Como muitas pessoas por esse mundo fora, pouco mais tinha que 11 ou 12 anos de idade quando criei uma paixão pelos livros de Agatha Christie. Aliás, para um jovem que não tinha grandes hábitos de leitura (havia o cinema, certo?!), Agatha Christie, que os meus pais me deram a ler numas férias de Verão quaisquer, foi o ponto de partida para a descoberta dessa coisa magnífica que se chama ‘ler’, e naturalmente, anos depois, para essa coisa ainda mais magnífica chamada ‘escrever’.
Anos antes de assentar nos meus escritores favoritos, Shakespeare, H.G. Wells, Charles Dickens, Edgar Allen Poe (sim, tenho uma queda para o século XIX anglo-saxónico) e nos restantes mestres do policial/espionagem (Flemming, Charteris,…), houve quase somente Agatha. E mesmo depois de ter começado a ler outros escritores mantive sempre Agatha por perto. Tanto que pouco mais tinha que 20 anos de idade quando cheguei ao final dos seus mais de 80 livros, duas autobiografias e variadas peças de teatro. Ali permanecem até hoje, na estante, e de vez em quando, quando sinto vontade (geralmente nas férias), tiro um livro e releio-o.
Muito naturalmente, um apaixonado por cinema cedo procurou todas as adaptações da obra de Agatha Christie, que foram uma constante ao longo das décadas. É só relembrar, por exemplo, os filmes de Poirot da década de 1930; as múltiplas adaptações de ‘Ten Little Niggers’ (1945, 1965, 1974); ‘Witness for the Prossecution’ (1957) de Billy Wilder; ou os famosos quatro filmes dos anos 1960 com Margaret Rutherford a interpretar Miss Marple (os únicos, diz-se, de que a própria Christie gostava).
Mas foi só depois da sua morte em 1976 que o cinema e a televisão realmente começaram a explorar mais a fundo as obras de Christie. Os produtores Richard B. Goodwin e John Brabourne continuaram o sucesso do seu soberbo ‘Murder on the Orient Express’ (1974), com mais três adaptações; ‘Death on the Nile’ (1978) e ‘Evil Under the Sun’ (1982) com Peter Ustinov (aquelas com as quais cresci), e ‘The Mirror Crack’d’ (1980) com Angela Lansbury como Miss Marple, um papel que antecipa a sua Jessica Fletcher da mega-popular série 'Murder, She Wrote' (1984-1996).
Se estes filmes representam a época dourada do cinema christiniano, como all-star casts e imenso glamour, nas últimas duas décadas o interesse por este tipo de dramas cinematográficos pareceu ter-se eclipsado. Foi a televisão que tomou a deixa nos anos 1990 e 2000, com as longuíssimas séries de Poirot com David Suchet (13 temporadas ao longo de 25 anos!) e Miss Marple (6 temporadas).
Mas desde sempre que as temáticas no cinema seguem uma lógica cíclica. Há pouco tempo, foi anunciado que primeiro Angelina Jolie e depois, em sua substituição, Kenneth Branagh, estavam a trabalhar num remake de ‘Murder on the Orient Express’, que estreará já este Natal. E logo depois Ben Affleck ficou associado a um remake de ‘Witness for the Prossecution’, com data marcada para 2019. Com o término da mítica série de Poirot em 2013, e nesta onda revivalista, os ingleses fizeram recentemente mini-séries de ‘Ten Little Niggers’ (usando o nome americano ‘And Then There Were None’), e ‘Partners in Crime’, baseado nas histórias de outras personagens interessantes de Christie, mas até hoje poucas vezes consideradas para o cinema, Tommy e Tuppence.
