Realizador: Pier Paolo Pasolini
Actores principais: Enrique Irazoqui, Margherita Caruso, Susanna Pasolini
Duração: 137 min
Crítica: A ‘Maior História Alguma vez Contada’ (como lhe chama o filme de 1965 de George Stevens), como quem diz, a vida de Cristo, é também uma das histórias mais contadas do Cinema. Do ‘King of Kings’ mudo de 1927 realizado por Cecil B. DeMille ao intenso ‘Passion of the Christ’ (2002) de Mel Gibson; de ‘Jesus Christ Superstar’ (1973) à mais recente adaptação da ‘Bíblia’ com Diogo Morgado no papel central, passando por tantos outros como a obra-prima ‘Jesus of Nazareth’ (1977) de Franco Zeffirelli (que ainda revi esta Páscoa como manda a tradição), praticamente Páscoa sim, Páscoa não, surge uma nova obra no cinema ou na televisão. Isto é de certa forma surpreendente, visto que a história, no final de contas, é sempre a mesma, e os diálogos, geralmente retirados do Evangelho (salvo algumas adaptações livres como ‘The Last Temptation of Christ’ ou ‘Jesus Christ Superstar’), também.
Claro que há um gigantesco poder e apelo universal na história, que terá sempre um público fiel num mundo cinematográfico americano predominantemente católico. E claro, se esquecermos a mensagem religiosa, por detrás está também uma enorme facilidade de lucro com a ausência de trabalho, tempo e dinheiro investido na escrita do argumento, que quase se escreve sozinho, e o inevitável apelo de bilheteira para os espectadores que já viram muitas adaptações mas nunca se importam de ver mais uma, só porque é mais moderna. Mas no fundo, não é apenas isto. Se o argumento, mais coisa menos coisa, é sempre constante, há dois elementos fulcrais que distinguem todos os filmes sobre Cristo uns dos outros: o seu estilo e a sua mensagem inerente. Podem filmar sempre a mesma história, portanto a sua qualidade não irá depender disso, mas serão produtos diferentes dependendo principalmente da forma e do tom com que o realizador decide abordar o material (mais realismo, mais etéreo, etc) e da forma como se decide contar a história de Cristo: pela história em si ou, como é mais frequente, como uma metáfora para muitos dos eventos da nossa história contemporânea. E aqui está o segredo para criar um bom filme sobre a vida de Cristo.
‘Jesus of Nazareth’, a mini-série de 1977, é uma obra-prima pois é uma peça incrível de virtuosismo cinematográfico e intensidade dramática, mas mantendo uma enorme humildade e reverência em relação ao material de base, sem criar julgamentos ocos ou superficiais ao mesmo tempo que reflecte sobre os valores do presente. Já ‘King of Kings’ (1961) de Nicholas Ray, por exemplo, é talvez o pior filme alguma vez feito sobre a vida de Cristo, pelo simples facto de que é incrivelmente enfadonho. Como é que se torna a vida de Cristo enfadonha? É fácil, é só seguir os trâmites das escrituras mecanicamente, saltando de discurso em discurso, de cena em cena, de milagre em milagre, sem qualquer ligação emocional, sem qualquer profundidade, sem qualquer ritmo, apenas uma série de quadros estáticos como se se estivesse a ler o Evangelho monocordicamente. Mas também podemos ter o oposto. A mais recente ‘Bíblia’ do Canal História com Diogo Morgado estava imbuída de um completamente despropositado realismo, violento e vingativo, e estava bem mais preocupada em representar literalmente a ira de Deus, tal como descrita na Bíblia, do que propriamente com a mensagem religiosa. Lá está, tem tudo a ver com a escolha do estilo.
Nos anos 1950 e 1960 o estilo, contudo, era outro. A televisão invadiu o mundo dos americanos e o cinema respondeu com mega-produções, elencos de luxo e melhorando a qualidade de imagem e de som. Numa era de paranóia comunista e em que muitos dos valores tradicionais estavam a ser postos em causa, o virtuosismo, mesmo que artificial, da Legião Católica dominou o cinema americano, mas isso teve a grande vantagem de permitir que este se voltasse para os (excelentes) épicos bíblicos; uma forma de escape segura e bem-vista, mas também bem-vinda. Do resultado destes dois eventos aparentemente não relacionados, surgiu a era dourada do cinema religioso. Começando por ‘The Robe’ (1953, o primeiro filme de sempre em widescreen), a década deu-nos obras como ‘Ten Commandments’ (1956) ou ‘Ben-Hur’ (1959), e no início da década de 1960 surgiram as duas mega-produções de Hollywood sobre a vida de Cristo, o enfadonho ‘King of Kings’ (1961) e, quem sabe pela fraca qualidade deste, ‘The Greatest Story Ever Told’, quatro anos depois. Mas apesar de tanta epicidade cinematográfica, apesar de tantas mega-produções bíblicas, foi no meio destes dois filmes, e bem longe de Hollywood, que se fez o talvez até então melhor filme sobre a vida de Cristo: ‘Il vangelo secondo Matteo’ de Pier Paolo Pasolini, para mim hoje num honroso segundo lugar atrás da obra de Zeffirelli.
