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Shutter Island

Ano: 2010

Realizador: Martin Scorsese

Actores principais: Leonardo DiCaprio, Ben Kingsley, Mark Ruffalo

Duração: 138 min

Crítica: Esta semana vi ‘Shutter Island’ pela segunda vez na minha vida. A primeira foi há oito anos, quando o filme estreou no cinema, em circunstâncias muito peculiares que já resumi na minha crónica ‘O Clube dos Cinéfilos Viajantes - A volta ao Mundo em salas de cinema’. Vi o filme numa enorme sala de cinema em Edimburgo na Escócia, numa manhã de domingo quando tinha umas horas para matar antes de apanhar um comboio. Se por um lado foi uma experiência angustiante, principalmente no início (porque, como já relatei mais a fundo, experienciei mais de 45 minutos de trailers e publicidade!), por outro foi uma experiência surpreendente. Sim, surpreendente, porque gostei muito do filme, algo que sinceramente não achei que iria acontecer.

Talvez esteja a cometer um sacrilégio perante o leitor se disser que nunca fui grande fã de Martin Scorsese. Para mim é um pouco como Francis Ford Coppola. Não os posso apelidar de génios porque já fizeram tantos ou mais filmes maus (ou pelo menos que não gostei nada) do que aqueles que apelido sem vergonha nenhuma de obras primas. Realizadores americanos como Steven Spielberg, Clint Eastwood ou Woody Allen podem fazer filmes mais ou menos conseguidos, mas têm todos um incrível selo de qualidade. Nunca nenhum fez filmes intragáveis como ‘New York, New York’ (1977) ou ‘Hugo’ (2011), nem filmes que se admite que tiveram um importante significado cultural na altura do seu lançamento mas que, se formos honestos e virmos para lá da lenda mediática e de uma ou outra cena que toda a gente sabe citar, se tornaram algo datados e inconsequentes (sim, estou a falar de ‘Taxi Driver’). E a maioria dos fãs fingiu que não viu alguns dos seus grandes fiascos nos anos 1980 e 1990; fizeram de conta que não existiram para não manchar a ilusão dessa tal lenda mediática que Scorsese acalenta desde os anos 1970. Idem aspas aspas para Coppola.

"Provavelmente, ‘Shutter Island’ é o melhor filme de Scorsese, porque é um filme que vale por si próprio. Não precisa dos típicos excessos de Scorsese (asneiras, violência, vícios) para seduzir, para ser apelativo, para ser eficaz. (...) Mas é muito mais cinema porque tem a tal intimidade que na minha opinião sempre faltou às grandes obras de Scorsese. As personagens cativam pelo que são, não pelo que simbolizam. E o argumento (...) é um trabalho de classe."

Para mim o grande filme de Scorsese sempre havia sido ‘Goodfellas’ (1990), mais pela sua virtuosa dinâmica cinematográfica do que propriamente pelo seu conteúdo. Aliás, esse é para mim o segredo do sucesso de Scorsese, a forma como ele oferece ao espectador algo que satisfaz os seus desejos pecaminosos; a mórbida paixão de ver violência, sexo ou excessos (drogas e crime) no grande ecrã; e os consegue misturar com a arte de fazer bom cinema a nível técnico. Mas é a mistura destes dois elementos suficiente para fazer um bom filme? Pessoalmente nunca achei que sim. Um filme não vale por uma cena altamente citável, ou por um bailado de violência. O próprio ‘Goofellas’ existe nesta dualidade mas não tem uma pinga de intimidade. E de que vale um filme sem intimidade, a não ser que seja uma acéfala comédia ou um filme explosivo de acção?

