Realizador: Rachel Lang
Actores principais: Salomé Richard, Claude Gensac, Lazare Gousseau
Duração: 96 min
Crítica: Esta semana recebi a boa notícia de que fui um dos cem cinéfilos portugueses seleccionados para o projecto Scope 100. Este projecto, lançado com o apoio do Programa Europa Criativa da União Europeia, foi desenvolvido pelas distribuidoras Festival Scope de França e Gutek Film da Polónia, em parceria com uma série de distribuidoras no restante espaço europeu, incluindo a Cinema BOLD em Portugal. O objectivo é simples: cem cinéfilos de cada país são seleccionados para verem e comentarem entre si um conjunto de sete filmes num curto espaço de tempo. Posteriormente, um desses filmes será seleccionado para ser distribuído comercialmente no seu país.
A mim parece-me uma iniciativa bastante inspirada e tenho orgulho de poder fazer parte dela em Portugal. E como não sou impedido de comentar os filmes fora dos visionamentos, aproveito a oportunidade para os dar também a conhecer ao leitor destas páginas. Claro que estamos a falar de um género de filmes que normalmente não são exibidos a grande escala neste país e que o público em geral (em que me incluo sem pudor) geralmente não tem grande acesso. Mas para mim tudo bem. Como já me fartei de escrever nestas páginas, e explorei de uma forma mais sarcástica na minha crónica ‘Sobre bons filmes’, para mim um bom filme pode surgir de qualquer lado, em qualquer género. Nunca rejeito um filme à partida só porque é um blockbuster de acção de Hollywood, ou só porque é um estudo social feito por um realizador independente na Estónia. Já vi obras-primas num lado e no outro, e essa é a glória do cinema.
"O filme tem todos os maus tiques que associo ao cinema elitista e pedante europeu: uma realização intrusiva, um argumento artificialmente elusivo e, no fundo, um tom egocêntrico mascarado de arte."
Mas pelo mesmo critério defendo veementemente que não é o país, o estilo ou o tema de um filme que fazem, automaticamente, um bom filme. É o filme em si, e aquilo que tem para oferecer em termos de actuação, realização, interpretação e todos os restantes departamentos que o tornam a meus olhos bom ou não. Portanto não aclamo logo à partida um filme independente, pseudo-artístico, sobre um tema social relevante como uma obra-prima, só porque é independente, pseudo-artístico e sobre um tema social relevante. Pode ser todas estas coisas e ter um mau argumento e uma má realização. Infelizmente, é isso que inúmeros críticos e a elite intelectual que rumina nos festivais Europeus não parece querer reconhecer. O estilo americano é diferente do europeu e o comercial é diferente do independente. Tudo bem. Mas isso não implica que o primeiro seja um cinema menor e o segundo um cinema tocado pelos Deuses. Pode ser e pode não ser. Tudo depende do produto final.
Portanto, quando ontem à noite comecei a ver ‘Baden Baden’, o primeiro dos sete filmes a que terei acesso nas próximas semanas, comecei com excitação e um espírito aberto. Infelizmente, cedo fiquei desapontado. O filme chega com algumas críticas favoráveis. Por exemplo o Guardian diz que recorda o espírito da Nouvelle Vague e que é um trabalho de estreia impressionante. Mas sinceramente não consigo concordar com estas afirmações. O filme tem todos os maus tiques que associo ao cinema elitista e pedante que descrevi no parágrafo anterior; uma realização intrusiva, um argumento artificialmente elusivo e, no fundo, um tom egocêntrico mascarado de arte. O crítico Gene Siskel costumava perguntar-se se “este filme é melhor do que um documentário sobre os mesmos actores sentados numa mesa a comer”. Pois bem, em ‘Baden Baden’ temos de perguntar se este filme é melhor do que um documentário sobre os mesmos actores a fazer obras numa casa de banho. E chegamos à conclusão de que não é muito mais.