No início da década de 1960, o cinema europeu estava em voga. O mercado explodiu com o aumento exponencial de espectadores, e as condições mais económicas de mecas como a Cinecittà atraíram as grandes produções americanas, ajudando a cimentar a indústria europeia e as valências dos seus trabalhadores. Se o Eurospy se tornou um género de direito próprio, se em França a Nouvelle Vague alterava o rumo do cinema mundial, em Itália esta era a era de Fellini, Risi e Antonioni, e foi nesse meio que Pasolini surgiu, um escritor que se tornou argumentista e que em 1961, com ‘Accattone’, fez o salto para realizador. Estava ainda a uma década de distância dos seus mais chocantes e polémicos trabalhos como ‘I racconti di Canterbury’ (1972) ou ‘Salò o le 120 giornate di Sodoma’ (1975, no ano da sua morte por homicídio), mas já na sua juventude cinematográfica era activamente controverso e politico, muito embora com uma simplicidade mais incisiva, menos preocupado em chocar e mais em realmente demarcar uma posição.
O seu segmento em ‘Ro.Go.Pa.G.’ de 1963, ‘La ricotta’, levou-o a ser condenado por blasfémia a uma pena de prisão suspensa, já que a história retrata a filmagem de um filme sobre a vida de Cristo numa pequena aldeia pobre, o que leva os aldeões a rebaixarem-se constantemente em troca de comida e inclusive ao actor que faz de Cristo realmente morrer quando filmam a cena da crucificação. Portanto quando Pasolini se propôs a filmar a própria vida de Cristo no seu filme seguinte; ‘Il vangelo secondo Matteo’ (o S. de São Mateus foi propositadamente retirado), seria de esperar que o filme fosse igualmente controverso e gerasse igual indignação. Mas em vez de ser vaiado de novo, Pasolini foi aclamado pela crítica. Para mim, não há dúvidas, este é ainda o seu filme mais duradoiro, e o motivo é extremamente simples; ‘Il vangelo secondo Matteo’ é absolutamente soberbo, uma das mais, senão a mais, realista, pungente e poderosa obra sobre a vida de Cristo.
Tendo em conta este contexto, é um pouco surpreendente que o filme atinja esse patamar, já que pela sua própria definição está cheio de contradições. Mas de novo regressamos à questão do estilo. A vida de Cristo é uma história de humildade e redenção, mas mesmo as adaptações que se esforçam por ser mais, digamos, terra-a-terra e realistas, pecam pela sua ambição e pela sua espectacularidade (nem que seja na utilização de milhares de extras e cenários gigantescos) e pelo uso de elencos estelares que inevitavelmente chamam a atenção para si próprios. Já a versão de Pasolini nega tudo isto com um certo desdém e está imbuída de uma invulgar humildade e simplicidade, onde a mensagem é muito mais importante do que a forma. Aqui não se foi filmar ao deserto da Tunísia ou a outra qualquer localização “da praxe”; antes usou-se uma talvez desadequada paisagem montanhosa, rochosa e verdejante, do interior da Itália. Aqui não se usou um elenco estelar; antes um gigantesco rol de actores amadores e meia dúzia de extras. Aqui não se utilizou uma fotografia espectacular em Technicolor; antes um preto e branco agastado como as paisagens que filma. Aqui não se adoptou por uma sumptuosa realização, a exacerbar simbolismos visuais e uma estética de pseudo-reverência religiosa; antes um estilo de filmagem herdado das duas últimas décadas do cinema italiano – o estilo de Rossellini ou Visconti, o estilo do neo-realismo. E de toda esta negação advém, quase paradoxalmente mas como uma extensão natural, uma enorme credibilidade, uma enorme sinceridade e um profundo significado.
Claro que é inegável que o filme tem uma forte mensagem política na sua subcorrente; Pasolini nunca faria um filme sem essa agenda. O filme salienta o papel de Cristo como o maior revolucionário de todos os tempos e assim sendo, cada vez que ele discursa, o duplo significado e o poder das suas palavras não passa despercebido, nem ao espectador de agora, nem muito menos ao espectador da altura. Embora se possa filosofar sobre as ramificações artísticas, culturais e políticas desta abordagem (algo que as elites ao longo deste meio século já muito fizeram), não é isso, pelo menos para mim, que torna esta obra tão relevante. Muito mais importante, num sentido estético, emocional e cinematográfico, está a tal forma directa e sincera com que Pasolini aborda o material, e a forma poética com que o filma. Vejam-se, por exemplo, as magníficas cenas de transição entre os discursos de Jesus, os planos longos que descrevem visualmente a vida humilde nas montanhas, e a forma como o povo segue o Senhor, nas caminhadas e procissões ao sabor de coros e música clássica. Imagens tão simplesmente belas são difíceis de encontrar.