Espero seriamente que este renovado interesse de Hollywood pelas obras de Agatha Christie leve a uma nova era dourada (duvido, mas a esperança é a última a morrer). Portanto, enquanto aguardamos pacientemente até Dezembro pelo regresso de Poirot ao grande ecrã, é bom recordarmos os grandes Poirots da história da sétima arte. Poirot, Hercule Poirot, o ex-policia belga que aquando da Primeira Grande Guerra teve de se refugiar em Inglaterra e que passou o resto da sua longa reforma (até ao final da década de 1960!) a resolver mistérios. Poirot, Hercule Poirot, o cabeça de ovo excêntrico que dependia da ordem, do método e das suas "little grey cells". Poirot, Hercule Poirot, que foi personagem de 33 romances, uma peça de teatro original (mais várias peças adaptadas dos romances) e mais de 50 contos, publicados entre 1920 e 1975. Poirot, Hercule Poirot, cujos romances foram recentemente nomeados pela World Mystery Convention como a Melhor Série Policial do Século XX. Poirot, Hercule Poirot, que de 1931 em diante foi objecto de algumas memoráveis (e outras assim não tão memoráveis) interpretações no grande ecrã.
Estamos num countdown até Dezembro e aí, veremos como Branagh se comporta face a este legado; de Christie, de Poirot e dos actores que o interpretaram.
Outsiders: Tony Randall, Ian Holm e Alfred Molina (1 vez Poirot cada)
Não houve assim tantos Poirots na história da sétima arte quanto se possa pensar. Na realidade, a maior parte surgiram como episódicas interpretações de comédia (Andrew Sachs, o eterno Manuel de 'Fawlty Towers', e Hugh Laurie já brincaram com o estereótipo do detective belga, por exemplo), ou em isolados especiais televisivos.
Antes de entrar na cronologia dos grandes Poirots da sétima arte, menciono três, digamos, outsiders. Ó mítico cómico Tony Randall interpretou uma versão mais humorística (mas admita-se bem trabalhada) de Poirot no clássico 'The Alphabet Murders' de 1965. Destaque para a cena (que partilho) em que Margret Rutherford, então extremamente famosa pela sua Miss Marple, tem uma breve aparição.
Ian Holm é um fortemente maquilhado Poirot, fruto da imaginação da própria Agatha Christie (Peggy Ashcroft) num pequeno telefilme de uma hora chamado 'Murder by the Book' (1987), que retrata a sua luta interior por publicar o manuscrito de 'Curtain', o livro em que ela finalmente o mata. Holm, fiel ao seu eu e na senda de Albert Finney (ver em baixo), é um Poirot mais ofensivo, mais viperino, muito mais íntimo; uma personalidade mais do que um estereótipo - e tem uma enorme química com Ashcroft. O telefilme pode ser encontrado na íntegra no Youtube.
Por fim, Alfred Molina foi Poirot num inexplicável telefilme: 'Murder on the Orient Express' (2001). Inexplicável porque por esta altura David Suchet estava certo e seguro a fazer as suas adaptações (a deste livro surgiria em 2006). E inexplicável porque Molina, inglês mas filho de pai espanhol e mãe italiana, desfila com o seu porte e placidez habituais, não se parecendo nada com Poirot, num telefilme que ainda por cima o coloca na era moderna (Poirot a ver vídeos num portátil?!). Confesso que nunca vi este telefilme na íntegra, nem quero ver. As críticas são unânimes, salientando a péssima qualidade, a todos os níveis, desta versão...
Austin Trevor (3 vezes Poirot) (1931-1934)
Austin Trevor foi o primeiro Poirot da história da sétima arte. Interpretou-o três vezes, em 'Alibi ' (1931), 'Black Coffee' (1931) e em 'Lord Edgware Dies' (1934). Numa entrevista mais tarde brincou que só foi escolhido para o papel porque sabia falar com um sotaque francês.
Não há muita documentação sobre esta interpretação. Aliás, não consegui encontrar nenhum clip no Youtube e lamento dizer ao leitor que não vi um único destes três filmes, embora conheça bem o trabalho de Trever em muitos clássicos do cinema britânico como 'Goodbye Mr. Chips' (1939), 'Night Train to Munich' (1940) ou 'The Red Shoes' (1949). De facto, o fraco sucesso comercial destes três filmes de 75 minutos ditou o final da planeada série de filmes, e passar-se-iam quase trinta anos até Poirot regressar ao grande ecrã pela mão de Tony Randall em 'The Alphabet Murders' (1965). Curiosamente, Trevor teria um pequeno papel nesse filme. Uma homenagem talvez...
