Holmes. Sherlock Holmes. Dispensa apresentações. Criado por Arthur Conan
Doyle em 1887, este detective profissional inglês, morador de Baker Street com
o seu amigo, o Dr. Watson, revolucionou, ou melhor, praticamente reinventou, ao
longo de quatro romances e cinquenta e seis contos, a literatura policial para sempre. Já tinham existido detectives anteriormente, claro. Mas nenhum havia
demonstrado a brilhante capacidade dedutiva de Holmes, nem nenhum havia sido
descrito com tanto brilhantismo como aquele que fluiu da pena de Doyle. Indubitavelmente,
Holmes marcou o passo para o romance policial do século XX e inspirou a sua
década dourada dos anos 1920 a 1950. A sua influência em Agatha Christie, só
para citar um exemplo, é mais que notória. E hoje é ainda difícil encontrarmos
quer um detective quer um conjunto de histórias que sejam tão boas, tão
influentes, tão duradoiras e tão intemporais, por mais CSIs que se façam. Mais
do que a inventividade das histórias (mesmo as mais simples são altamente
imaginativas), o segredo, para mim, está no carisma e no fascínio da
personagem, que é praticamente irreplicável.
Por isso mesmo, o cinema desde cedo adoptou Holmes como uma clara
inspiração. O imdb lista nada menos que 146 filmes ou séries em que a
personagem entra, a começar em 1911. O facto de a maior parte das histórias de
Conan Doyle serem contos mais ajudou a proliferar estas obras, ao permitir
várias curtas-metragens mudas com os mesmos protagonistas, e mais tarde filmes com
quase ilimitadas possibilidades de sequela e séries de TV com iguais
possibilidades de novas temporadas. Praticamente em contínuo ao longo dos
últimos cem anos, alguém está a interpretar Holmes no ecrã, mais ou menos fiel
à obra de Doyle, o que é absolutamente incrível. Holmes extravasou Doyle para
se tornar uma propriedade da cultura popular. Por isso é que o cliché da sua
personalidade, o capote, o cachimbo, o “elementar meu caro Watson” (algo que
nunca aparece nos livros), se tornou um símbolo do policial com classe, mesmo
que muitas obras cinematográficas se tenham esquecido dessa classe, em prol
precisamente do lugar-comum. Um daqueles paradoxos tristes que desconsola os
puristas mas leva o público ao êxtase. Afinal, as histórias de base nunca
mudam, mas as adaptações e as re-imaginações são eternas, portanto, em prol da
novidade, há sempre um produtor moderno que se acha mais inteligente que Doyle…
Hoje, temos dois populares Sherlock Holmes: Robert Downey Jr. nos
blockbusters de Guy Ritchie (‘Sherlock Holmes 3’ já chega para o ano), e Benedict
Cumberbatch na série inglesa. E ainda o ano passado vimos Ian McKellen numa
adaptação livre da personagem em ‘Mr. Holmes’ (2015). Mas houveram outros,
tantos outros, bem melhores, bem mais populares, mesmo que hoje estejam um
tanto ou quanto esquecidos. Recordemos Jeremy Brett na incrível série da BBC
dos anos 1980 ou Peter Cushing ao longo dos anos 1960. E até Roger Moore o
interpretou num filme para a TV: ‘Sherlock Holmes in New York’ (1976). Mas um
dos mais populares Sherlock Holmes de sempre foi Basil Rathbone, que o
interpretou em nada menos que 14 filmes entre 1939 e 1946. Tanto que o seu
nome, ainda hoje, é sinónimo do próprio Holmes para o historiador de cinema.
Tanto que muitas das expressões, traços de personalidade, indumentárias,
adereços, e até a silhueta que a nossa cultura popular associa a Sherlock
Holmes estabeleceram-se não nos romances, mas precisamente nesta série de
filmes.
Rathbone era um actor inglês de porte clássico que provinha da escola
Shakespeariana. Contudo, a sua pose, voz sonante e esguias capacidades
atléticas tornaram-no o protótipo ideal do vilão em múltiplos filmes de época
ou de aventuras. Desde cedo, Hollywood o tipificou como o vilão que todos
adoramos detestar, em clássicos do cinema como ‘David Copperfield’ (1935), ‘Captain
Blood’ (1935), ‘The Adventures of Robin Hood’ (1938) ou ‘The Mask of Zorro’ (1940).
