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Love & Friendship

Ano: 2016

Realizador: Whit Stillman

Actores principais: Kate Beckinsale, Chloë Sevigny, Xavier Samuel

Duração: 92 min

Crítica: Quando há uns meses vi o trailer de ‘Love & Friendship’ fiquei curioso. Foi anunciado como uma adaptação de um romance de Jane Austen, a famosa escritora de romances “feministas” do século XIX, mas, já os tendo lido todos, sabia que não havia nenhum com esse título. Ou melhor, não tinha lido ainda ‘Lady Susan’, um dos seus primeiros trabalhos que se estima que terá sido escrito por volta de 1794, mas que só foi publicado pela primeira vez em 1871, seis décadas depois da morte da escritora. E apesar de o ter em casa (tenho as obras completas em inglês cortesia da editora Wordsworth – preço total 10 euros!), nunca o tinha lido por um motivo muito simples: não é bem um romance, mas sim um livro experimental com menos de 100 páginas (antecede todos os seus famosos romances), constituído exclusivamente de cartas que as personagens escrevem umas às outras. Pois bem, cedo descobri que o filme ‘Love & Friendship’ era precisamente uma adaptação de ‘Lady Susan’ e portanto ainda mais curioso fiquei, especialmente depois de ter lido o livro rapidamente em meia dúzia de dias.

Qualquer leitor de Jane Austen reconhecerá que a adaptação dos seus livros a cinema é complicada. A sua narrativa é praticamente toda descritiva, incluindo também, em grande parte, as cenas de diálogos. Austen tinha a tendência de escrever parágrafos na forma “então ela disse-lhe o que sentia sobre… e ela respondeu-lhe que…”, resumindo assim conversas, emoções e sentimentos ao mesmo tempo, tirando partido da visão omnipresente da narradora, sem partilhar com o leitor os diálogos propriamente ditos. Esta dificuldade tem sido sentida por diversos argumentistas desde que se começaram a fazer adaptações das obras de Austen, de 'Pride and Prejudice’ (1940) com Laurence Olivier, a primeira de todas, até ao ‘Pride & Prejudice’ (2005) com Keira Knightly, passando por inúmeras como o 'Sense and Sensibility’ de 1995 (que valeu um merecidíssimo Óscar de Melhor Argumento Adaptado a Emma Thompson) e pelas famosas mini-séries da BBC dos anos 1990. Portanto adaptar um livro pequeno inteiramente escrito em forma de cartas, e que na realidade não tem assim tanta história, seria em teoria uma tarefa hercúlea, requerendo alguma destreza e imaginação por parte do argumentista/realizador para preencher os vazios que o romance deixa,  especialmente por ser a primeira adaptação de sempre desta obra e não haver pontos de referência anteriores.

Escrito e realizado por Whit Stillman, um algo elusivo realizador esporádico de filmes independentes (a sua filmografia consistia até agora de apenas de quatro filmes: 'Metropolitan’ (1990); ‘Barcelona’ (1994); 'The Last Days of Disco’ (1998) e Damsels in Distress (2011)); ‘Love and Friendship’ abarca essa tarefa hercúlea com alguma inconsistência. Na realidade, Stillman parece, pelo menos no início do filme, não ter conseguido decidir bem a forma como haveria de fabricar esta adaptação, ou seja, como é que haveria de transformar esta série de cartas numa sequência de cenas e diálogos. Só a meio é que finalmente se estabiliza num tom e aí a mudança é notória e o filme torna-se muito mais interessante.

A história é simples e centra-se em Lady Susan Vernon, interpretada por Kate Beckinsale (que já havia trabalhado com Stillman em 'The Last Days of Disco’ e que havia sido a 'Emma’ de Jane Austen na adaptação de 1996 para a televisão britânica). Beckinsale interpreta Lady Susan com o que à partida poderá parecer uma extremamente forçada postura vitoriana; um misto de graciosidade artificialmente contida, calor receptivo num sorriso tímido e uma subtil frieza calculista. Mas este aparente poço de contradições de certa forma adequa-se à personagem, tal como se adequa a forma monocórdica com que passa por todas as cenas e diálogos. Mesmo que seja falta de talento de Beckinsale, funciona, pelo menos para quem conhece o romance; e se é propositado então ainda mais esta sua interpretação deve ser aplaudida, mesmo que o filme nunca a pinte de forma tão negativa como o romance acaba por fazer. 

Quando o filme abre, Lady Susan está de partida da casa dos Manwaring em Lanford. Uma celebrada jovem viúva da sociedade inglesa, reputada pela sua beleza, inteligência, charme e humor, mas agora sem um tostão, Lady Susan vive escapulindo-se graciosamente às dívidas (alguém na sua posição não tem de pagar por nada, pensa) e fazendo-se hóspede na casa de inúmeros membros da sua família e demais sociedade. Isto enquanto procura um marido ideal, quer para si, quer para a sua filha, Frederica (a delicada Morfydd Clark). Em Langford correram rumores que se estava a relacionar com o dono da casa, Lord Manwaring (Lochlann O'Mearáin), um homem casado, ao mesmo tempo que também tinha Sir James Martin (Tom Bennett), um pobre de espírito mas com uma vasta fortuna, debaixo do seu polegar, afastando-o da filha dos Manwaring para a sua própria filha.