‘Baden Baden’ é uma co-produção franco-belga de uma jovem realizadora (tem a minha idade, 32 anos) chamada Rachel Lang, que desconhecia. Uma pesquisa rápida deu-me a conhecer que este é o primeiro filme de Lang, depois da sua primeira curta-metragem ‘Pour toi je ferai bataille’ (2010) ter feito a ronda dos festivais, a sua segunda ‘Les navets blancs empêchent de dormir’ (2011) ter ganho dois prémios (o de Ingmar Bergman no festival de Uppsala e o Swann D’or no festival de Cabourg), e de ter lançado o documentário ‘Zino’ em 2013. Olhando para fotos da realizadora, encontramos uma maria-rapaz baixa, enfezada, de cabelo curto. Muito à semelhança, nota-se sem esforço, da personagem principal de ‘Baden Baden’, Ana, interpretada de forma surpreendentemente introspectiva por Salomé Richard (a melhor coisa que o filme tem). Portanto não será preciso muita imaginação para crer que ela será o alter-ego da realizadora, o que mais enfatiza o tom desgarrado e egocêntrico que o filme acaba por tomar.
"Lang será parcial aos longos planos (o 360º de Estrasburgo fica na retina) e à realização intimista onde o rosto de Ana consome a maior parte das cenas. Mas a forma com que o faz é morosa e letárgica, obrigando o espectador a entrar no dia-a-dia de Ana sem que haja realmente algo na sua vida que valha a pena conhecer."
O filme abre com um longo plano num carro que dura três ou quatro minutos. A câmara, posicionada no assento do passageiro, filma a condutora, a jovem Ana, claramente à procura de um qualquer local e cada vez mais nervosa. Quando finalmente chega ao seu destino, o seu chefe critica-a severamente por trazer o carro atrasada. Ana balbucia uma desculpa e segue com a viatura, claramente abalada mas ao mesmo tempo com uma passividade letárgica que consome não só a sua tímida personalidade, mas também todo o filme. Aliás, esta primeira cena de certa forma representa todo o filme. Lang será parcial aos longos planos (o 360º de Estrasburgo pouco depois fica na retina) e à realização intimista onde o rosto de Ana consome a maior parte das cenas. Mas a forma com que o faz é precisamente morosa, letárgica, obrigando o espectador a entrar no dia-a-dia de Ana sem que haja realmente algo na sua vida que valha a pena conhecer. Um sinal dos tempos? Uma gigantesca metáfora para a inércia emocional da nova geração? Ou simplesmente uma história de cariz autobiográfico sem grande interesse para o espectador comum? Cabe ao leitor decidir. Eu sinceramente inclino-me para a segunda opção.
Ana é jovem (tem cerca de 25 anos) e não parece ter um grande rumo para a sua vida. Quando o filme começa, descobrimos que faz biscates para uma companhia de cinema, conduzindo um carro alugado para fazer o transporte de pessoas e bens. Mas após deixar mais uma cliente no aeroporto, decide não devolver o carro alugado (uma acção que nunca terá consequências…) e usa-o para regressar a Estrasburgo. Aí passará um Verão pachorrento; uma clássica estação do cinema onde a personagem passará por uma série de atribulações emocionais que levarão à sua catarse. Ou pelo menos aquilo que o filme considera a sua catarse. Eu não tenho tanta certeza.
O fio condutor da viagem emocional de Ana é o problema de saúde da sua avó (Claude Gensac, que na década de 1960 entrou em imensos filmes com o grande Louis de Funés), a única pessoa por quem parece ter um afecto de longa duração. Hospitalizada e com problemas de mobilidade, a avó não irá conseguir entrar na arcaica banheira que tem em casa quando regressar, portanto Ana toma a si a responsabilidade de fazer obras, sozinha (!), na casa de banho. Suponho que o objectivo seja usar o espaço confinado da casa de banho, e as várias cenas que lá se desenrolam, como um micro-cosmos metafórico do íntimo de Ana; a representação da sua necessidade de ter um propósito na vida, de provar que é capaz de levar um projecto até ao fim, e de fazer algo por uma pessoa que nunca a deixou mal, ao contrário da maior parte das restantes que conhece. É um objectivo cinematográfico nobre, por certo, mas na minha opinião não é atingido com sucesso, porque não existe dimensão suficiente na construção da personagem nas restantes cenas para permitir que este micro-cosmos resulte.
