Realizador: Guðmundur Arnar Guðmundsson
Actores principais: Baldur Einarsson, Blær Hinriksson, Diljá Valsdóttir
Duração: 129 min
Crítica: Estou a chegar aos últimos dias do projecto Scope 100 e aos dois últimos filmes. Foi incrível ter acesso privilegiado a estas obras de toda a Europa, muitas delas que não estrearam ainda sequer nos respectivos países, e de descobrir grandes filmes que em situações normais nunca veria. Se o belga ‘Baden Baden’ e o francês ‘La prunelle de mes yeux’ deixaram muito a desejar e se o estónio ‘Ema’ ficou a meio termo, já o grego ‘Suntan’ e o alemão ‘Wild’ foram os dois melhores filmes que vi datados de 2016, metendo a um canto tudo o que vi proveniente lá dos lados de Hollywood. Falta-me ainda ver o inglês ‘Remainder’, mas ontem à noite foi a vez de viajar até à Islândia (acho que foi o primeiro filme islandês que alguma vez vi) e ‘Hjartasteinn’, distribuído com o título internacional de ‘Heartstone’.
No extremo oposto do último filme que havia visto, ‘La prunelle de mes yeux’, tido como o pior filme desta selecção, ‘Hjartasteinn’ está a ser considerado por muitos colegas deste projecto, que no decorrer das últimas semanas já o tinham visto, como o melhor filme dos sete. Eu talvez não seja tão entusiasta nesse sentido (sinceramente hesito em considerá-lo, globalmente, melhor que ‘Wild’ e ‘Suntan’), mas é sem dúvida alguma o filme mais bem filmado dos seis que vi até agora, o mais emocionalmente complexo e o mais profundo, assente numa forte mensagem social. E, para boa medida, tem também ao centro uma personagem muito bem construída e uma excelente interpretação jovem.
"É sem dúvida alguma o filme mais bem filmado dos seis [deste projecto] que vi até agora, o mais emocionalmente complexo e o mais profundo, assente numa forte mensagem social. E, para boa medida, tem também ao centro uma personagem muito bem construída e uma excelente interpretação jovem."
‘Hjartasteinn’ é realizado pelo islandês Guðmundur Arnar Guðmundsson e é a sua longa-metragem de estreia, depois de uma série de curtas-metragens que, uma rápida pesquisa nos diz, circularam pelos festivais e ganharam prémios, como por exemplo a menção especial que a curta ‘Hvalfjörður’ (2013) recebeu em Cannes. Mas é ‘Hjartasteinn’ que está a dar nome a este realizador, tenho ganho prémios de Melhor Filme, Melhor Realizador ou Menções Honrosas em vários festivais como os de Chicago, Sevilha, Veneza, Varsóvia ou Tessalónica.
‘Hjartasteinn’ é uma história de crescimento passado numa remota comunidade piscatória islandesa. Duas coisas saltam imediatamente à vista no primeiro segundo do filme, quando um grupo de jovens improvisa uma pescaria no porto da vila, e permanecem connosco até ao plano final, praticamente no mesmo local, mais de duas horas depois. A primeira é a fantástica fotografia e a belíssima filmagem, capturando em todos os planos a fabulosa beleza natural dos fiordes islandeses. Até nas cenas de interiores, passadas dentro das pequenas e espaçadas vivendas rodeadas de verde que caracterizam esta comunidade, conseguimos ver a magnífica paisagem pelas janelas. Portanto esse elemento natural, realista, está sempre presente, sentimo-lo sempre, formando um elo envolvente com a lírica história que é contada, como se de um filme de Malick se tratasse.
A segunda coisa é a brilhante gestão do elenco adolescente. Muito poucos são os filmes de pré-adolescentes e adolescentes que tomam a sua perspectiva. Geralmente, os filmes tomam a perspectiva exagerada dos adultos em relação aos jovens, obrigando-os a comportar-se de acordo com datados lugares comuns. Não é o caso em ‘Hjartasteinn’, que nos envolve, com um magnetismo intenso, no universo da dezena de jovens que vivem nesta comunidade. Todos os seus diálogos, atitudes, brincadeiras, medos, flutuações emocionais e discussões têm o toque pungente da realidade e isso ainda mais afecta o espectador, que é transportado para a sua própria adolescência, para aquele momento intenso de descoberta pessoal, sexual, emocional; para aquele momento fugidio na puberdade em que passamos de crianças a adultos.
