godard disse uma vez que tudo o que era preciso para fazer um filme era uma rapariga bonita e uma arma. Se acrescentarmos um Martini à fórmula, e batermos (não mexendo) bem, o resultado, após degustado, prova ser um delicioso género cinematográfico, carinhosamente intitulado de ‘spy-fi’, que eclodiu com alarido nos anos sessenta do século XX, e que transformou para sempre todo um imaginário colectivo.

 ‘Martinis, girls and a gun’, cantava Sheryl Crow em 1997, quando a saga Bond já ia no seu décimo oitavo filme e já tinha celebrado mais de 35 aniversários. Fenómeno único na história do cinema, o sucesso da saga Bond não é inusitado. O cinema já tinha visto muitos filmes de espiões, é verdade. Fritz Lang realizou ‘Spione’ em 1928. Nos anos 1940, como consequência directa da Segunda Guerra Mundial, mestres (leia-se génios) como Alfred Hitchcock, Carol Reed ou Orson Wells, produziram peças cinematográficas sombrias (noir), onde invariavelmente um herói (muitas vezes acidental), mergulhava num mundo de conspirações, traições, segredos e agentes duplos, antes de um final climático onde o vilão perecia, o segredo (o famoso McGuffin de Hitchcock) era mantido, o herói levava a miúda para casa, e a moral das tropas a quem o filme se destinava era exacerbado “all the way home”. Mas o que Hollywood, e o cinema em geral, nunca tinham visto, eram filmes de agentes secretos. 

E eis que entra em cena a imagem cinematográfica de James Bond (e note-se que digo cinematográfica, não literária), que desde a estreia de ‘Dr. No’ em 1962, iniciou uma revolução no género, imediatamente assimilada pela sociedade. 

Na realidade, o contexto social do início da década de 1960 é o principal catalisador da imediata (quase meteórica) abertura ao ‘spy-fi’. Da geração do crescimento económico, suburbano e consumista dos anos 50, aduladora dos épicos cinematográficos e dos restícios do sistema de estrelas e estúdios, brotava uma geração nova e independente, para a qual a televisão já deixara de ser uma novidade (mas através da qual sorviam muito mais informação), liberta de dogmas, com capacidade de pensar, inovar e evoluir, influenciada pela cultura europeia, e com vontade de se revoltar contra a forma estrutural hierárquica, não só da sociedade, mas de fazer cinema. 

‘Contra o que é que te estás a revoltar?’ perguntam a Brando no filme ‘The Wild One’ de 1953. ‘O que é que tens?’, responde. Dois anos depois, James Dean era um rebelde sem causa. Estes eram os jovens de liceu. No virar da década seguinte, estes eram os jovens licenciados que se abriam ao mundo, que se perdiam nele. Com toda a revolução cultural, racial e política que nele fervilhava no início da década de 1960, os épicos bíblicos já não faziam qualquer sentido para estes jovens e o glamour das estrelas era irreal quando comparado com as duras realidades (ameaças nucleares, a guerra na Argélia, mais tarde o Vietnam) com que eram confrontados todos os dias (e que assistiam pela televisão).

Da França chegavam as ondas de uma nova vaga, um cinema inovador feito por jovens para jovens. Um ladrão de Paris fanático por Humphrey Bogart era subitamente transformado num herói. A delinquência juvenil era subitamente glorificada. A handycam captava as ruas que nenhum estúdio poderia reproduzir. Assim sendo, nascia um novo herói, o anti-herói, levando a sua avante praticando o seu próprio sentido de justiça, num universo que já não era limitado pelos cenários do estúdio, mas onde injecções de realidade eram, pelo menos, muito mais constantes. Obviamente que nem o neo-realismo (tão praticado em Itália no pós-guerra) nem o realismo semi-documental (‘A Batalha de Algiers’ é de 1966) iriam ganhar raízes em Hollywood, mas a meca do cinema conseguiu criar a sua própria versão destas correntes sem denegrir a sua (por vezes debatida) credibilidade.

Por outro lado, nunca a literatura policial tinha sido tão prolífera como nas duas décadas anteriores, provavelmente consequência de fenómenos análogos, que como é sabido penetram muito mais rapidamente na linguagem escrita do que propriamente na sétima arte. Mickey Spillane, Leslie Charteris, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, George Simenon e um pouco mais tarde John LeCarré ou Ian Flemming criaram uma onda noir de literatura policial de bolso que deixou infinito material cinematográfico que viria a ser muito útil quando o momento do ‘spy-fi’ chegou. Adaptações contemporâneas houve, obviamente, que compensavam o que tinham de retirar em cenas e linguagens explícitas com um maravilhoso estilo visual a preto e branco que marcou uma década. Bogart foi tanto Philip Marlowe como Sam Spade. George Sanders foi o Santo. Os filmes eram intricados exercícios de argumento, mestria cinematográfica e ironia mordaz de duplo significado. Mas nenhum deles tinha o brilho do blockbuster, nem set-pieces de acção de cortar a respiração, nem mulheres de vestidos justos e curtos, nem longos beijos que eram como cenas de sexo para um público resignado ao código de produção que vigorou até à década de 1950. 

Os tornozelos da Joan Crawford levaram homens à perdição nos anos 1930. Os vestidos masculinos da Lauren Bacall na década de 1940 puseram o maior de todos os durões, o Boggie, em sentido. Mas nos anos 1950 já Marylin deixava que o metro lhe levantasse a saia e Bardot dançava como se estivesse possuída pelo diabo. E nos anos 1960… bem, isso é outra história. Ou pré-história, onde a Rachel Welch exibia mais pele do que propriamente as peles que a cobriam. Fonda era Barbarella, Bardot nua na cama pedia-nos para amar as partes do seu corpo, Ann-Margret mostrava-nos as suas pernas em Las Vegas, Ekberg rodopiava na Fontana di Trevi… e as Bond-girls nasceram.

Portanto, analisando todos estes elementos que fervilhavam no início dos anos 1960, é de supor que nada havia na fórmula base do ‘spy-fi’ que não fosse imediatamente atractiva ao público contemporâneo. A um enredo geralmente linear (1) entra agente irreverente, 2) entra vilão que quer dominar o mundo, 3) agente destrói vilão ao fim de duas horas indo para a cama com uma ou duas raparigas bonitas pelo caminho); estava associado um contexto político (a guerra fria, e o invariável vilão do outro lado da Cortina de Ferro), uma abertura sexual à qual os tempos já estavam mais permissivos, sob a forma de uma lindíssima e voluptuosa jovem actriz, e uma quantidade de engenhocas inventivas e altamente explosivas. Estas agora fazem-nos esboçar alguns sorrisos, mas temos que nos lembrar que ainda não se tinha ido à Lua, e que ainda não se estava muito distante dos clássicos kitsch da ficção científica dos anos 50, onde o Robô Roby ou o Robô Gort eram os Gollums e o Avatares.

A 5 de Outubro de 1962, o público pode ver (quase) pela primeira vez um agente secreto chamado James Bond. E tudo mudou na forma de fazer espionagem cinematográfica. E tudo mudou na forma de retratar agentes e heróis. Tudo mudou na acção, na espectacularidade. O ‘spy-fi’ tinha nascido.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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