"Suponho que o objectivo seja usar o espaço confinado da casa de banho, e as várias cenas que lá se desenrolam, como um micro-cosmos metafórico do íntimo de Ana (...) mas na minha opinião não é atingido com sucesso, porque não existe dimensão suficiente na construção da personagem nas restantes cenas para permitir que este micro-cosmos resulte."
Basicamente, Ana passa os seus dias a ter uma série de encontros e desencontros pela cidade. Temos os seus pais (Zabou Breitman e Régis Lang) que a querem ver bem na vida. Temos uma série de amigos e ex-amantes (ou amigos que se tornam amantes), de ambos os sexos (incluindo os actores Olivier Chantreau e Swann Arlaud), com quem Ana tem conversas desgarradas, monocórdicas e monossilábicas, sobre tudo e sobre nada. Alguns destes encontros resultam em totalmente desnecessárias cenas de nudez, cujo único propósito parece ser espevitar o filme (é mau sentirmos que há a consciência dessa necessidade), como é tradição no cinema francófono. E depois temos Gregoire (Lazare Gousseau, gostei quer da personagem quer da interpretação), o também tímido funcionário de uma loja de bricolage que Ana convence a ajudá-la na reparação da casa de banho e que, claro, se irá também apaixonar por ela. Não será contudo correspondido, ao contrário de Amar (Driss Ramdi) um trabalhador das obras que inicialmente se recusa a ajudá-la mas do qual Ana, de um forma que a faz parecer uma stalker, não irá largar mão, incluindo no final solto do filme…
Para mim um dos grandes problemas de ‘Baden Baden’ está na intimidade que o espectador cria, ou neste caso não cria, com a personagem principal. Ana parece ser mais que obviamente o reflexo da personalidade da realizadora, e esta usa-a a seu bel-prazer, não como uma personagem humana, com todas as frágeis emoções que daí advêm, mas como um símbolo juvenil do tragicismo pós-moderno. Ana surge como um conceito marinando no tempo, o tempo de um Verão, e não nos é dada nenhuma informação que nos permita reconstituir o seu passado, nenhuma intimidade para reconstituir o seu presente nem nenhuma introspecção para reconstituir o seu futuro. Tudo é dito por meias-frases e o visual não é suficiente para nos permitir entrar na sua alma. Ana é mantida propositadamente num clima de vagueza emocional para aumentar artificialmente a sua simbólica aura artística, e permitir à realizadora construí-la como um poço de contradições conforme mais serve os propósitos do filme.
Veja-se como Ana é sempre retratada num boa luz, uma “vítima” de uma sociedade e de uma geração desgarrada, mesmo perante atitudes negativas como o roubo de um automóvel, que o filme atira para debaixo do tapete. Veja-se como apesar de tímida e algo desajeitada, apesar de ter um corpo pequeno e sem curvas, Ana parece ser irresistível a homens e mulheres, que mais cedo ou mais tarde, quer queiram quer não (como no caso de Amar) cedem ao seu charme (que Salomé Richard possui intrinsecamente) e fazem aquilo que ela quer. Veja-se como Ana e o próprio filme tratam pessimamente a personagem de Gregoire, atirando-o para um canto sem qualquer consideração quando ele deixa de servir o seu propósito…
"Ana é mantida propositadamente num clima de vagueza emocional para aumentar artificialmente a sua simbólica aura artística, e permitir à realizadora construí-la como um poço de contradições conforme mais serve os propósitos do filme."
Parece óbvio que a tal associação deste filme com a Nouvelle Vague é feita porque retrata, com uma realização claramente ao estilo “europeu”, as atribulações de uma jovem sem um lugar definido no mundo, na sociedade e até em si própria. Até aqui tudo bem, e é um estilo que não é muito diferente daquele que por exemplo Xavier Dolan já demonstrou, o estilo dos jovens realizadores europeus a tentar captar o espírito da geração Z tal como outrora Truffaut ou Godard captaram o dos jovens pré Maio de 1968. Mas há dois aspectos essenciais que fazem com que ‘Baden Baden’ seja esquecido passado dez segundos dos créditos finais rolarem.