Não há muita documentação sobre esta interpretação. Aliás, não consegui encontrar nenhum clip no Youtube e lamento dizer ao leitor que não vi um único destes três filmes, embora conheça bem o trabalho de Trever em muitos clássicos do cinema britânico como 'Goodbye Mr. Chips' (1939), 'Night Train to Munich' (1940) ou 'The Red Shoes' (1949). De facto, o fraco sucesso comercial destes três filmes de 75 minutos ditou o final da planeada série de filmes, e passar-se-iam quase trinta anos até Poirot regressar ao grande ecrã pela mão de Tony Randall em 'The Alphabet Murders' (1965). Curiosamente, Trevor teria um pequeno papel nesse filme. Uma homenagem talvez...
Albert Finney (1 vez Poirot) (1974)
Não há qualquer dúvida na minha cabeça. Albert Finney foi e é o melhor Poirot da história da sétima arte. Feito dois anos antes da morte de Christie, 'Murder on the Orient Express' (1974) é uma gigantesca homenagem ao seu legado, e é a primeira das quatro adaptações que os produtores Richard B. Goodwin e John Brabourne fariam ao longo da década seguinte.
Realizado por Sidney Lumet, o filme é brilhante, dividido entre um tom ilusório (exacerbado pela propositadamente luminosa fotografia; enfatizando a teatralidade dos eventos e o exagero surreal das actuações); e, quase paradoxalmente, uma incrível e incisiva naturalidade. Mas é Finney, na sua única interpretação do papel, que consegue, praticamente sozinho, fazer com que este contraste funcione e, como consequência, também o filme.
O líder da geração dos 'angry young men' do cinema inglês dos anos 1960, Finney já era famoso pela sua profunda e gutural imersão nos papéis que interpretava. À primeira vista parecia uma escolha totalmente descabida para Poirot, mas com 6 horas de maquilhagem em cima, e com uma energia ímpar, ele tornou-se Poirot, de corpo e alma. Qual method acting. Qual Rober DeNiro. Finney é absolutamente soberbo, electrizando o ecrã com um magnetismo que nenhum outro Poirot alguma vez teve e, duvida-se, terá.
Finney é exímio a salientar subtilmente todas as excentricidades da sua personagem. É o único Poirot que tem realmente a "cabeça de ovo" que Christie descreve. A forma como anda, como come ou como se veste são absolutamente divinais. Veja-se a cena em que se prepara para dormir. Tão simples, a pôr o creme nas mãos e no bigode, mas ao mesmo tempo tão profunda. Nenhum actor a interpretar seriamente Poirot ousou ir tão longe, nem tão próximo de Christie, provavelmente com medo de cair na caricatura. Mas porque Finney consegue ir ao limite sem quebrar, a sua actuação torna-se uma experiência única.
Ao mesmo tempo, tem um brilho felino no olhar que falta a todos os outros Poirots (é a notória falta de Suchet), que dá ambiguidade ao seu papel. Mas acima de tudo é a energia que possui que a torna infinitamente carismática. Finney é um dínamo que conduz o filme; uma vibrante tour de force que prende o espectador a cada palavra, a cada sílaba, a cada inflexão da sua voz, a cada subtil artimanha dos seus interrogatórios. Veja o filme com atenção, caro leitor. A presença de Finney é tão forte, tão omnipresente, que Lumet até se dá ao luxo de o filmar de costas em inúmeros longos planos, enquanto interroga o suspeito que é focado. Mesmo sem lhe vermos a cara, sentimos o poder da sua presença e das suas palavras, e vemos a sua influência reflectida no actor à sua frente. O filme está todo estruturado para exacerbar este seu poder, o que é ainda mais extraordinário.