Estes rumores levam ao êxodo de Lady Susan de Lanford que, depois de deixar a sua filha (que considera um empecilho) numa escola interna, se faz convidada em Churchill, a casa do seu cunhado, Charles Vernon (Justin Edwards, boa interpretação), casado com Catherine (Emma Greenwell), que não vê a sua vinda com muito bons olhos. É aí que inicia a sedução cuidadosa do irmão mais novo de Catherine, Reginald DeCourcy (Xavier Samuel, que faz lembrar um jovem Hugh Grant), herdeiro da fortuna dos DeCourcy. O resto do filme dedica-se a mostrar as variadas maquinâncias de Lady Susan, contando com a ajuda da sua amiga Alicia Johnson, uma personagem tornada americana para satisfazer os requisitos da actriz que a interpreta (Chloë Sevigny que também havia trabalhado com o realizador e Beckinsale em 'The Last Days of Disco’).

Basicamente, Lady Susan pretende casar com Reginald ao mesmo tempo que pretende casar Sir James Martin com a sua filha, que entretanto já está em Churchill, onde rapidamente ganha o afecto de todos com a sua delicadeza, inocência e simpatia verdadeira. Mas quando se quer tudo pode-se acabar com nada e o feitiço muitas vezes vira-se contra o feiticeiro. Portanto a maré de Lady Susan pode estar prestes a mudar. Aos poucos, a sua fachada e a sua segurança a mexer os cordelinhos começa a ruir e as coisas começam-lhe a fugir do controle. Primeiro há a sua relação pendente com Lord Manwaring, cuja esposa (a hilariantemente esganiçada Jenn Murray) vai tentar expor. Depois Reginald, instigado pela família, poderá começar a ver a verdade sobre Lady Susan, o que o poderá levar a apontar o seu coração para outras margens. E Sir James Martin ainda anda por ali, um pateta alegre com uma fortuna, esperando casar com alguém…

Uma das grandes desvantagens do filme é que começa de forma algo insegura, oscilando inconscientemente entre os vários estados que caracterizam este tipo de obras. Por vezes é séria dramatização histórica, do tipo que os espectadores das obras britânicas estão habituados a ver e esperam de um filme destes (localizações soberbas, guarda roupa imaculado, linguagem muito bem trabalhada). Por vezes é sarcástica crítica social, tão presente nas obras e nas adaptações de Austen, e que aqui não é excepção. Mas por vezes (mais até do que deveria) o filme tem também uma inesperada leveza cómica (não presente no romance), que nunca resulta muito bem.

Por um lado entende-se que o realizador necessite de artifícios para tornar o filme mais universalmente apelativo e dar mais enchimento ao superficial (não em conteúdo mas em estrutura) material de base. É preciso recordar que o romance é todo constituído por conversas a dois (uma carta é escrita de uma pessoa para outra pessoa; sem terceiros partidos) e portanto, reproduzindo esta fórmula, havia o sério risco desta adaptação se tornar uma obra sem ritmo. Este medo sempre presente, de que o espectador fique maçado com um filme que é “apenas” uma série de cenas de diálogos praticamente só com duas ou três personagens de cada vez, condiciona todo o filme. Por vezes são os nossos medos que nos levam a tomar más decisões. É o que acontece aqui.

A primeira parte do filme luta por encontrar uma boa passada, e por isso o realizador vai atirando para a tela formas e mais formas de distrair e animar e espectador, quer a nível visual, quer a nível das subtis alterações à história de base; na adição de personagens, na alteração de personalidades, na invenção de novos diálogos. Por exemplo, desde o início as personagens são apresentadas uma a uma enquanto fazem pose e uma legenda diz o seu nome e o seu enquadramento na história. Infelizmente, este artifício vai-se tornando maçador a partir da terceira ou quarta vez, principalmente porque até se apresentam personagens que talvez dizem uma frase (como o mordomo) e depois não mais aparecem. Do mesmo modo, o realizador acha-se muito espirituoso (um segredo: não é muito) e por isso vai introduzindo alguns forçados momentos de humor, principalmente nos diálogos secundários que, temo seriamente, gelariam a espinha da própria Austen. Confesso também que a alteração que menos gostei foi a forma como a personagem de Sir James Martin é oficialmente declarada o bobo da corte, tornado muito mais bacoco do que aquilo que é no livro para proporcionar risadas. É um escape de humor que faz sorrir, sim. Mas é completamente encaixado à força.

