Home » , , , , , » Zootopia

Zootopia

Ano: 2016

Realizador: Byron Howard e Rich Moore

Actores principais (voz): Ginnifer Goodwin, Jason Bateman, Idris Elba

Duração: 108 min

Crítica: ‘Zootopia’ (vou continuar a chamar-lhe assim e não a versão portuguesa ‘Zootopolis’ para não perder a nuance da palavra ‘utopia’) é a entrada mais recente para o cânone de clássicos do seminal Disney Animation Studios (é o 55° na contagem oficial). O primeiro filme da Disney em quase uma década (com excepção do “à parte” ‘Winnie the Pooh’, 2011) a não ser lançado na época natalícia (o estúdio não queria concorrer contra o seu próprio ‘Star Wars: The Force Awakens’) surge num dos períodos de maior popularidade na história do estúdio. As mudanças ao nível da gestão, o domínio criativo de John Lasseter (o ex homem grande da Pixar) e o reconhecimento de que, para sobreviver no actual mercado cinematográfico atolado de filmes de animação, a Disney tinha que fazer um back to basics, voltaram a catapulta-la da plena crise em meados da década de 2000 (lembram-se quando lançaram ‘Chicken Little’, 2005, ou o péssimo ‘Meet the Robinsons’, 2007?!) para o topo da indústria da animação.

Na minha recente crónica ’30 de Julho de 2016 – O dia mais negro da história recente da Disney’ tracei este historial e dividi a actual produção da Disney em dois grandes grupos. Primeiro, o estúdio regressou ao conto de fadas, imbuindo-o de bem conseguidos toques de modernidade, inevitáveis na era do CGI, com o lançamento do fabuloso ‘Tangled’ (2010), do mega sucesso ‘Frozen’ (2013) e preparando-se agora para lançar ‘Moana’ (2016). Segundo, a Disney tornou-se mais Pixar que a própria Pixar, produzindo grandes aventuras de animação computadorizada, nomeadamente ‘Wreck-it-Ralph’ (2011) e ‘Big Hero 6’ (2014); o tipo de filme que outrora a Pixar fazia melhor que ninguém mas agora se esqueceu como; talvez por Lasseter passar mais tempo na Disney do que na Pixar, desde que a Disney comprou esta em 2006.

Percebendo, e bem, que o conto de fadas não podia acabar, mas capitulando à actual tendência do mercado animado, esta alternância acaba por ser o melhor de dois mundos, e levou a Disney à sua velha glória; crítica, financeira e inspiracional para toda uma nova geração de pais e crianças. Não há dúvidas nenhumas que é agora, de novo, o estúdio de animação nº1 a nível mundial, embora, pessoalmente, olhe com algum saudosismo para ‘The Princess and the Frog’ (2009), a pensar se realmente a Disney irá alguma vez voltar ao conto de fadas animado tradicionalmente, que tanta falta faz a alguns fãs incondicionais. Mas até lá, na inevitabilidade da morte anunciada da animação “à mão” e por todas as razões que enumerei, é com grande antecipação que todos esperamos cada novo filme da Disney, como o melhor que a indústria tem para oferecer.

Realizado por Byron Howard (de ‘Bolt’ e ‘Tangled’) e Rich Moore (de ‘Wreck-it-Ralph’), ‘Zootopia’ é prova disso mesmo. Embalado pelos sucessos de ‘Frozen’ e ‘Big Hero 6’ (ambos vencedores do Óscar de Melhor Filme de Animação) e pelo recair do estúdio nas boas graças do público e da crítica, é já, nem meio ano após o seu lançamento, um gigantesco sucesso. É apenas o quarto filme de animação (atrás de ‘Frozen’, ‘Minions’ e ‘Toy Story 3’) a passar a marca do bilião de dólares na bilheteira mundial, foi um sucesso crítico e é um enorme candidato a arrebatar de novo a estatueta dourada na próxima cerimónia dos Óscares. É contudo um filme que não me satisfaz completamente e gera-me algumas opiniões contraditórias.