"Duas coisas saltam imediatamente à vista no primeiro segundo do filme (...) A primeira é a fantástica fotografia e a belíssima filmagem (...) formando um elo envolvente com a lírica história que é contada, como se de um filme de Malick se tratasse (...) A segunda coisa é a brilhante gestão do elenco adolescente (...) O espectador é transportado para a sua própria adolescência, para aquele momento intenso de descoberta pessoal, sexual, emocional"
O filme centra-se em dois melhores amigos, Thor (Baldur Einarsson) e Christian (Blær Hinriksson). Thor vive com as duas irmãs mais velhas e a mãe (o pai há muito partiu), que luta para manter a família, e a si própria, à tona. Apesar de ser algo introvertido, Thor tem uma personalidade forte, e o estreante Baldur Einarsson tem uma interpretação massiva, demonstrando uma intensa complexidade emocional (típica da adolescência rebelde, mas tão poucas vezes bem captada em filme) que me trouxe à memória uma das minhas interpretações jovens preferidas: a de Eamonn Owens em ‘The Butcher Boy’ (1997) de Neil Jordan. Já Christian é uma personagem mais delicada, talvez consequência de ter um pai abusivo, e a sua forte ligação a Thor, vamos descobrir pouco depois, não provém apenas de uma intensa amizade.
Na sua primeira metade o filme constrói o dia-a-dia destes jovens durante um Verão pachorrento com uma incrível segurança visual e emocional. Tudo surge naturalmente. Não há propriamente cenas específicas para estabelecer esta ou aquela personagem, ou revelar ao espectador esta ou aquela emoção como acontece nos filmes americanos. É algo que se vai construindo progressivamente ao longo de várias cenas que nos vão enquadrando os respectivos contextos familiares e sociais, mas também, de uma forma entre o poético e o pungente realismo, a essência universal do crescimento e da adolescência, quando as brincadeiras deixam de ser apenas brincadeiras e começam a ganhar contornos mais sérios, mais adultos. Na primeira cena alguns miúdos matam peixes a pontapé, algo que deixa Thor chocado. Mas mais tarde ele próprio vai com Christian partir vidros e vandalizar carros à sucateira (que diga-se é a sucateira mais bem enquadrada ambientalmente que eu já vi na vida). E depois há todas as outras coisas tão típicas da juventude; os constantes desafios (“faz isto se és homem”), as constantes, e por vezes violentas, disputas, as trocas de insultos, o chamar de nomes gratuitos como "cobardolas", "larilas" ou "gay". E por fim, claro, há a descoberta da sua sexualidade.
E é nestes dois últimos pontos que o filme se irá focar. Thor tem a sua primeira grande paixão por Beth (Diljá Valsdóttir) que aos poucos lhe retribui. Lentamente vão começar a descobrir-se mutualmente em termos sexuais, culminando na primeira experiência de ambos. A melhor amiga de Beth, Hanna (Katla Njálsdóttir) também começa a gostar de Christian, e quando os quatro vão acampar uma noite, e Thor e Beth se afastam, ela espera ser retribuída. Mas o espectador sabe que isso não irá acontecer. Porque as banais boquinhas sobre ser ‘gayzolas’ que inconscientemente os miúdos atiram uns aos outros sempre afectaram mais Christian do que Thor, e o delicado Christian sempre foi filmado a olhar para o amigo de uma forma diferente. Sentimos o debate interior de Christian (a cena em que berra debaixo de água é subtil mas poderosa), mas por fim tem que enfrentar a verdade: é homossexual e está apaixonado pelo seu melhor amigo…
"Baldur Einarsson tem uma interpretação massiva, demonstrando uma intensa complexidade emocional (típica da adolescência rebelde, mas tão poucas vezes bem captada em filme) que me trouxe à memória uma das minhas interpretações jovens preferidas: a de Eamonn Owens em ‘The Butcher Boy’ (1997) de Neil Jordan."