Depois de uma época mais recatada, Scorsese voltou às boas graças dos críticos e atingiu novos picos de popularidade nos anos 2000 com a sua bem-sucedida série de colaborações com Leonardo DiCaprio. É inegável que foi ele quem ajudou DiCaprio a tornar-se no grande actor que é hoje (embora para mim o filme de viragem definitiva tenha sido ‘Blood Diamond’, 2006, de Edward Zwick) mas os filmes, pelo menos na minha perspectiva, nunca se soltaram do típico marasmo Scorsese. ‘Gangs of New York’ (2002), ‘The Aviator’ (2004) e ‘The Departed’ (2006), são virtuosos trabalhos cenográficos ao qual falta conteúdo para lá da apelativa estética. Se o primeiro ainda é o mais bem conseguido (e Daniel Day Lewis está brutal), o segundo é um "digno" precursor de ‘Hugo’: fogo de vista e adulteração histórica para satisfazer o comercialismo da lenda, uma novela requintada que não deixa de ser uma novela. Foi apenas aplaudido só porque é de Scorsese. Idem para ‘The Departed’. Depois de ter perdido o Óscar por ‘The Aviator’ qualquer conhecedor ficou seguro que Scorsese iria ganhar o prémio pelo seu filme seguinte, qualquer que ele fosse.  Nem a própria Academia fez segredo disso. Lembra-se quem apresentou o prémio de Melhor Realizador nesse ano, caro leitor? De forma inédita foi apresentado por três pessoas, curiosamente (ou não) os três grandes amigos de Scorsese da geração dos anos 1970: Steven Spielberg, George Lucas e Francis Coppola. Em doze anos desde então nunca mais se voltou a apresentar esta categoria desta forma. Como se eles não soubessem quem iria ganhar…

Enfim, teorias da conspiração à parte, é preciso dar crédito onde o crédito é devido. Nunca gostei muito de Scorsese, e não gostei muito dos seus filmes da década de 2000, particularmente ‘The Aviator’. Portanto cheguei a ‘Shutter Island’ sem qualquer perspectiva. Isso é bom, porque se pode ver um filme relaxado, desfrutando do que surge no ecrã sem qualquer preconceito, a favor ou contra. E o que surgiu no ecrã eu desfrutei, quer há oito anos quer agora. Provavelmente, ‘Shutter Island’ é o melhor filme de Scorsese, porque é um filme que vale por si próprio. Não precisa dos típicos excessos de Scorsese (asneiras, violência, vícios) para seduzir, para ser apelativo, para ser eficaz. Não precisa de ter aquelas frases que ficam bem num poster de um quarto de um jovem, nem é um hino à rebeldia ou à violência. Mas é muito mais cinema porque tem a tal intimidade que na minha opinião sempre faltou às grandes obras de Scorsese. As personagens cativam pelo que são, não pelo que simbolizam. E o argumento, baseado no romance de Dennis Lehane (o mesmo escritor dos romances ‘Mystic River’ ou ‘Gone Baby Gone’), é um trabalho de classe.

"Subtilmente (muito mais subtilmente que outros filmes de Scorsese) o filme joga com o conhecimento que o espectador tem das convenções do género e com a forma como é suposto reagir a elas. De forma puramente cinematográfica, este é um filme cheio de planos de câmara oblíquos, cenas que aparentam começar a meio e música tensa, reminiscente de Bernard Herrmann, que surge de forma acutilante a um volume alto em momentos chave da trama."

A acção passa-se em 1954. Dois agentes federais, Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio; talvez não a sua melhor interpretação embora a sua ‘paranóia’ seja convincente), e Chuck Aule (Mark Ruffalo, num papel meramente reactivo), chegam à praticamente inacessível ilha de Shutter Island, ao largo de Boston. A ilha detém em exclusivo um Hospital psiquiátrico para criminosos, gerido pelo suave Dr. Cawley (Ben Kingsley) e o convencido e perspicaz médico alemão, quiçá ex-nazi, Dr. Naehring (Max von Sydow num papel que faz de olhos fechados). O próprio Teddy foi soldado na Segunda Guerra Mundial, e esteve presente na libertação de campos de concentração. As imagens fatídicas desse dia ainda o atormentam, mas cedo descobrimos que não é a única coisa. Visões da sua falecida esposa Dolores (Michelle Williams) surgem-lhe em flashbacks intermitentes, tal como frases desgarradas de outros eventos que vamos reconstituindo aos poucos.

Os dois agentes foram chamados à ilha para investigar o misterioso desaparecimento de uma paciente chamada Rachel, que aparentemente havia assassinado os seus filhos. Mas rapidamente nos apercebemos que nem tudo o que parece é. Parece haver uma natural relutância por parte dos chefes do Hospital e muitas incongruências por explicar. Aos poucos, o próprio Teddy confessa a Chuck que a sua presença ali não é fruto do acaso. Há anos que anda a investigar o Hospital, porque acredita que se passa ali qualquer tipo de conspiração, uma ideia que lhe foi passada por um antigo paciente (Jackie Earle Haley tem apenas uma única cena mas é tão impactante como de costume). Quem é o misterioso paciente nº 67 que não consta dos registos? Estará algures na ilha Andrew Laeddis, o homem que supostamente matou a esposa de Teddy? Onde está Rachel?  E o que se passa no remoto farol? Experiências ao cérebro? Lobotomias para silenciar supostos pacientes que sabem de mais? Ou há algo de mais profundo, uma enorme conspiração de proporções inimagináveis?