Estas “distracções”, chamemos-lhe assim, serpenteiam os momentos em que as cartas que constituem a história são citadas de várias formas e feitios, de novo para que se crie alguma diversidade e o espectador não se sinta maçado. Algumas cartas são lidas directamente em cena por uma qualquer personagem, e na primeira metade do filme há a tendência para as próprias palavras de Austen surgirem a meio do ecrã, acompanhando a declamação. É uma completa quebra da ilusão do “filme de época” embora permita ao espectador sorver melhor a poesia da prosa da autora. Outras cartas são subtilmente declamadas por quem as escreve para novas personagens inventadas (como a criada de Lady Susan), cujo único propósito é, lá está, ouvi-las. E as restantes cartas são obviamente transformadas em cenas de diálogos, o que leva, como já disse, a que a maior parte das cenas deste filme sejam diálogos one-on-one, com os intervenientes sentados em sofás ou a andar lentamente por qualquer jardim. A juntar a uma montagem e a uma realização não muito inspiradas, isto torna o filme bastante monótono visualmente, algo que só o design de produção de época e a ocasional cena da praxe (como um baile) ajudam a salvar.

Mas na realidade, para mim, o problema principal deste tom inseguro e espalhafatoso é desviar as atenções, e minimizar o impacto, do seu ponto fulcral; a psicologia da personagem de Lady Susan. E talvez seja esse o motivo pelo qual o filme tenha pouca força, principalmente na primeira metade. Nunca sentimos realmente a malícia de Lady Susan tal como descrito no livro, e o prazer macabro que tem em controlar as várias pessoas que a rodeiam e em manipular as suas emoções. O filme mantém a mesma fachada ‘britânica’ que a personagem possui na maior parte das cenas, e não a quebra para explorar Lady Susan mais a fundo, os seus motivos, as suas emoções, os seus desejos. Na realidade, o filme está mais preocupado com o seu humor e os vários artifícios visuais que descrevi do que propriamente com as emoções das suas personagens.

Mas felizmente esse é também o motivo pelo qual o filme funciona muito melhor na segunda parte. Após estabelecer os vários triângulos amorosos e de intrigas que constituem o cerne desta história, após já ter mandado as suas piadas, citado frases de Austen e brincado um pouco com as convenções da época, foca-se finalmente (finalmente!) no desenrolar do novelo, ou seja, nas conspirações de Lady Susan e nas suas consequência (algumas boas, algumas más) para todos os envolvidos, incluindo a própria. E aí fica muito mais cativante porque as cenas adoptam uma dinâmica que antes não tinham, a montagem torna-se menos forçada e mais fluida, e o filme abandona os desnecessários artifícios para acompanhar as personagens mais intimamente, atingindo assim aquele típico estado de graça de um drama de época e de alta sociedade à la Austen.

É pena, contudo, que num filme que só com muita dificuldade atinge os 90 minutos de duração, esta pequena parte muito mais apelativa dure tão pouco tempo, apenas uns 15 a 20 minutos. Principalmente porque nem dura até ao fim, já que para rematar as coisas, o realizador esquece o tom dos minutos antecedentes e decide fazer voltar todos os artifícios que havia apresentado no início, incluindo a introdução de um final original, com uma surpresa que só não lhe chamo de interessante porque é presunçosa. Se isto é uma adaptação de um romance de Austen, porque se acha Stillman no direito de re-escrever o final? Achará que tem melhores ideias que Austen? De novo, tudo está feito como uma comédia de época e não propriamente uma sátira social; tudo está feito para o sorrisinho maroto e a cumplicidade realizador-público, sem que haja necessariamente uma coerência; tudo está mais focado no ambiente da história do que propriamente na exploração da (potencialmente) intrincada psicologia de Lady Susan. Repito: é pena.

Tudo somado, pode-se dizer que ‘Love & Friendship’ não cumpre bem aquilo que prometeu ser. Terá sempre um lugar de destaque por ser a primeira adaptação de sempre desta história, e é sempre apelativo conceber e dar a conhecer uma nova personagem de Austen (adaptações de 'Pride & Prejudice’ já estamos nós fartos). Mas o filme não tem o carisma de uma grande adaptação de época a que o cinema britânico já nos habituou. Apesar das localizações, do guarda-roupa, dos penteados elaborados, a realização é morna e desenxabida, as cenas têm uma mecânica agastada, o ritmo tem mais baixos que altos, e todos os artifícios visuais utilizados são dignos de um menor telefilme, não da exuberante produção que este filme deveria ser. 

Talvez Stillman, da escola do cinema independente, não tenha sido a escolha adequada para este filme. O 'Sense and Sensibility’ de Ang Lee, por exemplo, misturava um liricismo visual que tão bem se enquadra à Inglaterra do século XVIII, com uma excelente gestão emocional, marca do seu realizador. Este ‘Love & Friendship’ não tem uma pinga de lirismo e não sabe tirar partido do seu design de produção. E apesar de ser um filme passado na intimidade (afinal, raramente estão mais do que três actores em cena), nunca nos suga para o drama das suas personagens, a não ser por breves minutos no segundo acto – de longe os melhores do filme. ‘Love & Friendship’ é um filme leve, uma comediazinha de costumes com um brilho malicioso no olhar, passado no universo de Jane Austen. Isso pode ser suficiente para uma tarde de sábado em família mas não é suficiente para tornar o filme memorável. No fundo é um pouco como a própria Lady Susan: é fachada elaborada que se perde em detalhes desnecessários, perdendo assim a noção da sua verdadeira essência.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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