O primeiro é a falta de dimensão das personagens. As personagens da Nouvelle Vague eram universais, representavam uma geração, definiram uma geração, eram uma geração. Já Ana de ‘Baden Baden’ é egocêntrica e inconstante, e não parece estar tão perdida quanto o filme faz querer, já que toma todas as decisões e manipula facilmente aqueles à sua volta, que parecem existir só para lhe convir. Claro que existe alguma intimidade (é preciso salientar que Richard tem uma excelente interpretação), mas a vulnerabilidade de algumas cenas não consegue eclipsar o solipsismo do todo.
O segundo é a total ausência de chama nesta obra. Os filmes de Godard ou Rohmer podiam ter pouca história argumental. Mas os arcos emocionais das suas personagens eram a sua história. Em ‘Baden Baden’ podemos salientar o que merece ser salientado (o sabor da montagem e da banda sonora, a mestria de alguns planos), mas no fundo o filme tem um ritmo extremamente moroso e enfadonho, sem energia intrínseca. E isto não tem nada a ver com a ponderação dos planos ou o espaçamento entre diálogos. Tem a ver com a falta de profundidade nas emoções. Quer Ana quer aliás todo o filme vivem de momentos soltos que não são construídos nem têm consequências, uma fugidia sequência de eventos que no final torna difícil de saber se realmente Ana ganhou alguma coisa com a sua odisseia de Verão.
"Podemos salientar o que merece ser salientado (o sabor da montagem e da banda sonora, a mestria de alguns planos), mas no fundo o filme tem um ritmo extremamente moroso e enfadonho, sem energia intrínseca. E isto não tem nada a ver com a ponderação dos planos ou o espaçamento entre diálogos. Tem a ver com a falta de profundidade nas emoções."
O final do filme é tão inconstante como o resto do filme o foi. A ligação emocional que Ana forma nesse final é tão fugidia como foi qualquer outra que nos foi mostrada até então. Portanto, a estabilidade emocional que o processo de remodelação da casa de banho, em paralelo com o internamento da avó, supostamente lhe deu não é, de todo, perceptível. Portanto existiu? E se não existiu, então qual foi o propósito do filme? A personagem pela personagem. A simbologia pela simbologia? É demasiado fácil para o crítico tecer considerações metafóricas sobre esta obra baseado naquilo que é apresentado, mas isso não significa que essas considerações sejam verdadeiras. Cada espectador é que tem de o sentir, independentemente daquilo que é dito por outros. Eu infelizmente não o senti. Isso faz de mim talvez um pária intelectual, mas não torna errada a minha leitura desta obra.
Para mim a história está longe de ser inspiradora e está longe de ter qualquer tipo de simbolismo ou representatividade. Vimos um Verão na vida de uma personagem. Ok. Mas a personagem não é de todo interessante, os seus dilemas não são interessantes, e nem sequer há uma real catarse. É o reflexo da geração Z? Talvez, e isso talvez explique a sua alexitimia. Se for lido assim talvez o filme ganhe uma outra dimensão. Talvez. Mas no fundo não será apenas uma peça semi-autobiográfica cheia de innuendos que poderão fazer a realizadora apaziguar os seus demónios interiores e satisfazer o seu ego artístico, mas com os quais o espectador nunca irá criar empatia? Não precisamos de nos identificar sempre com a temática emocional de um filme, obviamente, mas precisamos de sentir sempre qualquer coisa que nos ligue a ele. Em ‘Baden Baden’ eu pouco ou nada senti.
"A personagem não é de todo interessante, os seus dilemas não são interessantes, e nem sequer há uma real catarse. É o reflexo da geração Z? Talvez, e isso talvez explique a sua alexitimia. Se for lido assim talvez o filme ganhe uma outra dimensão. Talvez."
Prevejo um bom futuro para Rachel Land, na senda de Dolan ou dos irmãos Dardenne, os famosos realizadores belgas que já ganharam duas Palmas D’Ouro (uma delas por ‘L’Enfant’ que já critiquei). Mas não é um estilo de cinema que aprecio. Para mim foi uma estreia pouco auspiciosa no projecto Scope 100. Mas tenho mais seis filmes para descobrir e estou certo e seguro que os próximos serão bem melhores. Que venham eles.
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