Finney é o único actor a ser nomeado para um Óscar por interpretar Poirot. A sua derrota (para Art Carney no filme 'Harry and Tonto') constitui para mim a maior injustiça da história da Academia no que concerne categorias de actuação. Esta não é só a melhor interpretação de Poirot de sempre. É uma das melhores, senão a melhor, interpretação de um actor num filme de sempre (sim, estou consciente do que estou a dizer!). É pena, grande pena, que tenha recusado continuar o papel. As razões que deu foram duas: o longo processo de maquilhagem e o desconforto e calor que sentia uma vez esse processo completo. E isto era algo pelo qual não estava disposto a passar nas altas temperaturas do Egipto, onde o próximo filme seria filmado. Abriu-se assim a porta para Peter Ustinov, que curiosamente não passou por nenhum processo semelhante de maquilhagem...
Realizado por Sidney Lumet, o filme é brilhante, dividido entre um tom ilusório (exacerbado pela propositadamente luminosa fotografia; enfatizando a teatralidade dos eventos e o exagero surreal das actuações); e, quase paradoxalmente, uma incrível e incisiva naturalidade. Mas é Finney, na sua única interpretação do papel, que consegue, praticamente sozinho, fazer com que este contraste funcione e, como consequência, também o filme.
O líder da geração dos 'angry young men' do cinema inglês dos anos 1960, Finney já era famoso pela sua profunda e gutural imersão nos papéis que interpretava. À primeira vista parecia uma escolha totalmente descabida para Poirot, mas com 6 horas de maquilhagem em cima, e com uma energia ímpar, ele tornou-se Poirot, de corpo e alma. Qual method acting. Qual Rober DeNiro. Finney é absolutamente soberbo, electrizando o ecrã com um magnetismo que nenhum outro Poirot alguma vez teve e, duvida-se, terá.
Finney é exímio a salientar subtilmente todas as excentricidades da sua personagem. É o único Poirot que tem realmente a "cabeça de ovo" que Christie descreve. A forma como anda, como come ou como se veste são absolutamente divinais. Veja-se a cena em que se prepara para dormir. Tão simples, a pôr o creme nas mãos e no bigode, mas ao mesmo tempo tão profunda. Nenhum actor a interpretar seriamente Poirot ousou ir tão longe, nem tão próximo de Christie, provavelmente com medo de cair na caricatura. Mas porque Finney consegue ir ao limite sem quebrar, a sua actuação torna-se uma experiência única.
Ao mesmo tempo, tem um brilho felino no olhar que falta a todos os outros Poirots (é a notória falta de Suchet), que dá ambiguidade ao seu papel. Mas acima de tudo é a energia que possui que a torna infinitamente carismática. Finney é um dínamo que conduz o filme; uma vibrante tour de force que prende o espectador a cada palavra, a cada sílaba, a cada inflexão da sua voz, a cada subtil artimanha dos seus interrogatórios. Veja o filme com atenção, caro leitor. A presença de Finney é tão forte, tão omnipresente, que Lumet até se dá ao luxo de o filmar de costas em inúmeros longos planos, enquanto interroga o suspeito que é focado. Mesmo sem lhe vermos a cara, sentimos o poder da sua presença e das suas palavras, e vemos a sua influência reflectida no actor à sua frente. O filme está todo estruturado para exacerbar este seu poder, o que é ainda mais extraordinário.
Finney é o único actor a ser nomeado para um Óscar por interpretar Poirot. A sua derrota (para Art Carney no filme 'Harry and Tonto') constitui para mim a maior injustiça da história da Academia no que concerne categorias de actuação. Esta não é só a melhor interpretação de Poirot de sempre. É uma das melhores, senão a melhor, interpretação de um actor num filme de sempre (sim, estou consciente do que estou a dizer!). É pena, grande pena, que tenha recusado continuar o papel. As razões que deu foram duas: o longo processo de maquilhagem e o desconforto e calor que sentia uma vez esse processo completo. E isto era algo pelo qual não estava disposto a passar nas altas temperaturas do Egipto, onde o próximo filme seria filmado. Abriu-se assim a porta para Peter Ustinov, que curiosamente não passou por nenhum processo semelhante de maquilhagem...