Mas há também (mais uma contradição) uma qualidade etérea e intangível no material. Tal como outros filmes contemporâneos (‘Andrei Rublev’, 1966, de Tarkovsky vêm-me à memória), cada plano do filme, com a sua incrível composição a preto e branco, assemelha-se a uma pintura medieval. Jesus, interpretado por Enrique Irazoqui, é filmado em close up na maior parte das cenas, mas o seu rosto ocupa apenas metade da tela, sendo que as belas paisagens e o povo são uma constante presença na outra metade; duas partes indissociáveis da mesma pintura, do mesmo enquadramento. E quando Jesus discursa, a câmara não deixa o seu rosto, apanhando todas as inflexões de Irazoqui. Para além do mais, o usual uso de som cristalino gravado em pós produção (tão típico do cinema italiano dos anos 1960) contribui para dar essa profundidade etérea aos seus discursos, já que todos os outros sons são abafados. A única coisa que realmente parece não funcionar é a actuação dos amadores, bem como, apesar da excelente contextualização que Pasolini dá à história de Jesus, o tom das palavras em si. O debitar usual de orações, parábolas e discursos é feito pelo actor a uma incrível, e surpreendente, velocidade (contrastando com a placidez calma de outros Jesus), quase como se apenas estivesse a dizer algo que memorizou, com uma emoção fria. É uma antítese provavelmente consciente que leva o espectador à reflexão.
Avançando com a rapidez dos seus diálogos até à crucificação e ressurreição do Senhor (apesar de ter quase duas horas e meia), a maior glória deste filme é que serve ambos os públicos; os fãs do neo-realismo italiano e os fãs do cinema cristão, já que encontra, na perfeição, a ponte comum. Jesus apareceu na Terra não em glória, mas em humildade, propagou a sua mensagem entre o povo e os pobres, e percorreu as paisagens áridas para cumprir o seu destino. E é isso que Pasolini mostra e é assim que o filma. Com o seu orçamento minúsculo, o seu pobre design de produção, localizações desadequadas e actores amadores, Pasolini aproxima-se se não em forma, pelo menos em essência, do que terá sido a verdadeira odisseia de Jesus. Pasolini não tem medo em centrar o seu filme em faces e emoções e, apesar do tom de desafio que por vezes os discursos de Jesus tomam, o filme nunca recorre a clímaxes desproporcionais, quer nos diálogos (e tão fácil seria fazê-lo nos grandes discursos bíblicos) quer na própria história. Tudo se mantém cru e terra-a-terra. Tudo se mantém tão ‘real’ como noutras obras do neo-realismo. Tudo se mantém naquele estado de graça criado por imagens belas e música bela.
Podemos ler ‘Il vangelo secondo Matteo’ a vários níveis e interpretar a mensagem subliminar do sempre provocador Pasolini. Mas neste caso é mais uma provocação espiritual e de convicções, introspectiva, do que uma provocação social e política. No fundo, no fundo, este é simplesmente um filme belo, uma obra de arte que vai muito para além da religião, porque toca na essência daquilo que acreditamos e porque as suas personagens não são figuras bíblicas, mas homens. As actuações são fracas mas o ambiente hipnotizante do filme largamente compensa. A banda sonora é excelente, complementando os coros do povo com composições dos grandes mestres da música clássica (Bach, Mozart, Prokofiev) mas também por ritmos jazzísticos com sabor africano compostos por Luis Bacalov (mais uma aparente contradição que paradoxalmente resulta e nos leva para esse estado etéreo). Mas é a realização de Pasolini que constitui a cereja no topo do bolo. Sem dúvida, este é o melhor filme da sua carreira, uma catarse espiritual de um homem que tenta chegar à essência da vida de Cristo ao mergulhar o mais que pode na humildade do seu meio. E ao fazê-lo arrasta o espectador consigo, que pode não ser necessariamente inspirado, mas verá a sua fé desafiada. ‘Il vangelo secondo Matteo’ é uma obra invulgar e imperdível do cinema católico que consegue ser o que quase nenhum outro filme deste género foi; uma expressão da alma em vez de ser um épico evento cinematográfico. Não fosse Pasolini um poeta e um pensador, antes de ser cineasta.
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