Cars 2

Ano: 2011

Realizador: John Lasseter, Brad Lewis

Actores principais (voz): Owen Wilson, Larry the Cable Guy, Michael Caine

Duração: 106 min

Crítica: Quando eu era criança ver animação era ver Disney. Mas quando viramos o milénio a Pixar, pela força da qualidade das suas obras, tornou-se o estúdio de animação mais importante a nível mundial, numa altura em que a própria Disney entrou num período de decadência que entretanto já ultrapassou. Os ‘Toy Story’ (1995, 1999), ‘Monsters Inc.’ (2001) e ‘Finding Nemo’ (2003) não só foram cruciais para a aceitação crítica, comercial e artística da animação por computador, como são, sem dúvida alguma, grandes filmes para miúdos e graúdos, obras memoráveis e intemporais da então nova forma de fazer animação e que estavam a anos luz dos produtos análogos dos restantes estúdios que se foram gerando ao longo da década, a Dreamworks, o Blue-Sky, a Sony Animation.

Ir ver o ‘novo Pixar’ ao cinema, ano após ano, primeiro em Novembro e depois no final da primavera (após a compra do estúdio pela Disney em 2006) tornou-se uma rotina habitual do cinéfilo apaixonado por animação. Contudo, e como já descrevi nas várias críticas aos filmes da Pixar mais recentes que já publiquei em EU SOU CINEMA (‘Up’, ‘Monsters University’, e as duas obras de 2015, ‘Inside Out’ e ‘The Good Dinosaur’), foi uma rotina que, a meu ver, se tornou cada vez mais dolorosa à medida que os anos foram passando. Apesar das qualidades técnicas do estúdio serem brilhantes e terem continuamente melhorado (ainda hoje estão na vanguarda da animação CGI, como se vê, por exemplo, na brilhante animação da natureza de ‘Brave’ ou ‘The Good Dinosaur’), a Pixar esqueceu-se, algures pelo caminho, principalmente após o genial, embora não tão popular ‘Ratatouille’ (2007) – talvez porque não é ‘socialmente relevante’ - de como é que construía um filme completo.

Antigamente, ou como quem diz, na primeira década de vida do estúdio, os filmes da Pixar eram verdadeiros trabalhos de amor, onde se conseguia ver a paixão e devoção à arte, não só do CGI animado (que estes senhores inventaram praticamente sozinhos) mas também de criar filmes fortes, íntegros e verdadeiros. Ou seja, de criar filmes cuja qualidade advinha não só do fantástico visual, mas de uma grande alma, que conseguia misturar com enorme destreza as morais familiares, as mensagens sociais, mas também as piadas e a forte componente de entretenimento. Antes de criarem arte, estes senhores queriam criar grandes filmes para a família (quem se lembra, por exemplo, das engraçadíssimas sequências de bloopers nos genéricos finais dos seus primeiros filmes?!)

Mas de repente tudo mudou. A Pixar deixou que a sua própria lenda lhe subisse à cabeça e a pressão de lançar ‘um filme por Verão’, aliada à clara de perda de gás inspiracional após tantas grandes obras, fez com que a qualidade dos filmes começasse a decrescer. Os filmes da Pixar começaram a surgir como obras baseadas apenas numa única ideia (que, em sua defesa, geralmente é uma boa ideia), mas com muito pouca inspiração para a desenvolver, o que fez com que os seus filmes passassem a ser feitos apenas pela metade. Se inicialmente isto ainda foi disfarçado pela forte componente social das obras (‘Wall-E’, 2008, e ‘Up’, 2009), que seduziu o público e os críticos muito embora as histórias tivessem claras falhas nos restantes departamentos (ver a minha crítica de ‘Up’), a coisa tornou-se mais difícil de disfarçar quando a Pixar entrou numa longa era de produção de sequelas (‘Toy Story 3’, 2010, ‘Cars 2’, 2011 e ‘Monsters University’, 2013), uma tendência que, apesar de ‘Inside Out’ e ‘The Good Dinosaur’, se mantém (dos próximos cinco filmes planeados na Pixar, quatro são sequelas; ‘Finding Dory’, ‘Toy Story 4’, ‘Cars 3’ e ‘Incredibles 2’). Numa altura em que a Disney ressurgia com ‘The Princess and the Frog’ (2009), o fabuloso ‘Tangled’ (2010) ou ‘Frozen’ (2013), e a Illuminaton produzia ‘Despicable Me’ (2010) ou ‘The Lorax’ (2012), tornou-se muito difícil continuar a considerar a Pixar como o melhor estúdio de animação. Lá está, porque já não é, independentemente do dinheiro que faça na bilheteira e do lobby dos Óscares.