Peter Ustinov (6 vezes Poirot) (1978-1988)
Este é um Poirot que recordo com muito carinho, não só porque sempre gostei de Peter Ustinov, mas principalmente porque este foi o Poirot com o qual cresci, visto que dominou os anos 1980. Contudo, deste então já quebrei um pouco a ilusão que formei na minha infância e pré-adolescência.
A primeira aparição de Ustinov como o detective belga deu-se em 1978, no clássico 'Death on the Nile', motivada pela recusa de Albert Finney de dar continuidade ao papel. Como disse, Finney detestou principalmente as 6 horas diárias de maquilhagem necessárias para o transformar em Poirot, mas Ustinov nunca teve esse problema. De facto, a sua interpretação está muito mais próxima da sua própria persona cinematográfica do que das descrições de Christie. Reza a lenda que a filha de Christie, Rosalind Hicks, exclamou nos primeiros dias de filmagem "Poirot não é nada assim!" e que Ustinov respondeu "Pois agora é!".
As diferenças entre a interpretação massiva de Finney e a de Ustinov são claras. Finney era muito mais exuberante e excêntrico, mas tinha tacto e era muito mais subtil e consciente a investigar e a deduzir. Ustinov é muito mais contido na sua actuação, num tom que lentamente resvalaria para o semi-cómico e o cliché de si próprio (a cena em que vai a banhos no segundo filme 'Evil Under the Sun', 1982, é absolutamente hilariante), mas estranhamente é muito mais incisivo e mesquinho a investigar.
Este é um Poirot que tem atitudes que o do livro nunca teria, dividido inconstantemente entre ser uma espécie de avozinho patusco (uma veia que ficaria mais proeminente nos filmes finais) e um algo arrogante e egocêntrico detective cuja constante desconfiança de tudo e todos (supõe-se que para iludir o espectador com pistas falsas) nunca cai muito bem porque soa sempre forçada. Este é um Poirot mais urbano, "das massas", carismático à sua maneira é certo (não fosse Ustinov um excelente e divertido actor), mas sem a classe nem a cultura da maior parte das restantes interpretações deste papel.
Mas nos primeiros dois filmes perdoamos totalmente a ofensa. E perdoamos porque, não sendo bem policiais nem contendo grandes mistérios, conseguimos desfrutar imenso deles já que têm, no global, uma enorme classe. São principalmente espectáculos exuberantes para um público familiar, com elencos de luxo, localizações soberbas e ambientes fabulosos, e isso, é preciso dizer, também conta (daí terem-me apelado tanto na infância).
Infelizmente, essa magia cinematográfica foi-se perdendo. Seguiram-se três telefilmes rotineiros, 'Thirteen at Dinner (1985) - nota para a aparição de David Suchet como o Inspector Japp; 'Dead Man's Folly' (1986) e Murder in Three Acts (1986), e por fim mais um filme lançado no grande ecrã: 'Appointment with Death' (1988), claramente uma última tentativa, sem sucesso, de recaptar a chama de humor e classe de outrora. O argumento é fraco e os fãs de Ustinov certamente comover-se-ão, ao constatar o quão velho e cansado está. Há momentos em que nem acerta com o sotaque de Poirot, parecendo mais alemão do que francês. É pena. Foi uma saída pela porta pequena de um grande actor que chegou a ter excelentes momentos como Poirot, principalmente em 'Death on the Nile', o meu favorito dos seus seis.