O único que não parecia satisfeito, contudo, era o próprio Rathbone, que almejava
outro tipo de papéis, alimentado pela sua experiência de palco e as suas ambições
dramáticas. Por isso mesmo, foi com enorme alegria e antecipação que Rathbone
agarrou a hipótese de interpretar Sherlock Holmes na grande produção da 20th
Century Fox de 1939: ‘The Hound of the Baskervilles’.
O filme foi um sucesso, o que incentivou uma sequela imediata; ‘The
Adventures of Sherlock Holmes’ (1939). Contudo, dois grandes motivos levaram ao
cancelamento de mais sequelas na Fox. Primeiro, uma disputa contratual entre o
estúdio e os herdeiros de Conan Doyle sobre os direitos da personagem. Segundo,
o advento da Segunda Guerra Mundial. Está documentado que o estúdio considerou
que os mistérios de Sherlock Holmes teriam pouco interesse num Mundo em Guerra
e numa Hollywood onde histórias excitantes de agentes secretos e espiões começavam a surgir em força. Mas se a Fox cancelou a série de Sherlock Holmes, houve
um estúdio que não teve pudor em aproveitar as peças partidas e retomar a saga:
a Universal.
Três anos depois, em 1942, a Universal selou um acordo com os herdeiros de
Conan Doyle para a obtenção dos direitos de adaptação de vinte e uma histórias de
Sherlock Holmes por um período de sete anos. O contrato estipulava que três
filmes teriam de ser feitos por ano, dos quais dois teriam de ser adaptados das
histórias originais. Ao mesmo tempo, a Universal obteve o contrato dos três
actores principais dos filmes da Fox: Rathbone continuou a interpretar Holmes, com Nigel Bruce no
papel de Watson e Mary Gordon como Mrs. Hudson.
Ao recuperar a franchise a Universal não ambicionava, contudo, fazer as
produções grandiosas e de época que haviam sido feitas na Fox. A Universal
abordou a série de Sherlock Holmes com o mesmo fulgor que abordou os seus
filmes de monstros: como produtos menores de baixo orçamento, com pouco mais de
uma hora (a proverbial série B), intentos em ser filmados e lançados
rapidamente e a ter um rendimento saudável na bilheteira. Numa era em que não
havia televisão, estes produtos cinematográficos menores funcionavam
precisamente como funcionam as séries de hoje em dia; ou seja, era mais
importante lançar “mais um episódio” do que propriamente fazer um filme
duradoiro de cada vez. A saga de policiais de ‘The Thin Man’, por exemplo,
estendeu-se por 7 filmes nos anos 1930 e 1940. Com 14 filmes, o sucesso deste
Sherlock Holmes foi praticamente inaudito.
Mas a Universal tinha ainda mais um truque na manga. Para se enquadrar com os
tempos complicados em que o Mundo, e em particular a Inglaterra, vivia, o
estúdio decidiu transladar Holmes da Londres Vitoriana para os anos 40 do
século XX, em pleno cenário de Guerra. O primeiro filme feito na Universal,
terceiro da saga, ‘Sherlock Holmes and the Voice of Terror’ (1942), começa
precisamente com um texto inicial que diz (tradução minha): “Sherlock Holmes, a
imortal personagem de ficção criada por Sir Arthur Conan Doyle é intemporal,
invencível e imutável. Ao resolver problemas significativos dos dias de hoje
permanece – como sempre, o mestre supremo do raciocínio dedutivo”. Com esta
manobra, Holmes surgiu taco-a-taco com outros heróis cinematográficos da
década, aplicando os seus poderes dedutivos contra a invasão Nazi, para deleite das audiências contemporâneas. Deste modo, a saga susteve-se por
uns incríveis doze filmes em apenas quatro anos (até 1946).
Mas mais uma vez, o único que não parecia satisfeito era o próprio
Rathbone, cada vez mais frustrado com os filmes e a sua decrescente qualidade ‘a
papel químico’, mas principalmente com o papel; monótono, sem capacidade de
inovação e que, por a associação a si ser tão grande, o impedia de obter papéis
distintos noutros filmes. Quando finalmente conseguiu sair da série
contratualmente em 1946, é de notar que praticamente voltou as costas ao cinema,
quedando-se pela televisão e pelo teatro (ganhou um Tony), o que diga-se,
acabou por ser uma gigantesca perda para a sétima arte. Tirando dar voz ao filme da
Disney ‘The Adventures of Ichabod and Mr. Toad’ (1949) só regressaria ao cinema
esporadicamente uma década depois (o hilariante ‘The Court Jester’, 1955), e mais regularmente
no final da sua carreira nos anos 1960, nos filmes de terror de Roger Corman ou
Jacques Tourneur, onde, mais agastado, parodiaria a sua própria imagem.