Como não pode escapar (o ferry é a única possibilidade e só chega no dia seguinte), Teddy tem de tentar descobrir os segredos da ilha, manobrando-se destramente por entre os olhos que controlam os seus movimentos, ao mesmo tempo que tem de resolver os segredos dentro de si próprio. Aos poucos, estas duas realidades começam a unir-se. Então Chuck desaparece, e os médicos negam que tal pessoa existiu. E Rachel, ou pelo menos alguém que diz chamar-se Rachel, reaparece. Qual é o segredo de Shutter Island e qual é o papel de Teddy, cada vez mais paranóico, no meio desta “conspiração”?

"O grande feito deste thriller psicológico é que não é injusto com o espectador (...) Este sabe que está a ser propositadamente desorientado e desencaminhado pelos artifícios cinematográficos (...) É importante que o twist nos deixe de boca aberta, mas não é o mais importante. ‘Shutter Island’ até se dá ao luxo de ser um pouco displicente, (...) porque sabe que o mais importante é a viagem que nos leva até lá. E esta viagem vale a pena ser percorrida."

Logo depois do enquadramento, não é surpresa nenhuma para o espectador que ‘Shutter Island’ é um filme de verdades escondidas. Os planos iniciais de Teddy e Chuck a chegarem no barco ou os flashbacks estão imbuídos de uma estranha artificialidade que mais enfatiza a ilusão, que pode estar a ser criada na ilha em prol de Teddy, mas que também está, obviamente, a ser criada em prol do espectador. Scorsese, que sempre se rodeou de grandes editores e directores de fotografia, cria propositadamente este ambiente com uma enorme segurança, de novo sem necessitar de artifícios externos (salvo um ou outro exagero em termos de “visões”) para ser eficaz. Subtilmente (muito mais subtilmente que outros filmes de Scorsese) o filme joga com o conhecimento que o espectador tem das convenções do género e com a forma como é suposto reagir a elas. De forma puramente cinematográfica, este é um filme cheio de planos de câmara oblíquos, cenas que aparentam começar a meio (como é que uma personagem conseguiu passar do ponto A para o ponto B?) e música tensa, reminiscente de Bernard Herrmann, que surge de forma acutilante a um volume alto em momentos chave da trama.

Mas o grande feito deste thriller psicológico é que não é injusto com o espectador, como acontece noutros filmes de Scorsese. Não é um filme pedante e superior que trata o espectador de forma condescendente. Não é um filme que engana o espectador com pistas falsas, argumentais ou visuais. Não é um filme que obriga o espectador a ter determinadas reacções como se fosse um animal amestrado. O espectador sabe que está a ser propositadamente desorientado e desencaminhado pelos artifícios cinematográficos, tal como Teddy sabe que está a ser propositadamente desorientado e desencaminhado pelos artifícios da ilha. O próprio segredo final acaba por não ser assim tão secreto à medida que a trama avança, porque o realizador envolve-nos na sua teia e dá-nos pistas suficientes para descobrirmos aos poucos a verdade. Mas isso é diferente de ser previsível. Como todos os grandes thrillers psicológico, é importante que o twist nos deixe de boca aberta, mas não é o mais importante. ‘Shutter Island’ até se dá ao luxo de ser um pouco displicente, talvez revelando em demasia antes do grande discurso final, porque sabe que o mais importante é a viagem que nos leva até lá. E a viagem de ‘Shutter Island’ vale a pena ser percorrida.

‘Shutter Island’ é um daqueles filmes que se tem vontade de rever no segundo em que rolam os créditos finais. Uma vez descoberta toda a verdade, o espectador só quer chegar a bobina atrás para revisitar todas as cenas e notar todos os pormenores à luz da solução final. Mas mesmo na primeira visualização é um filme surpreendente. Parece o oposto do mais clássico Scorsese, mas com toda a sua segurança cénica. O passo é lento e cauteloso, e a própria revelação demora o seu tempo, dando ao espectador espaço suficiente para ponderar as suas implicações. Os flashes de intensidade não vêm propriamente da história de base ou dos eventos, mas sim da exímia dinâmica das personagens e das actuações excitantes. Não diria tanto de DiCaprio (que sente o peso da sua personagem), mas de todos os secundários que o rodeiam.