A primeira aparição de Ustinov como o detective belga deu-se em 1978, no clássico 'Death on the Nile', motivada pela recusa de Albert Finney de dar continuidade ao papel. Como disse, Finney detestou principalmente as 6 horas diárias de maquilhagem necessárias para o transformar em Poirot, mas Ustinov nunca teve esse problema. De facto, a sua interpretação está muito mais próxima da sua própria persona cinematográfica do que das descrições de Christie. Reza a lenda que a filha de Christie, Rosalind Hicks, exclamou nos primeiros dias de filmagem "Poirot não é nada assim!" e que Ustinov respondeu "Pois agora é!".
As diferenças entre a interpretação massiva de Finney e a de Ustinov são claras. Finney era muito mais exuberante e excêntrico, mas tinha tacto e era muito mais subtil e consciente a investigar e a deduzir. Ustinov é muito mais contido na sua actuação, num tom que lentamente resvalaria para o semi-cómico e o cliché de si próprio (a cena em que vai a banhos no segundo filme 'Evil Under the Sun', 1982, é absolutamente hilariante), mas estranhamente é muito mais incisivo e mesquinho a investigar.
Este é um Poirot que tem atitudes que o do livro nunca teria, dividido inconstantemente entre ser uma espécie de avozinho patusco (uma veia que ficaria mais proeminente nos filmes finais) e um algo arrogante e egocêntrico detective cuja constante desconfiança de tudo e todos (supõe-se que para iludir o espectador com pistas falsas) nunca cai muito bem porque soa sempre forçada. Este é um Poirot mais urbano, "das massas", carismático à sua maneira é certo (não fosse Ustinov um excelente e divertido actor), mas sem a classe nem a cultura da maior parte das restantes interpretações deste papel.
Mas nos primeiros dois filmes perdoamos totalmente a ofensa. E perdoamos porque, não sendo bem policiais nem contendo grandes mistérios, conseguimos desfrutar imenso deles já que têm, no global, uma enorme classe. São principalmente espectáculos exuberantes para um público familiar, com elencos de luxo, localizações soberbas e ambientes fabulosos, e isso, é preciso dizer, também conta (daí terem-me apelado tanto na infância).
Infelizmente, essa magia cinematográfica foi-se perdendo. Seguiram-se três telefilmes rotineiros, 'Thirteen at Dinner (1985) - nota para a aparição de David Suchet como o Inspector Japp; 'Dead Man's Folly' (1986) e Murder in Three Acts (1986), e por fim mais um filme lançado no grande ecrã: 'Appointment with Death' (1988), claramente uma última tentativa, sem sucesso, de recaptar a chama de humor e classe de outrora. O argumento é fraco e os fãs de Ustinov certamente comover-se-ão, ao constatar o quão velho e cansado está. Há momentos em que nem acerta com o sotaque de Poirot, parecendo mais alemão do que francês. É pena. Foi uma saída pela porta pequena de um grande actor que chegou a ter excelentes momentos como Poirot, principalmente em 'Death on the Nile', o meu favorito dos seus seis.
David Suchet (70 Vezes Poirot) (1989-2013)
Quem sabe mais ou menos quem foi Agatha Christie e teve acesso a uma televisão nos últimos 25 anos, pode não conhecer o nome de David Suchet, mas sem dúvida reconhecerá a sua carinha laroca. Suchet tornou-se um fenómeno mundial no último quarto de século e para muitos é o definitivo Poirot, quando mais não seja pela incrível longevidade da série 'Agatha Christie's Poirot'.
A série foi para o ar em 1989, e não parece haver segredos (pelo menos para mim) que terá sido originada na senda do sucesso dos filmes de Peter Ustinov durante os anos 1980 (o último é precisamente de 1988), bem como da série inglesa 'Miss Marple' com Joan Hickson, que havia começado em 1984 e duraria até 1992.
Mas ninguém estava à espera da massiva popularidade que a série conheceria. Durante os 25 anos que 'Agatha Christie's Poirot' durou, até 2013, o público pediu sempre mais, e a pouco e pouco todos os livros e todos os contos que Agatha Christie alguma vez escreveu com Poirot foram adaptados ao pequeno ecrã. De facto, a série é a mais completa adaptação cinematográfica de um espólio ficcional alguma vez feita. Num total, mais de 70 episódios de 50 minutos ou em formato duplo, constituindo telefilmes de 100 minutos, foram filmados.