Mas numa pequena comunidade isolada, e no seio de um grupo tão pequeno de jovens, é um fardo demasiado pesado para suportar. Principalmente quando vê Thor feliz por ter a sua iniciação sexual com Beth. Vai haver um ponto em que chamar “homossexual” a um colega como quem chama “cobardolas”, só para provocar, vai deixar uma enorme marca emocional, porque o miúdo pode realmente ser homossexual e não irá saber como lidar com a situação. É o que ocorre, levando Christian a uma situação verdadeiramente dramática que pode ter trágicas consequências. E quando tal acontece, isso afectará de uma maneira ou de outra todos os que o rodeiam, mas principalmente Thor, que terá que reavaliar o seu mundo, a sua recém-descoberta maturidade e, até, todos os seus sentimentos em relação a Christian…
Há uma enorme qualidade na forma como Guðmundsson gere esta subtil história de crescimento. Visual, emocional e cinematograficamente, o filme é praticamente imaculado. O argumento está construído de uma forma extremamente inteligente e a realização dá espaço para que as emoções, e não os diálogos, contem a história. Nunca há diálogos directos para explicar esta ou aquela emoção, mas nunca temos dificuldades em compreendê-las. O filme não tem pressa em chegar ao seu destino (aliás, há alturas em que o filme até exagera na sua ponderação; bem que podia ter quinze minutos a menos que os seus 130 minutos) e portanto cada passo nos arcos emocionais de Christian, e principalmente Thor, estão solidamente construídos e assentes numa enorme credibilidade. Um dos colegas do projecto Scope afirmou que ao contrário da protagonista de ‘Baden Baden’ (que eu próprio havia acusado de ser pedante e egocêntrica), conseguíamos ver nos olhos de Thor na cena final o quando os eventos o haviam afectado, o quanto havia crescido. É totalmente verdade.
O filme não se perde em excessivas cenas de dramatismo e tem uma enorme classe na forma como aborda as questões mais sensíveis, como a subtil mas constante pressão a que Christian é sujeito, a indecisão emocional de Thor ou toda a questão do despertar sexual. Grandes mestres como Fellini (recordo ‘Amacord’, 1973) fizeram-no de uma forma a roçar o ordinário. Guðmundsson fá-lo com um lírico e nostálgico realismo, abdicando de mostrar nudez ou os actos sexuais em si, mas filmando de tal forma que os sentimos na mesma. E isso é que interessa, mais do que ser explícito. E principalmente sentimos como essas emoções, a juntar a todo o restante turbilhão de emoções embutidas que os adolescentes têm de gerir (a mãe de Thor por exemplo tem um novo namorado), realmente afectam as personagens e comandam as suas relações e as suas escolhas. E isso é ainda mais brilhante.
"Visual, emocional e cinematograficamente, o filme é praticamente imaculado. O argumento está construído de uma forma extremamente inteligente e a realização dá espaço para que as emoções, e não os diálogos, contem a história (...) O filme tem uma enorme classe na forma como aborda as questões mais sensíveis, como a subtil mas constante pressão a que Christian é sujeito, a indecisão emocional de Thor ou toda a questão do despertar sexual"
Realmente, só houve uma coisa que não me agradou em ‘Hjartasteinn’ e que condiciona a minha opinião sobre o filme. Um dos maiores riscos, para mim, de fazer estudos cinematográficos sobre a homofobia, aliás, de fazer um filme sobre qualquer tema social relevante, é deixar que a importância do tema, a crítica presente na mensagem social, seja mais importante que o próprio filme, que o próprio estudo das personagens. Isto é mais do que comum nos filmes de Hollywood, nem tanto no cinema europeu. Infelizmente ‘Hjartasteinn’ balanceia-se num limbo inseguro relativamente a esta questão.