‘Zootopia’ conta a história de Judy Hopps (uma voz sempre entusiasmada de Ginnifer Goodwin, da série ‘Once Upon a Time’), uma coelhinha do campo que sempre sonhou ser polícia na metrópole de Zootopia, o centro do universo antropomórfico que o filme estabelece, onde espécies de predadores e de presas vivem em harmonia há séculos. Contudo, a coexistência não implica que se tenham quebrado as barreiras da estereotipização (uma das grandes morais do filme, com grande repercussão nos nossos tempos). Judy é sempre catalogada com uma coelhinha indefesa, predestinada à agricultura de cenouras e que nunca poderá ser alguém relevante. Seguimos os trâmites habituais do seu crescimento, nomeadamente como enfrenta o marasmo da sua condição para perseguir os seus sonhos, com uma perseverança extrema aliada a uma boa inteligência. São essas faculdades que a permitem ser o primeiro coelho a forma-se na Academia de Polícia de Zootopia, mas é o interesse político (aumentar a popularidade do leão presidente da câmara – voz de J.K. Simmons) que a levam a ser destacada para a Esquadra Central da cidade.

Ao som de Shakira (a cantora pop Gazelle, que pouco mais de duas frases diz para além das músicas que enchem a banda sonora), Judy ruma a Zootopia, uma cidade brilhantemente animada pelos senhores da Disney. Não é só o ambiente que se cria – um misto de urbanidade à la Tomorrowland com vários cenários naturais que vão do distrito da floresta tropical ao bairro gelado – é também uma questão da qualidade intrínseca da animação. A boa animação de animais (particularmente animais ‘fofinhos’) tem sido algo negligenciada pela maior parte dos estúdios em anos recentes. Todos os grandes filmes com animais, de ‘Rio’ a ‘Finding Dory’, ou com outras criaturas (como os Minions ou os monstros de ‘Monsters Inc.’) existem no mundo dos humanos. Sentia-se a falta de um filme num universo exclusivo de animais fofinhos (‘bota fofinho nisso!), e ‘Zootopia’ preenche essa lacuna na perfeição, o que ajuda a cativar qualquer criancinha e a derreter o crítico mais céptico.

As coisas contudo não correm bem a Judy no seu primeiro dia. A estereotipização leva a que o chefe da polícia (uma voz imponente de Idris Elba) não a ache digna de casos sérios, colocando-a assim a passar multas de estacionamento. É nesse mesmo dia também que conhece a raposa Nick Wilde (Jason Bateman) que tirando umas frases lamechas que diz no final do filme é uma personagem perfeita, daquelas que vamos recordar daqui a anos como uma das grandes da história da Disney. É altamente apelativa, tem o tal charme discreto que caracteriza todo o filme (veja-se o sorriso apelativamente manhoso que tem em inúmeras cenas, especialmente quando goza com Judy) e tem uma dualidade bem construída entre a sua veia de ‘raposa’; astuto e aldrabãozote (ganha a vida com pequenas ‘golpadas’) e um inevitável bom coração que acaba por revelar. A relação entre os dois não começa com o melhor pé, obviamente, quando Judy desmascara um esquema de Nick, mas este acaba por levar a melhor. Ela irá contudo pagar na mesma moeda, quando tropeça num roubo que se torna o início de uma investigação por uma lontra desaparecida que mais nenhum agente quer assumir. Judy faz um acordo com o seu chefe, ou encontra a lontra em 48 horas ou apresenta a demissão, e chantageia Nick, de forma engraçada, para a ajudar.