E ao centro, David Suchet. O seu Poirot é uma magnífica demonstração de method acting. Ele tornou-se realmente Poirot; um Poirot muito mais suave e requintado que anteriores interpretações de Albert Finney e Peter Ustinov. Mas isso não significa que seja necessariamente melhor. pelo menos para mim. A sua subtileza, calma metódica e um toque de excentricidade cómica (o seu andar, até ao final da série, é absolutamente impagável) ajudaram a construir uma personagem extremamente humana e isso contribuiu imenso para garantir a universalidade da sua interpretação, a enorme empatia do público e a longevidade da série.
Contudo, sempre achei que lhe faltava a garra felina que o Poirot literário tem, e que as suas excentricidades são sempre auto-contidas, ou seja, nunca são desagradáveis para aqueles que o rodeiam. Suchet é um Poirot "inglês" numa série que se desenrola com o ritmo, o tom e o look "britânico". Ou seja, numa série onde o Poirot, por exemplo, de Albert Finney, estaria totalmente fora de contexto. Mas é preciso admitir que Suchet é o Poirot perfeito para o que esta série se tornou. e isso é dizer muito. Um genial actor que para sempre vai ficar associado a este icónico papel que interpretou durante um quarto de século.
A série foi para o ar em 1989, e não parece haver segredos (pelo menos para mim) que terá sido originada na senda do sucesso dos filmes de Peter Ustinov durante os anos 1980 (o último é precisamente de 1988), bem como da série inglesa 'Miss Marple' com Joan Hickson, que havia começado em 1984 e duraria até 1992.
Mas ninguém estava à espera da massiva popularidade que a série conheceria. Durante os 25 anos que 'Agatha Christie's Poirot' durou, até 2013, o público pediu sempre mais, e a pouco e pouco todos os livros e todos os contos que Agatha Christie alguma vez escreveu com Poirot foram adaptados ao pequeno ecrã. De facto, a série é a mais completa adaptação cinematográfica de um espólio ficcional alguma vez feita. Num total, mais de 70 episódios de 50 minutos ou em formato duplo, constituindo telefilmes de 100 minutos, foram filmados.
E ao centro, David Suchet. O seu Poirot é uma magnífica demonstração de method acting. Ele tornou-se realmente Poirot; um Poirot muito mais suave e requintado que anteriores interpretações de Albert Finney e Peter Ustinov. Mas isso não significa que seja necessariamente melhor. pelo menos para mim. A sua subtileza, calma metódica e um toque de excentricidade cómica (o seu andar, até ao final da série, é absolutamente impagável) ajudaram a construir uma personagem extremamente humana e isso contribuiu imenso para garantir a universalidade da sua interpretação, a enorme empatia do público e a longevidade da série.
Contudo, sempre achei que lhe faltava a garra felina que o Poirot literário tem, e que as suas excentricidades são sempre auto-contidas, ou seja, nunca são desagradáveis para aqueles que o rodeiam. Suchet é um Poirot "inglês" numa série que se desenrola com o ritmo, o tom e o look "britânico". Ou seja, numa série onde o Poirot, por exemplo, de Albert Finney, estaria totalmente fora de contexto. Mas é preciso admitir que Suchet é o Poirot perfeito para o que esta série se tornou. e isso é dizer muito. Um genial actor que para sempre vai ficar associado a este icónico papel que interpretou durante um quarto de século.
Kenneth Branagh (1 vez Poirot... até agora) (2017 - ?)