"Parece o oposto do mais clássico Scorsese, mas com toda a sua segurança cénica. O passo é lento e cauteloso, e a própria revelação demora o seu tempo, dando ao espectador espaço suficiente para ponderar as suas implicações. Os flashes de intensidade não vêm propriamente da história de base ou dos eventos, mas sim da exímia dinâmica das personagens e das actuações excitantes."

Não seria, contudo, um filme de Scorsese se a emotividade final não estivesse um nada exagerada. Há uma excessiva ênfase no momento dramático final, não só (parece) para o tornar mais credível, como para capitalizar no seu impacto. Um filme com esta classe não precisava disso, gerando assim aquele que é para mim o momento menos conseguido, que mais destoa nesta obra. Mesmo assim, o filme é rápido a contrabalançar. A última sequência, particularmente a última frase de diálogo que estabelece o futuro das personagens, é fantástica. É daquelas icónicas frases finais que facilmente passam para a posteridade, não pela mestria da frase em si (também o que há de extraordinário num “Here’s looking at you, kid”?!), mas pelo que ela representa no xadrez fílmico e psicológico que Scorsese montou. São frases destas que nos levam a reconsiderar tudo o que ouvimos, tudo o que vimos, tudo o que sentimos. São frases destas que nos ligam ao cinema.

Como disse no início, apesar de reconhecer a mestria de Scorsese, nunca gostei muito dos seus produtos finais. Mas admiro imenso o seu trabalho em ‘Shutter Island’. Não é certamente o filme com o melhor dos twists. Nem é certamente o melhor thriller psicológico da década. Mas é um filme que sabe o que quer e atinge-o com uma incrível segurança cinematográfica. Arrisca que o espectador se sentirá seduzido pela ilusão e aceita jogar o jogo, mesmo sabendo que é uma ilusão. E arrisca bem. É uma aposta ganha, o que ajuda a compreender e aceitar as propositadas falhas estruturais que o filme aparenta conter, bem como a sua variabilidade emocional. Acima de tudo, ‘Shutter Island’ é sobre a viagem de um homem. Apesar do seu “segredo” e dos seus artifícios visuais (as visões, os flashbacks, os esporádicos sustos, os esporádicos momentos de acção), ‘Shutter Island’ nunca perde esse foco basilar, numa perde essa “intimidade”. Para mim, é o que faz a diferença. 

"É um filme que sabe o que quer e atinge-o com uma incrível segurança. Arrisca que o espectador se sentirá seduzido pela ilusão e aceita jogar o jogo, mesmo sabendo que é uma ilusão. É uma aposta ganha, o que ajuda a aceitar as propositadas falhas estruturais que o filme aparenta conter (...). Acima de tudo, é sobre a viagem de um homem. Apesar do seu “segredo” e dos seus artifícios visuais (...), nunca perde essa “intimidade”."

Não me parece então de espantar que tenha sido o maior sucesso comercial de Scorsese na América e o seu filme mais rentável até ‘Wolf of Wall Street’ (2013). Contudo, é inacreditável que não tenha sido nomeado para um único Óscar, o que só prova o quão política e comercial é a cerimónia. A estreia do filme foi adiada do final do ano de 2009 para Fevereiro de 2010 – a época morta – porque o estúdio Paramount já não tinha mais orçamento para promover o filme na “award season”, visto que já estava a “impingir” nesse ano ‘Up in the Air’ (2009) e ‘The Lovely Bones’ (2009). E claro, um ano depois, já ninguém se lembra de nomear um filme de Fevereiro, por melhor que seja. Simplesmente não é prática corrente. Considerando que o filme seguinte de Scorsese‘Hugo’, foi nomeado para 11 Óscares e ganhou 5… bem, enfim, um cinéfilo só pode abanar a cabeça. São coisas como esta que certamente impediram Scorsese de fazer mais filmes como ‘Shutter Island’. O que é uma enorme pena, pelo menos na minha perspectiva. Não vi melhor filme de Scorsese desde então.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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