Acabaria por falecer em 1967 com 75 anos de idade.
Como Holmes, sempre recordarei Rathbone como um actor que abdicou do
habitual pedantismo e arrogância associada à personagem, substituindo-o por um
efusivo dinamismo e uma rispidez dedutiva. Como havia provado nos filmes dos
anos 1930, Rathbone daria um excelente herói de acção, e no papel do detective
inglês é precisamente isso que prova ser, mas usando as palavras onde outros
usariam os punhos, e o seu enorme talento de actuação para encarnar os
múltiplos disfarces que este Holmes (tal como nos livros) assume nas suas
investigações – mais uma mais-valia da sua interpretação. Mas acima de tudo,
Rathbone deu o toque necessário quer de classicismo, quer de classe ao papel que falta, por exemplo, aos dois actores que o
encarnam hoje em dia no cinema e na televisão. Acreditamos que ele é o
verdadeiro Holmes tal como descrito por Conan Doyle; mais do que qualquer outro
actor que o interpretou até hoje.
Inevitavelmente, sem ele, a série não prosseguiu. Os senhores da Universal
ainda ponderaram substituí-lo por Tom Conway, o actor que o havia substituído
na série de rádio que estava a ser feita em paralelo com os filmes, mas
acabaram por desistir desta ideia. Na altura, tal como hoje, sabemos que, nos contornos desta saga, Rathbone era insubstituível e os filmes simplesmente
não funcionariam sem ele. Para além do mais, Roy William Neill, o realizador dos últimos
onze dos catorze filmes da saga, faleceu nesse mesmo ano de 1946. Sherlock Holmes
regressaria, inevitavelmente, mas já seria noutra reincarnação cinematográfica,
e depois noutra e mais noutra, até aos dias de hoje… Muitos já esqueceram Rathbone, mas a
sua memória permanece junto aos cinéfilos, e é precisamente essa memória que
homenageio aqui, hoje, 70 anos depois da sua última aparição como o detective
de Baker Street.
Hoje em dia o leitor poderá encontrar a maior parte dos catorze filmes de
Basil Rathbone como Sherlock Holmes facilmente no youtube, e portanto pode
descobri-los a seu bel-prazer. Da minha parte, proponho-me, por agora, a publicar
nos próximos dias três pequenas críticas, respeitantes precisamente aos três
filmes que foram postos à venda em Portugal há alguns anos, numa caixa de DVDs
produzida pela editora espanhola Orbit com distribuição da Unimundos. e que tem o seu lugar devido na minha estante. Não
faço ideia se se encontram ainda à venda, mas, como agora há o youtube, isso é
talvez o menos importante. O importante é que houveram muitos Sherlock Holmes,
mas só houve um Basil Rathbone. E não o conhecer é um crime! Elementar, meu caro leitor!
Não perca então
em breve as críticas de:
Texto brilhante! Gosto muito da série da BBC com Benedict Cumberbatch, mas o Basil sempre será o modelo mais fiel ao Sherlock dos livros.
ResponderEliminarTexto brilhante! Gosto muito da série da BBC com Benedict Cumberbatch, mas o Basil sempre será o modelo mais fiel ao Sherlock dos livros.
ResponderEliminarSherlock Holmes teve adaptações diferentes, mas Guy Ritchie fez uma adaptação muito boa. Sou uma fiel seguidora de Guy Ritchie. Apesar de não ser um diretor tão reconhecido na indústria do cinema, ele é um dos poucos que conseguem boas obras cinematográficas de aventura graças ao seu grande profissionalismo. Deve ser por ele que grandes atores como Henry Cavill o Charlie Humman querem participar nos seus filmes. Seguramente os seus filmes de ação são um sucesso a seu estilo e personalidade, é uma referência do gênero. Seus efeitos especiais estão incríveis, trilha sonora e atuações geram um resultado que consegue captar aos espectadores. O elenco fez um excelente trabalho no filme.
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