Considerando os últimos três filmes que Branagh realizou: 'Thor' (2011), 'Jack Ryan: Shadow Recruit' (2013) e 'Cinderella' (2015), custa a acreditar que outrora foi o jovem prodígio do teatro shakespeariano inglês. Tal como Orson Welles, Branagh era muito novo (tinha apenas 28 anos) quando decidiu entrar de rompante em Hollywood com o extraordinário 'Henry V' (1989). Durante a minha adolescência nos anos 1990 tornei-me um fã incondicional de Branagh graças a obras-primas como 'Much Ado About Nothing' (1993) ou 'Hamlet' (1996).
Contudo, sempre foi claro que Branagh tem um gosto pelo exagero dramático, tal como tem um gosto enorme por uma boa dose de humor e boa disposição (quem não tem?!). Se conseguiu conter o suficiente estes prazeres nas suas adaptações shakespearianas, a conversa é outra quando começou a entrar cada vez mais em blockbusters de Hollywood, de 'Wild Wild West' (1999) para a frente. Branagh tem desfrutado em demasia dos blockbusters em que entra, em detrimento da sua qualidade, para se divertir e fazer dinheiro para financiar os seus projectos mais artísticos e pessoais, principalmente no teatro. O exemplo de 'Jack Ryan: Shadow Recruit' (2013) é notório. O filme é fraquíssimo, mas Branagh está absolutamente brutal, divertindo-se à grande e à francesa como o vilão russo.
Portanto a questão que se impõe é: irá Branagh optar por uma abordagem mais cinematograficamente coesa, trazendo de volta a chama clássica das suas obras iniciais; ou está aqui apenas para se divertir "à grande e à belga". Com um elenco que inclui Daisy Ridley, Johnny Depp e Josh Gad, infelizmente podemos estar perante a segunda opção. Mas uma coisa para mim parece certa. Do seu Poirot podemos esperar overacting e autoconsciência cómica (é só olhar para aquele bigode... típico exagero ao estilo Branagh!), mas também uma inteligência astuta e marota por detrás do brilho dos seus penetrantes olhos azuis. A sua calma discursiva neste trailer parece situá-lo mais na classe de Suchet do que de Finney, mas Branagh também gosta de nos surpreender quando o assunto é a sua própria interpretação. Não sei se espero muito do filme, principalmente porque já conheço tão bem a sua história. Mas sim, estou à espera de qualquer coisa de interessante por parte de Branagh. Veremos.
Contudo, sempre foi claro que Branagh tem um gosto pelo exagero dramático, tal como tem um gosto enorme por uma boa dose de humor e boa disposição (quem não tem?!). Se conseguiu conter o suficiente estes prazeres nas suas adaptações shakespearianas, a conversa é outra quando começou a entrar cada vez mais em blockbusters de Hollywood, de 'Wild Wild West' (1999) para a frente. Branagh tem desfrutado em demasia dos blockbusters em que entra, em detrimento da sua qualidade, para se divertir e fazer dinheiro para financiar os seus projectos mais artísticos e pessoais, principalmente no teatro. O exemplo de 'Jack Ryan: Shadow Recruit' (2013) é notório. O filme é fraquíssimo, mas Branagh está absolutamente brutal, divertindo-se à grande e à francesa como o vilão russo.
Portanto a questão que se impõe é: irá Branagh optar por uma abordagem mais cinematograficamente coesa, trazendo de volta a chama clássica das suas obras iniciais; ou está aqui apenas para se divertir "à grande e à belga". Com um elenco que inclui Daisy Ridley, Johnny Depp e Josh Gad, infelizmente podemos estar perante a segunda opção. Mas uma coisa para mim parece certa. Do seu Poirot podemos esperar overacting e autoconsciência cómica (é só olhar para aquele bigode... típico exagero ao estilo Branagh!), mas também uma inteligência astuta e marota por detrás do brilho dos seus penetrantes olhos azuis. A sua calma discursiva neste trailer parece situá-lo mais na classe de Suchet do que de Finney, mas Branagh também gosta de nos surpreender quando o assunto é a sua própria interpretação. Não sei se espero muito do filme, principalmente porque já conheço tão bem a sua história. Mas sim, estou à espera de qualquer coisa de interessante por parte de Branagh. Veremos.
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