O que se segue é um misto de noir trocado por miúdos, paródia a filme de gangsters e investigação policial para crianças, com um duo que vive uma contínua relação cómica de amor/ódio, à medida que Judy e Nick percorrem a cidade de Zootopia de lés a lés, seguindo as pistas e desmascarando uma conspiração à escala global. Em termos de dinâmica, acaba por ser um cocktail perfeito, com o filme a alternar entre excelentes cenas cómicas (a das preguiças, por exemplo, ou as constantes private jokes ao universo Disney), cenas de investigação/perseguição a um ritmo simpático (valem mais pelo ambiente em que se processam, da pequena cidade dos roedores à floresta, do que pela sua intensidade; não fosse este um filme para crianças) e uma moral que explora as condições de cada animal, quer para efeitos cómicos quer para demonstrar ao público jovem que as aparências e as convenções não são tudo, e que cada um só precisa de ter a força para continuar a tentar tudo, mesmo errando (como diz a música de Shakira), para atingir os seus sonhos e a felicidade. Não creio que haja um espectador jovem que não fique fascinado por este conteúdo e por este espectáculo visual.

Há contudo um reverso da medalha, o factor que me impede de anunciar ‘Zootopia’ como uma obra-prima. O factor que mais trabalha contra o filme é que qualquer espectador que domine a história do cinema de animação reconhecerá imediatamente, sem dificuldade, que o filme não tem uma pinga de originalidade em termos de história. Todo o enquadramento das suas personagens, todo o desenrolar da sua aventura, todos os twists do seu argumento de investigação de um ‘mistério’, todas as nuances da moral que oferece ao espectador infantil, já foram vistas e revistas e revistas. A história do pequeno herói a provar o seu valor contra tudo e contra todos é mais que batida; a investigação tem influências de inúmeros filmes, de ‘The Secret of NIHM’ (1982) a ‘Monsters Inc.’ (2001) a uma série de comédias de acção de polícias dos anos 1980 e 1990, e a revelação do segredo acaba por ser extremamente previsível, principalmente após o primeiro twist a meio do filme. Ninguém vai acreditar que uma solução dada a metade do filme é a solução definitiva, e portanto só sobra um único suspeito possível, que surpresa surpresa, acaba por revelar-se como o vilão.

Mas, e é um grande ‘mas’, tal como Woody Allen pode continuamente reciclar o mesmo material e produzir sempre produtos novos e interessantes (existem no mesmo universo conceptual, mas têm sempre uma chama própria), tal como Agatha Christie podia escrever dois ou três livros com a mesma história sem ninguém se aperceber (a força das personagens e a inventividade das soluções garantia a sedução do leitor), assim também ‘Zootopia’ desenrola-se com tanta exuberância, com tanta energia, com tanto entusiasmo (é essa a palavra chave do filme, ‘entusiasmo’) que não nos importamos nada, não nos importamos mesmo nada, que seja um reciclar de ideias. E esse é realmente o segredo do seu sucesso.

‘Zootopia’ acaba por ser uma espécie de versão gourmet de um prato bem conhecido; um filme que se diverte tanto (a si próprio, a quem o fez e ao espectador), que tem um ritmo tão bom e que está construído com um charme tão natural, que pode sempre ser saboreado com prazer na certeza de que nunca irá enfadar. Aliás, o filme até usa a sua, digamos, ‘familiaridade’, como mais uma arma para cativar o espectador. Se os produtores usassem este artifício mal, o filme perder-se-ia no limbo da cópia desinteressante. Como o usam bem o filme torna-se um triunfo do entretenimento que se consegue conectar com todos os públicos, principalmente o mais infantil. A cena do ratinho mafioso, que reproduz, palavra a palavra, frase a frase, o célebre discurso de Marlon Brando em ‘The Godfather’ (1972) é um exemplo perfeito. Leva inicialmente o espectador (ou pelo menos eu!) a pensar pesaroso: “outra vez?!”. Mas há medida que a cena se desenvolve percebemos que a piada não é um mero lugar-comum – está construída com gusto, e isso faz toda a diferença. 