Chegados a 2011 e a ‘Cars 2’, a Pixar tinha acabado de lançar dois filmes geniais, mas apenas pela metade. ‘Up’ tinha uma brilhante primeira parte, mas depois caía redondo com um vilão forçadíssimo e uma história sem nexo. Já em ‘Toy Story 3’ (2010) acontecia o inverso, o filme limitava-se a ser um remake desinteressante dos primeiros dois 'Toy Story' na sua primeira metade, para depois desembocar nuns trinta minutos finais fa-bu-lo-sos. Nunca na minha vida tinha visto filmes (ainda por cima seguidos, do mesmo estúdio) com um fosso tão abissal de qualidade entre as suas duas metades, portanto quando me preparei para ir ao cinema ver ‘Cars 2’ em Julho de 2011, não estava à espera de muito.

Para mim o ‘Cars’ original, de 2006 tinha sido provavelmente o filme da Pixar do qual tinha gostado menos até então (acho que ‘The Good Dinosaur’ é agora o actual detentor desse título). Achei engraçado (não direi fascinante) o universo que se criou ao redor da mitologia automóvel, onde não só todas as personagens eram carros, mas toda a vida (as profissões, as lojas, etc) eram relacionadas com carros. O facto da história ser algo contida (o mundo das corridas profissionais e a pequena cidadezinha de Radiator Springs no interior americano) permitia que este universo funcionasse e fosse coerente. Contudo, achei a história algo fraca e o seu apelo demasiado ‘americanizado’, onde tirando a moral costumeira do ‘convencido aprende humildade e valores’ com alguns momentos de humor e as personagens secundárias da praxe, as temáticas do filme versavam sobre um olhar crítico da expansão urbana que, achava eu, só faria sentido numa lógica americana. Contudo, o filme acabou por ser um sucesso de bilheteira (462 milhões de dólares arrecadados a partir de um orçamento de 140 milhões), e um sucesso ainda maior ao nível de merchandising, especialmente no mercado infantil masculino. Na minha leitura crítica do filme, estava-me a esquecer que inúmeros pais são apaixonados por automóveis, e passam essa paixão aos filhos, e que as crianças não lêem o filme a partir da sua história e da sua moral, mas a partir do apelo dos bonecos. E em ‘Cars’, apesar de tudo, esse apelo é universal.

A Disney/Pixar logo capitalizou neste sucesso de ‘Cars’ com algumas curtas-metragens e os ‘desenhos animados de sábado de manhã’ CarToons. A sequela surgia como inevitável (e é dizer muito que a seguir aos Toy Story, foi a segunda franchise da Pixar a ter direito a sequela), mas como disse não estava à espera de muito. Mas o que quer que estivesse à espera, certamente não era isto, principalmente porque foi o próprio John Lasseter (o principal criativo da Pixar, realizador do primeiro Toy Story e actual director de produção da Disney) que assumiu as rédeas da realização, um cargo que já não ocupava precisamente desde ‘Cars’. ‘Cars 2’ foi (e continua a ser) uma gigantesca decepção. É um filme que, literalmente, se espalha ao comprido, um filme que vai a todas mas que não consegue nenhuma, e fica a meio de tudo aquilo que se propõe ser. Sinceramente, o filme não tem piada. Ri-me, se tanto, uma vez. Sinceramente, o argumento é enfadonho e altamente previsível. E sinceramente, a escolha de tornar a personagem principal deste filme não o apelativo Lightning McQueen (voz de Owen Wilson), mas o secundário de escape cómico Mater (voz de Lary the Cable Guy) foi péssima. ‘Cars 2’ não parece um filme, parece um especial do Disney Channel centrado em Mater e portanto deveria ter sido produzido pela subsidiária Disney Toons (como foi ‘Planes’), e lançado directo-para-DVD. Considerar isto parte do cânone oficial das longas-metragens da Pixar é denegrir a imagem do estúdio.