No último terço do filme comecei a sentir que o enfoque começava a ser cada vez menos a evolução emocional de Thor (a personagem sob a perspectiva da qual assistimos à história), e cada vez mais a construção de um universal argumento anti-homofobia (a mensagem mais forte que o filme quer passar). Ou pelo menos há uma luta interna entre estes dois estados que nunca é inteiramente resolvida. O status quo social é severamente criticado (apesar da sobriedade e subtileza da realização – não há golpes baixos) como se pode ver pelas reacções de quase toda a comunidade; e só um pequeno conjunto dos jovens, após algumas tribulações, conseguem ter a pureza de espírito necessária para ver que a verdadeira humanidade transcende os rótulos e as escolhas privadas de cada um. É sem dúvida alguma uma causa nobre que merece ser defendida. Só não gosto quando para a defender o filme perca o norte das suas personagens e o equilíbrio que tão soberbamente tinha mantido até então. Embora apenas por breves momentos, creio que isso acaba por acontecer, não no final mas um pouco antes disso, e portanto os eventos que levam ao desfecho emocional de Thor parecem mais condicionados por essa mensagem do que por aquilo que realmente acontece, o que é pena.
Mas percebe-se esta escolha (surge como uma inevitabilidade do tema que se aborda) e até perdoa-se, principalmente porque o realizador mantém a sua sobriedade (que facilmente poderia ter perdido em prol do ‘tema’), nunca tentando ser pedagógico ou pedante. A segurança com que conduz a história, e a naturalidade com que a imbui, são os seus maiores trunfos. E por isso, apoiado na sua incrível gentileza e subtileza, ‘Hjartasteinn’ consegue ser extremamente convincente e muito mais poderoso do que inúmeros outros filmes que já se fizeram sobre o mesmo tema. Só de pensar na espalhafatosidade e na atenção mediática que ‘Brokeback Mountain’ teve há uns anos dá-me vontade de rir, porque existem filmes como este.
"No último terço comecei a sentir que o enfoque começava a ser cada vez menos a evolução emocional de Thor (...), e cada vez mais a construção de um universal argumento anti-homofobia (...) Mas percebe-se esta escolha (...) e até perdoa-se, porque o realizador mantém a sua sobriedade (...) ‘Hjartasteinn’ é uma lírica, pungente e extremamente bem construída e bem filmada história sobre o crescimento, a amizade, o despertar sexual e a tolerância"
‘Hjartasteinn’ é a maior revelação de 2016. É uma lírica, pungente e extremamente bem construída e bem filmada história sobre o crescimento, a amizade, o despertar sexual e a tolerância. Apesar das minhas hesitações relativamente à forma como a moral final é obtida, não posso negar que emocionalmente o filme ganha um indescritível dimensão, ao construir-se com uma invulgar sinceridade e ao tratar cada personagem com a complexidade inerente à sua humanidade. A riqueza está nos pormenores e na subtileza com que emoções, nunca forçadas, passam para o espectador. Está na forma como, tal como na vida real, é a junção das pequenas coisas que causa as grandes consequências, e como, tal como na vida real, independentemente daquilo que acontece, independente dessas consequências, cada pessoa encontra a força para continuar. Amanhã é mais um dia. A vida continua. Numa palavra: crescemos. E o pequeno Thor cresce, perante os nossos olhos.
Baldur Einarsson é uma revelação como Thor (ficará na minha lista de grandes child stars). E se em 1985 o sueco Lasse Hallström carimbou o passaporte para Hollywood com outro grande filme sobre a passagem de jovem a adulto, o drama ‘Mitt liv som hund’, só com o domínio que o islandês Guðmundsson demonstra em ‘Hjartasteinn’ já consegue saltar à frente da maior parte dos realizadores contemporâneos, incluindo os mais conceituados. ‘Hjartasteinn’ é o melhor dos sete filmes do Scope 100? Talvez. ‘Wild’ é o mais artístico, no bom sentido. ‘Suntan’ é o que melhor equilibra conteúdo com acessibilidade a um público alargado. Mas ‘Hjartasteinn’ é sem dúvida aquele que melhor alia uma forte mensagem social com a beleza de fazer bom cinema.
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