No final, ‘Zootopia’ acaba por ser um filme de subtis e sublimes reinvenções; um filme que mergulha no universo das nossas convenções, quer cinematográficas, quer fantasiosas, mas que não se queda pela mera reprodução. Explora essas convenções com graciosidade e respeito, e uma enorme vontade de se divertir e inspirar. É essa energia, a mesma que existe nas nossas brincadeiras de criança, que permite ao filme transformar-se numa experiência de entretenimento fresca e apelativa, cheia de pormenores engraçados (cada cena tem subtis toques de magia e comicidade, cada personagem secundária contribui para o tom do filme), altamente desfrutável ao nível visual e inspiradora. Quando brincamos aos cowboys quando somos pequenos, inspiramo-nos em tudo o que já existe, mas isso não nos impede de divertir até mais não horas e horas a fio, pelo simples facto de podermos escrever a nossa própria aventura com a nossa imaginação e sermos os heróis do dia. Essa é a mesma fantasia pela qual ‘Zootopia’ se rege.

Sinceramente, para mim, o conteúdo de ‘Zootopia’ não irá surpreender ninguém, a não ser uma criança de cinco anos que nunca viu um filme de animação anteriormente. Mas, se nos deixarmos levar, é a alma de ‘Zootopia’ que mais irá surpreender; a riqueza da sua animação, do seu entusiasmo, da sua mensagem. E essa é a verdadeira definição de um filme Disney, um filme que nos conta uma história que já conhecemos (Branca de Neve, Cinderela, Aladino, são todas histórias que já conhecíamos antes de ver o filme da Disney), mas que torna a magia real e duradoura. ‘Zootopia’ não é uma aventura como ‘Wreck-it-Ralph’ ou ‘Big Hero 6’, que são filmes estilo Pixar ou Dreamworks mascarados pelo logo da Disney, consequências do cinema de animação dos nossos tempos. ‘Zootopia’ é um filme da Disney, em toda a acepção do termo, e quem o vir perceberá isso, com um saudosismo ternurento.

Divertido e animado, colorido e engraçado, com personagens apelativas, muita energia, muito humor, mas seriedade na sua mensagem inspiradora (pese embora as desvantagens de previsibilidade, desinspiração argumental e a enervante dica final de que uma sequela poderá estar a caminho), ‘Zootopia’ junta-se facilmente à tradição de filmes como ‘The Rescuers – Bernardo e Bianca’ (1977), ‘Basil – The Great Mouse Detective’ (1986) ou ‘Home on the Range’ (2004) – grandes filmes animados da Disney, não contos de fadas, com animais. Ao mesmo tempo, a sua ambição conceptual (que o filme poderia ter dispensado) é um inevitável toque de modernidade da era CGI que o destaca destas entradas mais singelas (mas não menos memoráveis, muito pelo contrário) e o fazem inaugurar, no meu ponto de vista, uma nova era na animação da Disney. ‘Zootopia’ prova que é possível recuperar este tipo de filmes com magia, qualidade e humor para o século XXI, tal como ‘Frozen’ e ‘Tangled’ provaram que se pode fazer bons contos de fadas em animação por computador. ‘Zootopia’ não é uma obra-prima como ‘Tangled’ ou ‘Beauty and the Beast’, mas por dar um gigantesco passo em frente nesta vertente, tenho a certeza que será lembrado por muito muito tempo, muito mais que ‘Wreck-it-Ralph’ ou ‘Big Hero 6’. Posto isto, aguardamos então impacientemente por Novembro e ‘Moana’.

0 comentários:

Enviar um comentário

Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).

Vídeo do dia

Citação do dia

Top 10 Posts mais lidos de sempre

Com tecnologia do Blogger.

Read in your language

No facebook

Quem escreve

Quem escreve
Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

Visualizações

Seguidores Blogger

 
Copyright © 2015 Eu Sou Cinema. Blogger Templates