‘Cars 2’ começa como uma espécie de paródia aos filmes de espiões, com pitadas de Johnny Englsh ou Austin Powers, e é um tom que mantém praticamente até ao final. A diferença, e onde reside a maior tentativa de piada (falhada) de todo o filme, é que são todos carros. E aqui ocorre a maior deturpação do universo de Carros, como se os próprios senhores da Pixar se tivessem esquecido do significado atrás do universo que criaram. Como escrevi em cima, o universo de ‘Cars’ resultava precisamente porque era contido, e porque tudo girava à volta dos próprios carros. Não havia lojas ‘normais’, por exemplo, só lojas de produtos automóveis. Não era um universo paralelo em que tudo no nosso mundo era transformado em carros ou coisas relacionadas com carros; era um universo à parte onde só a realidade automóvel existia e isso era o grande segredo do seu charme. Em ‘Cars 2’ essa simples beleza é destruída precisamente porque se cria esse universo paralelo cliché, onde o mundo é igualzinho ao nosso, só que com carros. No Japão, carros geisha. Em França, carros com chapéus de pintores. Em Londres, Big Bentley em vez do Big Ben. O vilão, um carro com um monóculo. Ok, é giro no início, mas depois começa a enfadar, porque são meras conversões sem profundidade. E adicionar aviões ao universo (os ‘Planes’ que já originaram dois filmes do Disney Toons’) bem como barcos (para quando um ‘Boats’?!) mais uma vez deturpa a aura exclusivamente automóvel do primeiro filme. São acrescentos que detestei.

A história segue na base os trâmites usuais. Há mais um circuito mundial de corridas, o World Grand Prix (sendo, que para a Pixar, ‘mundo’ significa apenas três corridas no Japão, em Itália e em Londres) no qual, obviamente e após algumas peripécias, Lightning McQueen entra é um dos principais candidatos ao título. Enquanto se vai passando de cidade para cidade e de corrida para corrida, nos bastidores está a ocorrer um plano maléfico, relacionado com os interesses petrolíferos e a existência de um novo combustível natural (a ‘moral social’ Pixar do costume). Após McQueen e Mater terem uma discussão e irem cada um para seu lado (a ‘desavença entre melhores amigos que se resolve no fim’ Pixar do costume), este último é confundido com um espião (a sério?!), quando o verdadeiro espião coloca nele o seu transmissor. Eis que entra em cena Finn McMissile, um carro ao estilo James Bond (com uma voz propícia de Michael Caine) e a sua agente Holly Shiftwell (Emily Mortimer) que assim recrutam Mater, fazendo com que o filme desemboque numa não muito credível comédia Hitchcockiana de espiões e identidades trocadas, que acompanha o circuito de corridas à volta do Mundo e que no final tornará Mater num grande herói...

Aliás, as corridas surgem quase como um elemento desnecessário, uma desculpa para manter McQueen e planos de velocidade por perto, quando o filme revolve mais de 90% à volta destes enganos e desenganos relacionados com Mater. A questão é: será isto interessante? Bem, não muito. Embora as piadas à custa de Mater fossem sempre iguais no primeiro filme (ser um campónio de bom coração), não deixava de ser engraçado e apelativo, precisamente porque era uma personagem secundária de quem se esperavam apenas essas piadas e não outras. Tornando-se principal, a personagem não altera um milímetro do seu estereótipo e portanto a repetição e a insistência torna-se cansativa e enfadonha.

Outro elemento que definitivamente não resulta é o segredo da identidade do vilão. Eu sei que isto é um filme para crianças, que tem de ser simples, mas isso não implica que tenha de ser previsível. Há um senão em todas as histórias de ‘quem é o vilão’ ou ‘quem é o assassino’, que é que essa personagem tem de aparecer em algum ponto inicial do filme, e portanto as possibilidades são limitadas. Em ‘Cars 2’, o Professor Z (o carro estilo Blofeld), desde o início, só pode ser um único. Porquê? Porque não há absolutamente mais personagens! Nem sequer há uma personagem para quem se possa atirar as suspeitas e enganar o espectador antes da revelação final, como é costume neste tipo de histórias. Portanto, 90 minutos depois, quando o filme faz grande alarido em revelar a ‘surpresa’, não há surpresa nenhuma, porque qualquer pessoa a partir dos 5 anos de idade terá descoberto já há muito tempo quem está por detrás do plano maléfico. 

Enfim, mais se podia dizer sobre ‘Cars 2’, mas não tenho muita paciência. O bastião Pixar faz com que o filme tenha indubitavelmente apelo para as crianças, já que é cheio de cores, cenários animados, carros engraçados e apelativos (quer na tela, quer numa loja de brinquedos) e músicas simpáticas que enchem a banda sonora. As crianças desfrutarão do visual e serão entretidas. Poder-me-ão dizer que isso é mais do que suficiente. Talvez. Mas todos os grandes filmes de animação também apelam aos adultos que nunca deixaram de ser crianças, pela força da sua qualidade. Não é o caso de ‘Cars 2’.

Acho incrível que ‘Cars 2’ seja um produto da Pixar, outrora o pináculo da animação mundial. É uma aventura de sábado de manhã, com visuais de gigantesca qualidade, mas um conteúdo de um desenho animado televisivo menor. Para além do mais, é um filme sem ambição e feito sem qualquer risco, na medida em que não desenvolve nenhuma personagem, nem altera os seus estereótipos, e portanto um potencial ‘Cars 3’ (que já vem a caminho em 2017) pode ser engatado sem qualquer esforço e seguir qualquer rumo argumental sem estar condicionado por esta história. Focar o filme em Mater foi mal jogado, independentemente da popularidade da personagem em termos de marketing. Fazer do filme uma comédia de espiões foi igualmente mal jogado, porque é uma comédia mal feita e destrói a aura contida mas de certa forma poética e por vezes nostálgica que o primeiro filme tinha. A única coisa que realmente é apelativa é o design de produção das várias localizações mundiais, mas a insistência na conversão de todos os elementos humanos para elementos automóveis não só não faz sentido na perspectiva do universo criado no primeiro filme, como, a ter (algum) apelo, este se esgota na primeira cidade. No global, um filme desapontante da Pixar.

Todos esperamos que a Pixar regresse aos bons velhos tempos. Com obras como ‘Cars 2’ ou ‘The Good Dinosaur’ a Pixar tornou-se banal, e não são ‘Brave’ ou ‘Inside Out’, apesar das suas qualidades, que a salvam. Mas é curioso notar que na última meia década a melhor obra da Pixar acaba mesmo por ser ‘Monsters University’. Talvez o estúdio se consiga reencontrar nas múltiplas sequelas que se avizinham até 2019. Pode ser. E se o fizerem, talvez daqui a uma década consigam voltar a surpreender-nos com um grande filme original. Lembram-se da primeira vez que vimos ‘Toy Story’, ‘Finding Nemo’ ou ‘Ratatouille’? Eu lembro-me. E por isso é que ainda não perdi a esperança de voltar a ver uma fabulosa nova obra da Pixar.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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